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ENQUADRAMENTO: UMA ANÁLISE DO CONTO SOBRE TELA DE ADRIANA LUNARDI


Mariana Ferraz de Albuquerque

Graduada em Letras pela Universidade Católica de Pernambuco. É pós-graduada em Literatura Brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife e mestranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Neide Medeiros Kazan

Graduada em Letras pela Fundação Souza Marques, Rio de Janeiro. Fez pós-graduação em Linguística pela PUC-RJ e Sociolinguística pela UNESP. É mestranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.




“A pintura não existiria como forma de linguagem
se não se fizesse linguagem na mente do observador.
E a linguagem que se articula na mente
do receptor é verbal.”
(GONÇALVES, 2004)


A inocência da infância, a pureza da idade, o sonhar acordado, o brincar com a realidade, a magia dos pensamentos, a simplicidade das idéias, o zelo, a amizade e a cumplicidade entre duas irmãs.

O conto de Lunardi, numa primeira leitura, nos faz retornar a nossa infância. Lembramos das brincadeiras com nossos irmãos e somos pegos com um sorriso saudosista. Quem nunca brincou de faz de conta, numa tentativa de imitar a realidade?

Duas meninas, a filha caçula, Kazuo, e a filha do meio, Dom, são as personagens principais do conto em questão. Assim como a mente de duas crianças, o texto é bastante imagético, rico em descrições e detalhes. Para tudo se tem um nome, uma comparação, uma metáfora, uma brincadeira. Como quando, com a irreverência do patriarca da família, em seu costume em nomear objetos. O telefone chama-se Marocas, o carro novo, Lady Lane. Já a irmã mais velha, a Mais Velha, incumbia-se em nomear as pessoas e os lugares. Seu Flor, o jardineiro. General Smirnoff, um bêbado que perambulava pela cidade. Essa peculiar linguagem familiar adequava o mundo a essa família. Como se o mundo fosse uma extensão do lar deles. O brincar perpassa a mente infantil, o mundo infantil e envereda para a rua, para o exterior. “–ruas, cidades, pessoas, fábricas, edifícios -, tudo, era uma extensão do nosso lar”.

A chegada de mais um membro na família, um bebê que está por nascer, mexe com a estrutura física da casa das meninas. As protagonistas são transferidas para um novo quarto e nele, para a surpresa delas, há um quadro. “Mamãe explicou que era mais apropriado dizer pôster: quadro era o original, aquela era uma cópia feita em papel.” Havia então um pôster. As duas meninas, diante do fascínio da tela expor duas crianças, também do sexo feminino, brincando na praia, levou-as a acreditar e assim, consequentemente, a montar uma ilusão que aquelas do quadro, eram elas. “– Essa sou eu e essa é você – disse, designando as figuras.” E como não podia deixar de ser, as meninas da praia foram nomeadas, Hel e Ani, e assim elas, concomitantemente, se nomearam. E dia após dias, a senha secreta para o teatro, quadro-realidade, dava-se pela frase “– Vamos brincar de quadro?”. E assim, elas se juntavam, e juntavam-se também ao quadro, para iniciar o espetáculo de sempre. “Dei de ombros, cansada daquele faz-de-conta tantas vezes repetidos.”

As cortinas, do então teatro, começaram a baixar quando intempestivamente a irmã Mais Velha interrompeu a brincadeira e antecipou o fim da peça. “– Vocês aí, brincando, nem sabem que não vai mais ter bebê.” Como em um passe de mágicas, a realidade tomou conta daqueles dois pequenos seres, destruindo brincadeira, derrubando máscaras e desatando os nós de um laço fraterno-íntimo-cúmplice que fora dado. O amadurecimento veio com o susto. O último suspiro, a fala final antes do desfecho do show, deu-se pela dúvida da caçula sem mais saber o que era realidade e o que era fantasia: “– Dom, não vai mais ter bebê? (...) – Você está vendo algum na praia? (...) – Então seremos só nós duas - , concluí, amável e tranqüilizadora, tão adulta que já não cabia mais naquele quadro.” Fim do espetáculo. A bailarina quebrou a perna. O palhaço chorou. O trapezista caiu. O domador de leão foi dominado. A luz acendeu. E nunca mais as duas foram Hel e Ani.





Pedro Weingärtner encaixilhou em sua tela um fragmento de uma realidade e posteriormente, fazendo uso do mesmo trabalho artesanal, Adriana Lunardi recortou e emoldurou um fragmento do já fragmentado momento. O título do conto Enquadramento nos remete então a esse recorte, quando o artista seleciona, capta e põe moldura.

Ao fazer a apreciação do quadro, Adriana Lunardi direciona seu olhar, como uma câmera, fazendo um recorte da pintura, focando nas duas meninas e amplia essa imagem, para melhor observar os detalhes e gestos das meninas. Por se tratar de artes plásticas, há uma maior liberdade, uma vez que não existe uma ordem que direcione o começo da leitura da obra. Não há regras de início, meio e fim.

A trama do conto inicia com a nova gravidez da Mãe ocasionando assim a mudança de quarto das suas filhas. Com essa transferência, Dom e Kazuo, as filhas mais novas, redesenham um ambiente, tornando-o propício para o imaginário infantil do faz-de-conta. “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self).”(WINNICOTT, 1975, p.80). Por meio da fantasia, do imaginário, as duas meninas recriam o mundo de modo que a insatisfação do mundo real é substituída pela “brincadeira de quadro”; cada uma delas tem a possibilidade de escolher qual das personagens do quadro vai representar.

“As meninas, de costas, facilitavam nossa transmigração. Em poucos minutos já não podia ver senão minha irmã ali, pescando, ou, eu mesma, de joelhos dobrados, a escrever na areia”.

