O APOLÍNEO E O DIONISÍACO EM QUESTÃO: O HOMEM DUPLICADO À LUZ DA FILOSOFIA NIETZSCHIANA
Nefatalin Gonçalves Neto
Mestrando em Letras, Literatura Portuguesa, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, sob orientação da professora doutora Lilian Lopondo.
Tem cuidado, vigia-te, quando uma pessoa começa
a falsear nunca se sabe até onde chegará.
(SARAMAGO, O Homem Duplicado, p. 125).
Literatura e Filosofia, cada uma a seu modo, tentam explicar as complexidades da vida humana e suas limitações, seus problemas e possíveis soluções. Tanto que, muitas das vezes, as duas áreas de conhecimento caminham lado a lado nessa tarefa de perscrutar o ser humano em busca de suas respostas. Um dos escritores que muito seguiu esse caminho foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Ao se dedicar à questão da tragédia grega em seu livro A Origem da Tragédia, escrito no ano de 1872, o escritor alemão criará os termos apolíneo e dionisíaco para refletir sobre o nascimento e desenvolvimento da tragédia grega.
Segundo o filósofo alemão, apolíneo e dionisíaco são um “duplo impulso da natureza”. (NIETZSCHE, 1992, p. 48 [1]) que, mesmo distantes, em certo momento da história se juntaram e formaram aquilo que conhecemos como tragédia ática. Segundo as palavras do próprio filósofo,
Ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da “vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática. (Idem, p. 27).
Voltas teóricas à parte, os termos apolíneo e dionisíaco são figuras axiais que expressam uma oposição central e toma como referência as divindades superiores Apolo e Dioniso da mitologia grega da Antiguidade. Tanto apolíneo quanto dionisíaco valorizam a percepção imediata dos dinamismos espontâneos da natureza – o fluir e o conter, as definições claras e discerníveis. Já na Antiguidade acreditava-se que todos os deuses se resumiam a um só, embora existisse a crença em duas entidades universais: de um lado, Dioniso, que apagava toda a mancha de pecado e do outro Apolo, que libertava a alma do corpo material.
Retomando essa dualidade, Nietzsche demonstra que tanto o apolíneo quanto o dionisíaco são conceitos antitéticos, mas de uma espécie dialética necessária à existência da arte e, para além dela, de todos os homens. Nas palavras de Nietzsche:
O contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações. Tomamos essas denominações dos gregos, que tornam perceptíveis à mente perspicaz os profundos ensinamentos secretos de sua visão de arte, não, a bem dizer, por meio de conceitos, mas nas figuras penetrantemente claras do seu mundo dos deuses. (Idem, p. 27)
Ao justapor apolíneo e dionisíaco, Nietzsche desvela-nos duas forças opostas que funcionam, de certo modo e com as devidas restrições, à semelhança da oposição existente entre Yin/Yang, [2] e que podem servir para se pensar a Literatura e suas diversas formas de manifestação.
Edificados nessa justaposição dialética, nosso intuito aqui é pensar a função dos personagens Tertuliano Máximo Afonso [3] e Daniel Santa-Clara/Antonio Claro, que figuram no romance O Homem Duplicado, do escritor português José Saramago. Se, como nos diz Nietzsche, “ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas” (Idem, ibidem), tentaremos entender como as citadas personagens representam na diegese narrativa esses impulsos.
Se as narrativas literárias de Saramago são eminentemente de caráter filosófico (com certo timbre ensaísta), atuando como uma espécie de provocação à racionalidade contemporânea, no romance que ora colocamos em tela, o escritor português percorre o caminho – já trilhado em Todos os Nomes (SARAMAGO, 1998) – que consiste no processo investigativo levado a cabo por um protagonista perturbado, depressivo e solitário. Da mesma forma que no romance anteriormente citado, em O Homem Duplicado encontramos novamente um protagonista em uma crise existencial que, acidentalmente, descobre não ser mais uma pessoa singular no mundo. Ou seja, a trama que envolve o romance, desta vez, origina-se quando o protagonista reconhece ser possuidor de um duplo.
