A TRANSFORMAÇÃO DO “EU” E A FORMAÇÃO DO DUPLO EM FRENTE
“AO ESPELHO” DE MACHADO DE ASSIS
Anita Jovelina Brito de Jesus
Licenciada em Língua e Literatura Inglesa e Norte Americana pela PUC-SP. Bacharel em Tradução, também pela PUC-SP. Trabalha como professora há 20 anos e como consultora e tradutora há 15 anos. É mestranda na área de Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
A questão da identidade é um dos principais elementos, se não o mais importante, de uma obra literária e a questão do duplo, tanto na literatura quanto em outras manifestações artísticas, tem sido cada vez mais utilizada como um dos elementos principais da trama. Segundo Otto Rank, em O Duplo (1939), o tema da “dupla personalidade” apareceu mais fortemente durante a Era Romântica, na Alemanha, e foi vastamente utilizado na literatura. Esse mecanismo traz à tona a cisão do homem, seja no campo da psicanálise ou no campo do fantástico e não é raro encontrarmos o mito do duplo em diversas manifestações culturais dos séculos XX e XXI. Filmes, livros, novelas, comerciais de TV, peças teatrais etc. mostram o quão fascinante é para o leitor/espectador – seja consciente ou inconscientemente – a duplicidade como um dos elementos-chave trabalhados na obra.
Para conceituarmos o duplo partiremos do conceito de que este se origina de um indivíduo e adquire uma entidade autônoma e, a partir daí, partilha de uma certa identificação com sua gênese. Desta forma, podemos deparar com um ambiente ou contexto em que o sujeito e o seu duplo coexistem em perfeita simbiose [...] (CUNHA, E-dicionário[GT1]). E é essa coexistência em um mesmo cronotopo que por muitas vezes – mas nem sempre – leva ao confronto no qual pode haver a inexistência de um ou de outro. Um tem que desaparecer para que o outro tenha sua identidade retomada. O duplo pode ser constituído de um alter ego, um sósia, uma máscara, um gêmeo, um ser fantástico ou um espelho, entre outras formas.
O espelho, citado acima como uma das formas de manifestação do duplo, é um objeto que serve, sobretudo, para refletir imagens e, ao refletir nossa imagem, ele a duplica, o que não é necessariamente nosso duplo. Acredita-se que a água tenha inspirado a fabricação do espelho, o que nos remete instantaneamente ao mito de Narciso. Ao nos prostrarmos diante de um espelho, em geral buscamos nossa imagem e aceitamos a premissa de que os espelhos não mentem. De acordo com Umberto Eco (1989), poderíamos ver o espelho como uma prótese que nos ajuda a ver o que não seria possível sem o auxílio de um objeto, ou seja, é uma ratificação de nossa imagem real externa. Portanto, ao nos prostrarmos diante de um espelho, procuramos ali o “eu” e não o “outro”. Uma imagem dupla não é o duplo de alguém, mas sua imagem duplicada que pode ser vista com a ajuda de um espelho.
Mas não teria o menor sentido falarmos do espelho neste artigo se fôssemos falar do objeto em si e não de seu lado mítico. O espelho não é capaz de nos mostrar o que sentimos, é verdade, mas mostra o quanto nossos sentimentos afetam nosso exterior. É através do espelho que vemos parte de nossas reações como o choro, o riso, o constrangimento etc. Só podemos ver a lágrima escorrendo em nosso rosto, e não em nossas mãos, através de nosso reflexo. Sabemos que estamos chorando, seja de tristeza ou de alegria, mas só vemos nossa reação por meio de nossa imagem refletida. É o reflexo que nos traduz alguns de nossos sentimentos por imagens, pois passa a transcender o sentir, uma vez que podemos olhar diretamente para nossa reação, assim como podemos olhar a reação do outro sem o auxílio de uma prótese de reflexo.
O conto O Espelho, de Machado de Assis, mostra a cisão e consubstanciação de Jacobina com sua outra metade ao enfrentar a solidão e tomar o espelho como sua “alma externa”. O personagem divide sua breve existência na casa com sua tia Marcolina e o cunhado de sua tia, e, ao ser delegado a tomar conta do sítio para sua tia, Jacobina começa a ser acometido pela solidão. O quadro se agrava mais quando todos os escravos, após o bajularem e o chamarem de alferes, fogem durante a noite levando até mesmo os cachorros. Jacobina sente que os dias ficam mais compridos e sente ferir sua alma interior.
Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. (ASSIS, 1970: p. 226-227)
Jacobina fica completamente sozinho na casa e há dias não tem coragem de olhar-se no espelho. Durante as longas horas de solidão, Jacobina sente que seu self vai desvanescendo, dando lugar a outro que foi tomando forças por ter sido aceito por sua gênese e nutrido pelos outros que fazem parte de sua vida. E é justamente o espelho o local da duplicação do personagem, pois é através de sua imagem como alferes que o personagem tenta transformar seu eu efêmero em um eu perpétuo. É o lugar em que ele já não se sente mais sozinho e encontra forças para enfrentar seus dias de solidão.
Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. (ASSIS, 1970: p. 269)
Ao procurar sua imagem com o fim de achar-se dois, Jacobina fica horrorizado por não ver nem o próprio reflexo com clareza. Apesar de sentir-se dividido, pois até mesmo seus sonhos o lembravam de ser o alferes, Jacobina mal vê um no reflexo no espelho. O personagem já havia dito que o espelho era velho, mas nunca havia mencionado dificuldades para visualizar sua imagem. Antes de procurar-se no espelho de forma duplicada, Jacobina somente sentia alguma satisfação em seus sonhos, pois era o alferes que ali estava. Jacobina diz que o sono é irmão da morte e explica que dormir elimina a necessidade de busca de uma alma externa.
Tinha uma sensação Inexplicável[GT2]. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. (ASSIS, 1970: p. 267-268)
Quem “não tornava” eram as pessoas na vida de Jacobina que o chamavam de alferes e que o ajudavam a nutrir esta alma externa e este duplo necessário. Eram os mimos que o personagem recebia que davam forças para que ele vivesse no limiar de dois selves. Sua aceitação era total e o próprio personagem assumia que o homem simples havia cedido o espaço para o respeitado alferes. Todas as almas exteriores que Jacobina já teve passaram a não ter mais importância. A formação de seu duplo seria uma forma de assegurar a preservação de seu ego, pois a farda sempre o transformaria em alferes. Até mesmo se fosse enterrado com a farda, o personagem perpetuaria sua alma, enganando, assim, a morte. É o narcisismo do personagem que toma conta de sua consciência e a duplica.
O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. (ASSIS, 1970: p. 263-264)
Quando Jacobina se olha no espelho há uma relação de identificação com sua imagem, pois ele vê ali a figura do homem que recebe todas as cortesias, e não a do homem comum. A consciência de um “eu” paralelo, ou seja, de um “outro”, é trazida pelo espelho aos olhos do personagem. Ao entrar em conflito com sua imagem vestido de alferes, Jacobina transforma seu “eu” único em um sujeito cindido. O personagem se depara com sua imagem no espelho, a qual é um signo e, através do espelho, vê seu conteúdo e o interpreta. Sua imagem mostra aquilo que ele sempre quis ser e o personagem acredita na informação que o espelho lhe passa.
O reflexo de Jacobina passa então a ser seu duplo, e ambos passam a coexistir em perfeita simbiose em um mesmo cronotopo. Ao assumir sua imagem como duplo, Jacobina passa a ter uma representação consciente de dois mundos construídos em sua mente em decorrência de seu reflexo, que passa a ser cópia da realidade, criando assim, no universo literário, um efeito de verossimilhança. Para Jacobina, o espelho lhe mostrou um lado adormecido em seu subconsciente a quem ele dá autonomia.
Bakhtin diz que o signo ideológico tem vida na medida em que ele se realiza no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do suporte ideológico (BAKHTIN, 1997: p. 64). Portanto, temos a imagem como um signo ideológico a partir do momento que estiver ligada à consciência do personagem. É o personagem dividido dentro de seu mundo verossimilhante, onde sua imagem se liga à sua consciência. Jacobina tem seu universo duplicado mesmo antes de olhar-se no espelho, mas é somente diante deste que o percebe.
A construção de seu alter ego já se fazia na medida em que as pessoas o reconheciam apenas como o alferes, fazendo com o que o “Joãozinho” fosse dando lugar à figura importante que se transformara. Sua família o reconhecia como o alferes, pois o orgulho era grande e sincero. Já muitos de seus conhecidos passaram a ignorá-lo por inveja, pois também o reconheciam apenas como o alferes que lhes roubara o lugar. Porém, alguns de seus amigos, de tanta alegria, lhe deram a farda de presente. O ‘senhor alferes’ merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou (ASSIS, 1970, p. 263).