A própria palavra dita acima, transmigração, nos remete a idéia de duplicidade. Segundo o dicionário de símbolos, metempsicose (v. transmigração) assume um caráter simbólico de continuidade moral e biológica. Ou seja, a possibilidade das meninas atuarem papéis diferentes, simultaneamente.

Há o desdobramento do quarto cinza num espaço real de ressentimento, e o espaço cênico, na “imaginação como fuga ou compensação”(PERRONE-MOISÉS, 1990, p.104).

O pôster no quarto compõe o espaço cênico com as meninas do quadro e as meninas do quarto como um espelho. Uma vez que essas meninas do quadro estão de costas, voltadas à face para o lago, o reflexo delas na água permite projeção. Do mesmo modo, as meninas do quarto se espelham nessas, do quadro.

Dom e Kazuo se identificam com essas meninas, dão um nome para cada uma e assumem esses nomes como se fossem os seus também. Nessa brincadeira infantil, cada uma das crianças passa a representar a outra da pintura, numa imitação de gestão: uma na posição de pescar e outra inclinada escrevendo na areia. Imaginam piqueniques com o requinte das meninas da tela recriando uma situação do cotidiano. “Durante algum tempo, foram nossas melhores amigas, sendo, ao mesmo tempo e previsivelmente, uma versão melhorada de nós mesmas”.

Na busca da identidade, há o desdobramento do “eu”, a substituição do “eu” pelo “outro”, através de imitação e repetição. Renunciam a realidade para realizar uma viagem no interior de si mesmas através do faz-de-conta. Nesse jogo Hel é o duplo de Dom e Ani duplo de Kazuo. Ani-Kazuo e Hel-Dom: “espelho de si mesmas cada “eu” se revê no outro “eu” como se este outro “eu” fosse um espelho que lhe devolve a sua imagem”( CEIA, s/d)

“(...) a busca do eu, especialmente nas perturbações de desdobramento, está sempre ligada a uma espécie de retorno obstinado com o espelho: assim, a obsessão da simetria sob todas as suas formas, que repete à sua maneira a impossibilidade de jamais restituir esta coisa invisível que se tenta ver, e que seria o eu diretamente, ou um outro eu, seu duplo exato. A simetria é ela própria conforme à imagem do espelho: oferece não a coisa mas o seu outro, seu inverso, seu contrário, sua projeção segundo tal eixo ou tal plano. (...)” (CLÉMENTE, 1976, p.66)

As escolhas dos nomes fictícios Hel e Ani foram motivadas pelos sentimentos ambíguos da irmã do meio, Dom, de mágoa e carência afetiva. Hel é uma personagem da mitologia nórdica e também pode ser encontrada no mangá. Na primeira, trata-se de uma adolescente que pode controlar suas sombras. É viva da cintura para cima e morta da cintura para baixo. Já a segunda, ela sofre de carência afetiva, lê muitos livros tristes e sua aparência é meio mulher normal, meio cadáver. O nome Ani, é a figura do mangá na televisão. Anima, Ani. Conforme o dicionário de psicanálise, Anima (imagem do feminino) constitui um dos três arquétipos que constituem o inconsciente coletivo, base da psique e complementada com características individuais que alternam entre introversão/extroversão. “A criança emerge assim do inconsciente coletivo para ir até a individuação, assumindo a anima e o animus”. A identificação, psicológica, das meninas com essas personagens levou a escolha dos nomes.

Sobre o fenômeno do “duplo” Freud afirma:

“(...) temos personagens que devem ser considerados idênticos porque parecem semelhantes, iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens – pelo que chamaríamos telepatia -, de modo que um possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self). E, finalmente, há o retorno constante da mesma coisa - a repetição dos mesmos aspectos,característicos, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem”. (FREUD, s/d, p.16)

A imaginação possibilita a apreensão do real quando Kazuo, a irmã mais nova, lança mão de um código implícito na brincadeira de imitar a cena das meninas, não aceita nenhuma construção que mude o roteiro muitas vezes repetido, estabelecendo uma espécie de convenção, que determina o conduzir dessa brincadeira. Neste sentido o jogo traz à tona a apreensão, a angústia vivenciada pela personagem. “O jogo de espelho que favorece o diálogo consigo mesmas: uma autoconsciência que gera sempre um duplo enquanto “eu” e/ou “outro”. (NETZEL, s/d)

Assim como a morte do bebê provocou o crescimento de Dom e a anulação do seu duplo, na medida em que distingue a imaginação da realidade e se sente mais segura em relação à posição que ocupa na família. Apesar de não ter a noção exata de quanto tempo durou a “brincadeira de quadro”, foi o tempo suficiente para Dom abandoná-la por não mais estar em simetria com seu interior.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço . São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CEIA, Carlos. Dicionário de termos literários . Disponível em: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/, 18/10/2009.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. CLÉMENTE, Rosset. O real e seu duplo. Porto Alegre: L&PM, 1976.

FREUD, Sigmund. O estranho. In Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, s.d, vol.XVII.

GONÇALVES, Aguinaldo José. Museu movente: o signo da arte em Marcel Proust. UNESP, 2004.

MOUTINHO, Marcelo (org). Contos sobre tela. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2005.

NETZEL, Adair de Aguiar. O estabelecimento de duplos: A afirmação do outro . Disponível em: http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_200.pdf , 18/10/2009.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A criação literária . In Flores da Escrivaninha- Ensaios. São Paulo:Companhia das Letras,1990.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise . Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

1998. WINNICOTT, Donald. O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Ilustração 1 “Barra do Ribeira”, Pedro Weingärtner, 1914.