Bebendo na fonte do topos da duplicidade, Saramago presentifica neste uma figuração em que apolíneo e dionisíaco representam as duas faces do duplo que, tal como a face de Jano, se contrapõe, mas não existe sem o seu oposto. Ou, como já nos ensinava a sabedoria nietzschiana, “Apolo não podia viver sem Dionísio! O ‘titânico’ e o ‘bárbaro’ eram, no fim de contas, precisamente uma necessidade tal como o apolíneo!” (Idem, p. 41).
Expressão de uma unidade dualista, vemos que os impulsos analisados por Nietzsche correspondem, em certos aspectos, aos fundamentos do duplo já que o apolíneo com sua clareza e seu poder criativo para produzir imagens aproxima-se da categoria do Eu e Dionísio, com sua obscuridade e embriaguez, do elemento duplicado – o Outro. Isso porque Apolo e Dioniso (deuses superiores da mitologia grega) representam o eterno conflito entre a noite e o dia, o claro e o escuro, a água e a terra, o ar e o fogo. Como forças contrárias, equivalem de certa forma à oposição que os personagens Daniel Santa-Clara/Antonio Claro e Tertuliano Máximo Afonso expressam.
O professor de História Tertuliano Máximo Afonso, protagonista da narrativa, é um homem calmo e centrado, um homem de “nome nada comum, de um sabor clássico que o tempo veio a tornar rançoso” (HD, p. 9), e que possui um espírito apático e abatido, mas apesar de depressivo, não deixa de ser sonhador. Essa imagem de homem que Tertuliano apresenta se aproxima, em um primeiro momento da narrativa, feitas as devidas proporções, à “alegre necessidade da experiência onírica [que] foi do mesmo modo expressa pelos gregos em Apolo (...)” (NIETZCHE, 1992, p. 29). A vida de Tertuliano possui uma clareza alva, um refreamento emocional distinto com uma garantida inteireza de individualidade humana no meio do caos e do terror que nos assaltam durante a vida (isso no começo da narrativa, que fique claro). Seu comportamento expressa alegria da “aparência” que segundo o filósofo alemão é uma qualidade do apolíneo.
Já a personagem antagonista Daniel Santa Clara/Antonio Claro expressa, a primeiro momento na narrativa, a condição dionisíaca, pois por seu caráter de exaltação (não nos esqueçamos que uma das características da religião dionisíaca é a mania, a elevação do devoto a um estado superior de arrebatamento tal a que convinha o nome de divina loucura), multiplica as nuances de seu duplo. A personagem também trata-se de um ator, aquele que enverga máscaras e se multiplica na tela, e há, ainda, o fato de que ele usa pseudônimo, artifícios que podemos associar imediatamente a Dioniso, pois esses fatos fazem com que a personagem represente a figura do Outro (entendemos que Claro seja o outro por aparecer posteriormente a Tertuliano na narrativa, fato que objetiva nossa afirmação, já que não sabemos qual dos dois é copia do outro).
Deus dúplice, que une duas faces em sua pessoa, Dioniso representa
as múltiplas figuras do Outro. Ele nos abre, nesta terra e no próprio âmbito da cidade, o caminho de uma evasão para uma desconcertante estranheza. Dioniso nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contrário daquilo que somos comumente. (2006, p. 80)
Como nos esclarece Vernant, Dioniso representa as multiplas faces, sua associação com a figura do ator é imprescindível. Se Apolo é a imagem divina do que Nietzsche chama, retomando as palavras de Schopenhauer, principium individuationis, o ímpeto dionisíaco corresponde à violação deste princípio de individuação, provocando o terror e o êxtase (mesmo sentimento que o duplo causa quando entra em contato com o sujeito a quem duplica).