O espelho é um ponto crucial no processo de construção de seu duplo, porém a duplicidade do personagem se dá em decorrência de uma cisão interna de sua personalidade, mas somente o espelho é capaz de ratificar o confronto interno do personagem. Jacobina explica a seus amigos como cada homem tem sua outra metade e que o homem não é único, portanto há um “outro” que o complementa. Jacobina narra como cada pessoa constrói sua alteridade, não somente com o espelho, mas com qualquer objeto que se identifique, e diz que cada homem pode ser comparado a uma laranja. A perda de uma de suas metades poderá acarretar a perda de sua existência completa.
Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... [...] A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. (ASSIS, 1970: p. 259)
As duas almas são, de acordo com Jacobina, as partes necessárias de um homem para que ele se complete. Na conversa de Jacobina com seus quatro companheiros, ele começa a descrever o que aconteceu com ele quando estava com 25 anos. Ele descreve minuciosamente toda a trama em torno do espelho, a influência deste na criação de seu duplo e como, por consequência, ele via somente o alferes ao olhar-se no espelho, e não o Jacobina.
O personagem descreve como era tratado por todos de forma diferente, principalmente por sua tia Marcolina, a qual mandou colocar em seu quarto um grande espelho. O espelho é descrito no conto como uma obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples. (ASSIS, 1970: p. 262). Jacobina continua a narrar e explica que tantos mimos recebidos fizeram nele uma grande transformação, aguçada e completada pelo natural sentimento da mocidade. No desfecho do conto temos como de fato esse duplo foi concebido e confrontado.
Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar. [...] Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois, começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir. (ASSIS, 1970: p. 271)
O espelho acorda o que estava adormecido e a outra parte encontrada no reflexo passa a ser sua companhia constante a ponto de o personagem não sentir falta de outras pessoas. Encontra sua outra parte, o que o ajuda a complementar o que havia se perdido dentro da casa vazia – o seu “eu” –, e é dentro do espelho que o personagem encontra essa parte complementar. Ao encontrá-la, completa-se novamente e tem forças para encarar a solidão. Jacobina procura suas partes complementares dentro do espelho e é ao alcançar o que busca que encontra paz.
Nesse conto podemos perceber que a farda de alferes é nada mais que uma máscara para Jacobina, uma outra face que ele só vê diante do espelho, pois sem sua farda já não se reconhece mais. A máscara é reconhecida também como uma outra forma de duplo. É como se estivesse tão acostumado a usar a máscara que ao tirá-la já não saiba mais quem é. Uma farda (ou um fardo) obrigatória que o acompanha.
O espelho para Jacobina, a água de Narciso ou ainda o espelho que derrotou a Medusa é um convite ao insólito. A reação de quem o contempla é única, bem como a representação mimética em sua superfície. Esse caráter duplo que o espelho traz a certos indivíduos ou personagens, apesar da natureza ilusória, é a representação dupla de nosso próprio corpo. Mas o que vemos em “O espelho” é um ser dividido em sua essência, e o espelho passa a ser o lugar que o “outro” ocupa.
Se as imagens do espelho tivessem que ser comparadas às palavras, essas seriam iguais aos pronomes pessoais: como o pronome eu, que se eu mesmo pronuncio quer dizer ‘mim’, e se uma outra pessoa o pronuncia quer dizer aquele outro. (ECO, 1989: p. 21). O espelho une e separa o “eu” do “outro” pela imagem mimética. É a causa tanto do afastamento quanto da aproximação. É um objeto polissêmico à medida que o vemos não somente como o objeto parte do mundo real em que sua única função talvez seja mostrar o reflexo de quem o contempla. Esse novo sentido de se buscar seu duplo e dividir-se é que faz do espelho um objeto mítico e polissêmico.
