O tema do duplo é, sem dúvida, uma das mais ricas manifestações da cultura humana. Desde tempos imemoriais, em que o homem era governado pelos mitos, ele aparece com força. Prometeu encarna a duplicidade, ao se revoltar contra os deuses e se aliar aos homens. Édipo é o arquétipo do homem desdobrado. No Gênesis, a bipartição pode ser entendida como um castigo que os deuses infringiram aos homens. A cisão, masculina e feminina, resulta num enfraquecimento, como confirma de forma subreptícia, por sua vez, a filosofia em O banquete, de Platão.
A representação do duplo, contudo, da Antiguidade ao início da Idade Moderna, vai privilegiar a ideia do homogêneo, do idêntico. Lembremos, por exemplo, das comédias de Plauto, tomadas por sósias. Ou as inúmeras representações do mito de Narciso, nesse extenso período, sejam nas artes plásticas ou na literatura. No início do século XVII, em coincidência com as mudanças geradas numa sociedade por um capitalismo incipiente, começa uma virada, o duplo passa a ser uma representação do heterogêneo, de uma relação binária sujeito-objeto. Esta mudança só foi se acirrando com o passar do tempo, à medida que a burguesia se consolida no poder. Dessa forma, no século XIX o artista romântico se depara com dois mundos, o próximo, da realidade, e o distante, da evasão e do sonho. No século XX, a psicanálise aprofunda a divisão identitária, mostrando que à sombra do império da razão o inconsciente é igualmente determinante da conduta humana. No século XXI, o fracionamento amplia-se numa dimensão antes inimaginável, a ciência assume de fato uma condição demiúrgica, o desafio do homem aos deuses se confirma prosaicamente nos laboratórios de genética espalhados pelo mundo, a duplicar os seres, de ovelhas e outros animais a clones de seres humanos. Mais uma vez, afirmam-se os acertos da literatura de ficção científica, que há muito previa o homem duplicado em larga escala.
Aberta a caixa de Pandora, descortinam-se as inumeráveis possibilidades do duplo: o segundo “eu”, o alter-ego; as almas gêmeas; a homonímia; o Eu e o Outro; as ambiguidades e paradoxos, faces complementares do mesmo ser, evidenciadas em dicotomias: corpo e alma, anjo e diabo, bem e mal, vida e morte, consciência e inconsciência, etc. Desde sempre, semelhanças e dessemelhanças são desdobradas nas representações culturais as mais diversas, a demonstrar um estado permanente de inquietude, de insubordinação aos limites, de um ser humano que faz vibrar o arco tenso do desejo artístico.
Dr.Wagner Martins Madeira
Coordenador de Pandora Nº 12 "o Duplo"
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