Segundo Vernant,
Dioniso encarna, segundo a bela frase de Louis Gernet, a figura do Outro. Seu papel não é confirmar e reforçar, sacralizando-a, a ordem humana e social. Dioniso questiona essa ordem; ele a faz despedaçar-se ao revelar, por sua presença, outro aspecto do sagrado, já não regular, estável e definido, mas estranho, inapreensível e desconcertante. Único deus grego dotado de um poder de maya, de magia, ele está além de todas as formas, escapa a todas as definições, reveste todos os aspectos sem se deixar encerrar em nenhum. À maneira de um ilusionista, joga com as aparências, embaralha as fronteiras entre o fantástico e o real. Ubiquitário, nunca está ali onde está, sempre presente ao mesmo tempo aqui, alhures e em lugar algum. Assim que ele aparece, as categorias distintas, as oposições nítidas, que dão coerência e racionalidade ao mundo, esfumam-se, fundem-se e passam de umas para outras: o masculino e o feminino, aos quais ele se aparenta simultaneamente; o céu e a terra, que ele une inserindo, quando surge, o sobrenatural em plena natureza, bem no meio dos homens; nele e por ele, o jovem e o velho, o selvagem e o civilizado, o distante e o próximo, o além e este mundo se encontram. E mais: ele elimina a distância que separa os deuses dos homens, e esses dos animais. (Idem, p. 77-78)
Guiando-nos pelas veredas da reflexão de Vernant, se Dioniso questiona a ordem, o regular e o definido, ele pode ser uma imagem representativa da personagem Daniel Santa Clara/Antonio Claro.
Entretanto, essa posição começa a mudar quando o professor de história procurando meios de vencer a depressão que se abatia sobre ele, aceita a sugestão de um colega de trabalho – o Professor de Matemática – e procura distrair-se assistindo a um filme de classe B intitulado “Quem porfia mata a caça”. Nesse filme Tertuliano depara-se com seu duplo encarnado na pessoa de um dos figurantes que nele atua. Embasbacado com tão impressionante semelhança, Tertuliano Máximo Afonso iniciará um processo investigativo (sobre o qual se desenvolve todo romance) de busca por esse outro idêntico a si.
Quando Tertuliano toma conhecimento da existência de seu duplo, ele passa a uma perseguição impetuosa para primeiro descobrir quem ele é e, após a descoberta, conhecê-lo e conversar com o mesmo. Essa perseguição faz com que a personagem saia de seu estado de inanição e passe a um estágio de perseguição. Podemos afirmar que essa iniciativa marca a passagem de um estado apolíneo para um estado dionisíaco em Tertuliano, já que é por meio dessa ação, tantas vezes repreendida pelo senso comum, que a história culminará na morte do Outro e na bipartição do Eu.
Entretanto, sendo figuração do apolíneo, a perseguição empreendida por Tertuliano não terá um fundo alicerçado, ela apenas é reflexo da busca que a personagem empreende para entender sua identidade em crise. A função persecutória está ligada essencialmente à figuração dionisíaca, tanto que, após descobrir a existência de Tertuliano, é Daniel Santa Clara/Antonio Claro quem empreenderá também uma busca a Tertuliano, seu Outro.
E assim como Tertuliano Máximo Afonso veio de barba postiça a esta rua para intentar ver António Claro e a mulher dele, assim de barba postiça irá também António Claro à rua onde reside Maria da Paz para descobrir que mulher é ela, assim a seguirá até ao banco e alguma vez mesmo à vista da casa de Tertuliano Máximo Afonso, assim irá ser a sua sombra pelo tempo necessário e até que a força compulsiva do que está escrito e do que se for escrevendo disponha de outra maneira. (HD, p. 246)
O fragmento nos revela ainda outra informação de grande importância para a narrativa. Assim como Tertuliano usou uma barba postiça para empreender sua busca em território dionisíaco, também a figuração dionisíaca usara uma barba para seguir os passos de seu duplo e saber qual a rotina de sua vida. Ao vermos os duplos perseguirem-se mutuamente, percebemos que a vida das personagens centrais como que se entramam uma na outra, expressando assim, discursivamente, a busca que Nietzsche afirma haver entre os dois impulsos aqui tratados.