O objeto é polissêmico, isto é, oferece-se facilmente a várias leituras de sentido (...). Em outras palavras, cada homem tem em si, por assim dizer, vários léxicos, várias reservas de leitura, segundo o número de saberes, de níveis culturais de que dispõe. Todos os graus de saber, de cultura, e de situação, são possíveis perante um objeto ou uma coleção de objetos. (BARTHES, 1987, p. 178)
A farda do alferes traz essa polissemia refletida através do espelho, transformando-o também em um objeto de sentido múltiplo. O espelho completa o indivíduo e também se completa com a imagem refletida do indivíduo. Qualquer objeto ou ser pode ser transformado no campo da verossimilhança, das fábulas ou das narrativas em objeto de projeção ou formação do duplo. É o ideal da busca de uma parte que, inconscientemente, está perdida, desfragmentada. É o imaginário que nos unifica e nos separa do nosso senso de fantasia e realidade. É o momento em que o verdadeiro e o verossímil se encontram.
Apesar de vários exemplos que Jacobina dá, seu duplo passa a ser um espelho. Na conversa com seus quatro companheiros, ele começa a descrever o que aconteceu com ele quando estava com 25 anos. Ele descreve minuciosamente toda a trama em torno do espelho e de como este influenciou na criação de seu duplo:
...Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... [...] Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou... (ASSIS, 1970: p. 262-263)
Esse processo de olhar-se no espelho pode ser visto como um ato dialógico, pois há um diálogo com aquele que o contempla. Passamos a nos ver como os outros nos veem, tête-à-tête, e ao nos contemplarmos passamos por um momento de transformação, uma vez que ocorre uma mudança interna consciente ou inconsciente daquele que o contempla. Essa transformação é, por muitas vezes, parte da construção e desconstrução de nosso duplo devido ao confronto que há com nossa imagem.
Ao passo que Jacobina relata sua aventura, percebemos que o convívio com o outro vai desaparecendo à medida que o personagem é tirado da sociedade e levado ao sítio. Após algum tempo ali, cercado de mimos de sua tia e dos criados, sua tia parte e o deixa apenas com os escravos. Com a fuga destes, Jacobina se vê na companhia de si mesmo, o que o leva, inclusive, a ter medo de olhar-se no espelho.
Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. (ASSIS, 1970, p. 269)
Ao olhar-se no espelho, Jacobina já não se reconhecia e recuou ao ver sua imagem distorcida e nada clara. O próprio personagem sabe que isso era impossível de acontecer. Porém, seu inconsciente estava tomando conta de seu consciente, o que o fez atribuir o fato à excitação nervosa em que andava. Temendo enlouquecer, Jacobina decide ir embora e, ao começar a se vestir, lembra-se de vestir a farda de alferes.
Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar. [...] Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir. (ASSIS, 1970, p. 270-271)
O espelho, carregado de mitos e lendas, mostra no conto de Machado de Assis a duplicação de nossa alma. O espelho não tem como única função refletir uma imagem; tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação, passa por uma transformação. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007: p. 396). O espelho não é o lugar da gênese, mas sim onde se coloca o outro, logo ele reflete a partir daquele que o contempla para então ser contemplado por sua imagem. Apesar de não ser o local da gênese, é onde ela se duplica: seja como for, neste caso não é uma alma única e singular que está expressa; no acontecimento da autocontemplação interfere um segundo participante, um outro fictício (BAKHTIN, 2003: p. 31). Esse outro fictício é o engodo, é aquele que traz a sensação sedutora e enganosa de duplicação de um ser que foi feito para ser único.
Quando uma pessoa passa a contemplar seu reflexo como um ser totalmente separado de seu self, há o confronto e a divisão do “eu” que se separa em dois diferentes egos e em dois mundos. Há vários fatores que podem levar um indivíduo a se sentir dividido e separado de seu self a ponto de se ver como um ser diferente em frente ao espelho e confrontar sua imagem, que na verdade seria para ser sua complementaridade. Ambas personalidades, uma vez assumidas como distintas, passam a ter autonomia e comportamentos diferenciados, porém dentro do mesmo indivíduo. É o indivíduo que tem a percepção alterada e acredita que há dois selves separados em dois mundos distintos: o mundo real e o mundo dentro do espelho.
Se ao encararmos o duplo há identificação ou afastamento, pois traz um processo de comparação – tanto na semelhança quanto na diferença. O mesmo acontece ao encararmos o espelho. O texto dialógico é uma arena de conflitos. De um ponto de vista bakhtiniano, o discurso de um homem não é visto de forma isolada, portanto há conflito com a imagem. Ao usar um espelho, o homem, automaticamente, faz uso da expressão corporal e de intenções, portanto o indivíduo em sua individualidade não é concebido de forma isolada, mas dentro de um mesmo contexto de sua imagem – de seu duplo. Como dissociar o homem de sua imagem, uma vez que é justamente isso que ele procura ao olhar-se no espelho?
