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Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde ministra cursos de Graduação, mais especificamente trabalhando com Literatura Brasileira e Identidade. Mestre em Ciências da Comunicação, pela ECA-USP.(USP).
O conceito mais comum relativamente ao duplo é que este é algo que, tendo sido originário a partir de um indivíduo, adquire qualidade de projeção e posteriormente se vem a consubstanciar numa entidade autônoma que sobrevive ao sujeito no qual fundamentou a sua gênese, partilhando com ele uma certa identificação. Nesta perspectiva, o DUPLO é uma entidade que duplica o “eu”, destacando-se dele e autonomizando-se a partir desse desdobramento. Gera-se a partir do “eu” para de imediato, dele se individualizar e adquirir existência própria.
Comendador Amleto é, portanto, na narrativa, o duplo de Amleto, pois se destaca dele e adquire autonomia. É o resultado de um processo de negação da sua origem. A nossa análise, no entanto, visa a esclarecer qual estratégia metodológica utilizou a personagem para se transformar; a quais artifícios recorreu para deixar de ser o que era e conquistar um novo posicionamento na narrativa?
(...) Temos 32 caldeiras, uma capacidade de cerca de 15 toneis, mas na safra muitas vezes não damos vencimento a todo o trabalho, mesmo com os negros parando somente à hora do almoço e virando a noite.
De fato, o Barão de Pirapuama não tem controle sobre os seus negócios, deixando as contas, as ordens, a organização e os papeis nas mãos de Amleto que os administra com competência.
Fazia mais de um mês que o barão se adoentara e quase um mês que, forçado pelas circunstâncias e pela confiança crescente que sua competência e exação lhe asseguravam, Amleto Ferreira respondia pelo expediente do escritório do Terreiro de Jesus. Isto queria dizer que conduzia todos os negócios do barão, até mesmo os mais pessoais, eis que Perilo Ambrósio, com a doença, alternava sua disposição entre acessos apopléticos de cólera (...) e estados de fundíssima melancolia (...). (RIBEIRO, 2007, p. 179, grifo nosso)
A competência, no entanto, aos poucos, vai se revelando desfavorável ao Barão, na medida em que a personagem inicia seu sinuoso plano de subtração fraudulenta. Contando com a ajuda, no início, de seu cunhado, Emídio, Amleto retira mercadorias, desvia dinheiro e frauda documentos:
- Aqui está. De drogas, comprei 320 mil-réis, passei ao armazém 220, compro-te de volta os mesmos 220 por 230. De vinagre, comprei duzentas quartas, passei-te 150 para venderes a 230 a quarta, compro-te tudo de volta a 240. De cevada... (RIBEIRO, 2007, p. 193)
Se nas suas práticas escusas Amleto encontra a fórmula para enriquecer financeiramente e assim realizar a sua ascensão social, em nível pessoal a acumulação de riqueza não é suficiente para que ele se sinta recompensado. Será necessário modificar completamente o seu ser e criar um duplo de si capaz de, na narrativa, representar uma nova linhagem, independente do seu passado. A primeira recusa às origens é nos fornecida no texto na data de 17 de março de 1839, ocasião em que batizaria seu sétimo filho. Retrocedendo no tempo da narrativa, Amleto se recorda da ocasião em que o padre-adjutor do Vigário Geral lhe entregou a certidão de batismo falsa, na qual, a personagem lê o seu novo nome que evoca, contemporaneamente, o antigo, o anterior, a origem: ao invés de Amleto Ferreira, Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton. A incorporação do elemento estrangeiro, do termo qualificativo de nobreza, bem como a composição do nome próprio mediante dois vocábulos reflete uma escolha ideológico-lexical que busca elevar a origem da personagem. De fato,
(...) a escolha em favor de um determinado processo lexicogênico, quando da introdução de um novo vocábulo, é totalmente livre e resulta exclusivamente do arbítrio do criador (...), [porém] a partir do instante em que tal escolha (...) começa a sofrer algum tipo de coerção em termos de norma, (...) passam a existir (...) regras de criação lexical que, de certo modo, vão condicionar as perspectivas futuras do léxico em questão. É nesse sentido que podemos dizer (...) que tais escolhas (...) dizem respeito à própria ideologia do léxico de uma língua, especialmente no que tange aos elementos léxicos de origem externa, pois é sobretudo em face da influência estrangeira (...) que o caráter ideológico do léxico vai sobressair. (BIZZOCCHI, 1997, p. 40)
Ora, a aquisição de um nome falso, além do seu aspecto ilegítimo, comporta em ponderar sobre a própria justificativa fornecida pela personagem. Segundo Amleto, a necessidade de ter um nome composto advém do fato de ser indispensável homenagear ao pai (Amleto) e à tradição inglesa (Henrique); quanto ao sobrenome o Ferreira seria de sua mãe, descendente dos Ferreiras de Viana do Castelo e o Dutton, nome inglês, de seu pai, John Malcolm Dutton. No entanto, não há nenhum papel ou escritura que comprove tais origens (os documentos se perderam, os padrinhos não tiveram cuidados, houve a guerra napoleônica, enfim, a lista de obstáculos é vasta). Daí, a necessidade de se fazer a correção, mediante a ajuda da Igreja que, por sua vez, recebe de Amleto o reconhecimento por meio de inúmeros favores. A importância do nome como símbolo de ascensão social também se dá no seu perpetuar, pois a linhagem permanece graças ao nome: - No caso de meus filhos, que, graças também à compreensão que sempre mereci da Igreja, já pude batizar com seus verdadeiros nomes... (RIBEIRO, 2007, p. 261).