Podemos notar também que a narrativa neste momento como que se duplica, já que assim como Tertuliano agiu, o seu duplo agirá novamente usando os mesmos passos e as mesmas táticas que o primeiro usou no inicio da narrativa. Espelhos que se descobrem, duplos que se procuram, Tertuliano Máximo Afonso e Daniel Santa Clara/Antonio Claro apenas vivem uma crise existencial que os perturba – crise existencial que assola o homem contemporâneo – que se vê sob a ameaça da crise identitária.
Quando nos damos conta do pé em que está o romance, já estamos dentro do conflituoso labirinto da narrativa saramaguiana e já não conseguimos sair dele antes do ponto final que encerra a narrativa. E o interessante é que a partir desse momento a diegese como que acelera, e parece que há uma corrida, como que realizando a profecia que o título fílmico expressava, já que “a caça esta sendo porfiada”.
Por fim, feitas as afirmações, falta descobrir quem é o caçador e quem é a caça. Muitas podem ser as respostas, dependendo do olhar que tivermos sobre a narrativa. Porém, quando percebemos a mudança de direção da perseguição – Tertuliano passa de perseguidor a perseguido – é possível enxergar Antonio Claro/Daniel Santa-Clara como caçador e seu duplo como a caça, ou seja, mais uma vez uma narrativa em espelhamento que se desenvolve a duplicar cada passo da narrativa. Por isso, fluxo e força impetuosos, o ator Antonio Claro/Daniel Santa-Clara lança como isca uma proposta indecente a sua caça para poupar-lhe “a vida”:
A Maria da Paz está fora do assunto, Sim, tão fora do assunto que sou capaz de apostar a cabeça em como ela desconhece a minha existência, Como sabe, Não tenho a certeza, é uma suposição, mas você não o nega, Achei preferível assim, não quis que pudesse suceder-lhe o mesmo que à sua mulher, Excelente coração, o seu, e está nas suas mãos que tal não venha a acontecer, Não compreendo, Acabemos com os rodeios, você fez-me uma pergunta e desde então tem estado a dar voltas para não ouvir a resposta que tenho para dar-lhe, Vá-se embora, Não tenciono ficar cá, Vá-se embora já, imediatamente, Muito bem, irei apresentar-me em carne e osso à sua amiga e contar-lhe-ei o que lhe ocultou por falta de coragem ou qualquer outra razão que só você conhece, Se tivesse aqui uma arma, matava-o, É possível, mas isto não é cinema, meu caro, na vida as coisas são muito mais simples, mesmo quando há assassinos e assassinados, Despeje o saco de uma vez, falou com ela, responda-me de uma vez, Falei, sim, pelo telefone, E que lhe disse, Convidei-a para ir hoje comigo ver uma casa de campo que está para alugar, A sua casa de campo, Exactamente, a minha casa de campo, mas fique descansado, quem falou pelo telefone com a sua amiga Maria da Paz não foi António Claro, mas sim Tertuliano Máximo Afonso, Você está doido, que diabólica tramóia é esta, que pretende, Quer que lhe diga, Exijo-o, Pretendo passar esta noite com ela, nada mais. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se de rompante e avançou para António Claro de punhos cerrados, mas tropeçou na pequena mesa que os separava e teria ido ao chão se o outro não o tivesse segurado no último instante. Esbracejou, debateu-se, mas António Claro, agilmente, dominou-o com uma prisão rápida de braço que o deixou imobilizado, Meta isto na cabeça antes que se aleije, disse, você não é homem para mim. Empurrou-o para o sofá e voltou a sentar-se. Tertuliano Máximo Afonso olhou-o com ressentimento, ao mesmo tempo que esfregava o braço dorido. (HD, p. 276-277)
Desejando ver o fim do outro, Antonio Claro/Daniel Santa-Clara faz a proposta de perdoar o mal que a aparição de Tertuliano causou em sua vida por meio de uma troca de identidades. Uma troca que objetiva no ator o único fim de se aproveitar sexualmente da parceira de seu duplo, Maria da Paz.