Na problemática do duplo, é frequente o desvanecimento entre os limites do real e do fantástico. Assim, não é de estranhar que algo que até aí havíamos considerado como imaginário nos surja como real, ou que o duplo que representa e simboliza se aproprie das totais competências e funções do “eu” de que é representação ou símbolo. Analogamente, devemos entender o duplo como uma entidade que evolui e se renova, atualizando o seu conteúdo, à medida que o “eu” se vai também desenvolvendo e criando em si mesmo uma “consciência moral”. Cumpre-nos finalmente concluir que a temática do duplo é em si mesma uma fonte quase inesgotável de acepções, resultando da sua aplicação um fascínio e uma polivalência assertivos. (CUNHA, E-dicionário[GT3])
A linha tênue entre o real e o verossimilhante é o que nos faz aceitar o surgimento do duplo e a entendê-lo como uma entidade que tem vida própria e que se renova, ao mesmo tempo em que o “eu” também evolui. Ao ocuparmos nossas posições enquanto sujeito e fazermos uso de nossas relações dialógicas, temos um contato direto não somente com nossa imagem, mas com o “outro”, nosso duplo. Esse momento narcíseo, em que nosso rosto está ao alcance de nossa visão, nos traz uma visão limitada, pois traz nossa imagem externa, não nossa essência. Trava-se uma batalha entre o “eu interior” e o “eu exterior” trazendo assim uma arena de conflitos nessa relação dialógica e axiológica. Falta, no reflexo, nossa parte interna, que é como realmente nos conhecemos, e esse “olhar no espelho” passa a ser uma busca pelo “eu” que os outros não veem: o nosso verdadeiro “eu”. É a busca pela complementaridade.
(...) minha imagem externa – meu ser para os outros – procura vincular-se à minha autoconsciência, dá-se um retorno a mim mesmo com vistas a usar em proveito próprio meu ser para os outros. Neste caso, meu reflexo no outro, aquilo que sou para o outro, torna-se meu duplo, que irrompe em minha autoconsciência, turva-lhe a pureza e desvia da atitude axiológica direta para comigo. (BAKHTIN, 2003, p. 55)
Bakhtin dá autonomia à imagem criada pelo espelho quando diz que ela procura vincular-se à autoconsciência e ratifica essa autonomia ao dizer que o reflexo no outro, aquilo que somos para o outro, torna-se o duplo que irrompe e deturpa a autoconsciência.
Dizer que o espelho é um mero simulacro é negar o mundo dentro dele. Esse mundo só poderá ser aceito pelo leitor-modelo, não pelo leitor empírico. O leitor-modelo é uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar. (ECO, 1994: p. 15). Aceitar o fato de que Jacobina vê a transformação exterior por causa de um duplo interior que o acompanha é papel de um leitor disposto a aceitar a verossimilhança da obra. São as escolhas que o leitor deve fazer ao começar um livro de ficção ou até mesmo de não ficção. Se o simulacro simula uma realidade e o personagem acredita nessa simulação, ela passa a ser real. Apesar de ser vista como um artifício destituído de um modelo original, negar a cópia é negar-se.
BIBLIOGRAFIA
ASSIS, Machado. “O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana” . In: Obras completas de Machado de Assis, v. 15. São Paulo: W. M. Jackson, 1970, p. 257.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
____¬¬________. Formas de tempo e cronotopo no romance. In: Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1993.
BARTHES, Roland. Mitologia. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. 7 ed. São Paulo: Difel, 1987.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. II. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
CUNHA, Carla. "Duplo". In: E-dicionário de termos literário s. Disponível em: http://www.fcsh.unl.pt/edtz.
ECO, Umberto. Sobre os espelhos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1989.
___________. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FERNANDEZ-BRAVO, Nicole. In: Brunel, Pierre - Dicionário de mitos literários. Brasília: UNB/José Olympio, 1997, p. 261-287.[GT4]
RANK, Otto. O duplo. Trad. Mary B. Lee. – Coeditora Basílica – 2ª ed., Rio de Janeiro, 1939. [GT5]
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad de A. Chelini , José P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1969.