Ah, mãezinha, bem sabes quanto me dói também esta situação, pensas que não tenho sentimentos, que não choro à noite em pensar na minha mãezinha lá sozinha e eu sem poder sair à rua com ela! (...) Mas não sabes, diz-me, diz-me, por caridade diz-me, não sabes que isso, esta horrível situação, é para o nosso próprio bem? (RIBEIRO, 2007, p. 264)
O ideal de branqueamento e consequente duplicação de seu ser, tanto almejado pela personagem, requerem também a assimilação de gostos culturais e apropriação de hábitos e modos de agir e de falar de evidente influência europeia. Assim, iremos observar Amleto explorando o negro; ele estará ocupado saboreando um doce pudim de arroz inglês; seus filhos irão estudar com preceptoras alemãs e terão uma governanta inglesa; seus desjejuns irão ser realizados com rins grelados, arenques defumados, mingau com passas, pãezinhos fofos, chá e torrada com geleia; ele irá notar o quanto seus filhos são alvos e seus cabelos são lisos e finos. A obsessão na sua transformação é tal que "a personagem estará às voltas com a assimilação das formas estereotipadas ou esterilizadas da língua" (CUNHA, 2006, p. 93). Assim, Amleto Humberto Ferreira-Dutton irá inserir no seu discurso latinismos, estrangeirismos e expressões ou termos de uso incomum: data venia, rice pudding, Dieu et mon droit, Le Roy le veult, Cui prodest, fide, sed cui, vide. Hábito que, devido a sua insistência, irá se perpetuar e ser compartilhado por alguns de seus filhos. Sua valorização do elemento estranho está registrada também na sua valorização da língua estrangeira que, segundo a personagem, reiterado por incontáveis vezes pelo narrador que o acompanha, seria superior.
Lamentou que não tivesse o país sido colonizado por ingleses. Pediu licença para contar uma anedota, disse que seu filho Bonifácio Odulfo, um francófilo impenitente, um engraxate do tenentinho corso - coisas de poetas, que lhe passarão como passou o sarampo -, rechaçara o pedido que lhe fizera para que aprendesse o Inglês.
O extremo da negação do seu próprio ser e de suas origens é deflagrado quando a personagem, ao se referir ao povo brasileiro, esclarecendo a sua opinião sobre o que vem a ser este conceito, exclui a si mesmo do discurso:
- Observe bem o caro major e compadre (...). Mas, vejamos bem, que será aquilo que chamamos de povo? Seguramente não é essa massa rude, de iletrados, enfermiços, encarquilhados, impaludados, mestiços e negros. A isso não se pode chamar um povo, não era isso o que mostraríamos a um estrangeiro como exemplo do nosso povo. O nosso povo é um de nós, ou seja, um como os próprios europeus. (RIBEIRO, 2007, pp. 272-273)
Ao se reconhecer como um europeu, Amleto nega a si mesmo e recria a partir de si um novo ser, que só se reconhece europeu e branco e que, por sua vez, recorta de si a parte que cabe às outras eventuais origens suas. No processo de duplicação, a personagem se desliga de suas raízes africanas, de todo e qualquer indício que possa recordar a sua negritude ou o seu ser mestiço: nega a sua cor e o seu fenótipo; nega a sua origem materna, por ser negra; nega os seus hábitos culturais (alimentos, cotidiano, língua, comportamento, círculo de amizades); nega também a sua índole, ao ter que se servir do dolo a fim de obter recursos financeiros dos quais não dispõe e, dessa forma, realizar a elevação na escala social. Portanto, se é possível considerar que a negação de si mesmo atuada por Amleto procede com o surgimento do seu duplo que representa, na narrativa, a ascensão social, torna-se evidente que a personagem atua como uma espécie de representante simbólico do branqueamento racial idealizado para a nação brasileira. Finalmente, torna-se relevante apontar para o fato de que o branqueamento realizado pelo mestiço, na sua evidente forma duplicada, se dá mediante a falsificação, induzindo naturalmente à consideração de que a prática da má-fé e da astúcia é um das peculiaridades do domínio mestiço. |