O que seria uma troca imperceptível acaba dando errado, pois por um lado, Tertuliano não consegue se passar pelo outro sem causar choques irreversíveis à sua identidade, enquanto que com Antonio Claro/Daniel Santa-Clara a farsa é percebida logo que Maria da Paz repara a marca da aliança que está transparecendo no dedo daquele que ela agora já sabe não ser mais seu parceiro. Por conta de descobrir a verdade, Maria da Paz e Antonio Claro/Daniel Santa-Clara brigam dentro do carro em que estão voltando da casa de sítio onde passaram o fim de semana e acabam batendo em um caminhão e falecendo os dois.
Desse fato temos que, após todo o incidente a esposa de Antonio Claro/Daniel Santa-Clara descobre a farsa, recebe a notícia de falecimento do esposo que estava travestido como seu duplo e pede a Tertuliano que assuma o lugar do marido que morreu no acidente. Tertuliano não titubeia em assumir a vida de seu duplo como se fosse sua própria vida, e comunica sua troca de identidade apenas para a mãe, que já estava a sofrer a morte do filho, mas se tranquiliza ao saber a verdade. Ao assumir o lugar do outro na vida social, Tertuliano mata sua existência legítima e original, assumindo a existência de seu alter e satisfazendo ironicamente o ditado popular português que dá nome ao filme que inicia toda essa desordem entre as personagens: “Quem porfia mata a caça”.
Ocorrida a tragédia, Tertuliano precisará encontrar uma forma nova de colocar-se no mundo que é iniciada pela acolhida que Helena, a mulher de Antonio Claro/Daniel Santa-Clara, lhe faz. A descoberta do outro, cuja busca o levou a si mesmo, permitiu ao professor de História experimentar a confrontação elementar de sua identidade, o que serviu para provar que
sua natureza [a de Tertuliano] a um só tempo dionisíaca e apolínea, poderia ser do seguinte modo expressa em uma formulação conceitual: “Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificado”. (NIETZSCHE, 1992, p. 69)
É somente no final da narrativa que percebemos que a figura de Tertuliano expressa a junção entre apolíneo e dionisíaco. Em um primeiro momento apolíneo, com sua personalidade apática. Logo depois dionisíaco, com sua busca incessante pelo seu duplo. E por fim uma mescla entre os dois impulsos, já que fará coexistir o professor e o ator em uma figura dúplice, apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo.
Irreconciliáveis a primeira vista, ator e professor secundários entenderão, nas mãos de um terceiro – que é Antonio Claro/Daniel Santa-Clara por nome e vida social e Tertuliano Máximo Afonso por interioridade e existência – que são iguais entre si em vários aspectos, e que precisavam um do outro para subsistir.
Separados e incompatíveis como eram, os dois figurantes do romance foram até antes de sua união apenas objetos de um sistema (educacional, cinematográfico) que os envolve; eles não possuíam até então uma identidade fixa, que começou a se formar e a se descobrir só após o encontro dos dois. A fusão que acontece com as duas personagens não é um estágio natural do desenvolvimento da narrativa, mas um “feito”, uma conquista excepcional – não uma mediana conciliação harmoniosa, mas uma arquitetura, um encontro. A morte dionisíaca viabiliza a contenção dissonante, na qual a firme medida apolínea impõe seus limites ao deslocado Tertuliano.
Por tal, a morte de Antonio Claro/Daniel Santa-Clara encontrará sua ressurreição na figura de Tertuliano Máximo Afonso. Após o acontecimento trágico, o vulto de Tertuliano torna-se uma atualidade criadora da presença do outro em quem se converteu, seja em termos institucionais (assume seu nome, seus documentos, sua casa, sua esposa), seja em termos identitários (a atitude violenta de ir armado ao encontro que marca com o triplicado no final do romance). Percebemos então que antagonistas são na verdade absurdamente comuns e complementares.
Os duplos se unem na figura do sobrevivente da trama para formar uma nova e mais coerente identidade, uma faceta mais profunda do eu que é necessariamente tangenciado pelo outro. O eu se dá a conhecer no outro, que lhe outorga existência. É a junção de apolíneo e dionisíaco. Impulsos que, literariamente trabalhados por Saramago, permitem a visualização da luta do sujeito em subsistir enquanto aprende continuamente a se posicionar diante da vida. O diálogo do eu e do outro, relacionado ao tema do duplo, reflete uma inquietude ontológica em Saramago e, ao mesmo tempo, aponta para uma profunda reflexão sobre a vida. Para Bakhtin “o homem não tem território interior soberano, ele está todo e sempre na fronteira. Ao olhar para dentro de si mesmo, ele olha o outro nos olhos ou pelos olhos do outro” (BAKHTIN, 1997, p. 212). É o homem no limite dialógico, permitindo-se coexistir com o Outro. São as figuras de Antonio Claro/Daniel Santa-Clara e de Tertuliano Máximo Afonso que coexistem e se descobrem ontologicamente.
Importa perceber que esse Outro expressa uma diferição criada pelo sujeito para concretização da sua própria identidade, seu próprio eu.
Tais reflexões demonstram que “o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, [...] que é capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal personalidade não existe se o outro não a cria” (BAKHTIN, 2006, p. 33). O outro é revelado pelo pensamento bakhtiniano como o verdadeiro formador da imagem do Eu, pois é somente por meio dele que o Eu se compreende. É essa imagem formadora do eu de que se vale Tertuliano Máximo Afonso para externar sua identidade em construção. Porém, o duplo e o esfacelar da personalidade, focalizados por Bakhtin e levados a cabo pela personagem saramaguiana, expressam a visão da imperfeição e do inacabamento do ser humano, tema que circula a literatura desde suas origens. Um mito que, por mais discutido que seja por diversas áreas do conhecimento, é literário.
José Saramago, ao que parece, está tentando dizer algo por meio de toda essa representação. Sua provocação à racionalidade contemporânea, que investe em um processo investigativo de um protagonista em crise existencial nos acorda para a questão de nossa própria condição. Viver, na narrativa saramaguiana, ultrapassa o meramente estar vivo, viver é construir história por meio de nossa própria identidade.
Alegoricamente representado, tal pensamento transpassa toda a narrativa saramaguiana. O professor de História é, na verdade, quem morre, uma vez que terá que esquecer sua própria vida e encarnar a figura do ator. Assim, o ator morreu verdadeiramente e, entretanto, continuará vivo publicamente na pele de Tertuliano Máximo Afonso. Trata-se de uma profunda lição: o professor de História está vivo, mas, na “verdade”, morreu. E o ator, por sua vez, morreu, mas, “na verdade”, está vivo. É a ficção que se entrama com a historicidade e fratura a totalidade da vida e da narrativa por meio do jogo cambiante do “estar vivo” e do “estar morto”.
Ao disseminar-se no repertório do outro, Tertuliano Máximo Afonso, “o inimaginável convertido em realidade, o absurdo conciliado com a razão” (HD, p. 167) nos embrenha pelas agruras da pós-modernidade e permite aventurarmo-nos a descobrir onde e como se esconde o humano em meio ao caos e à desordem estabelecida. A fragmentação do sujeito, presente desde a origem do romance e representada pelas múltiplas mudanças de Tertuliano, é cada vez mais forte e valorizada na escrita contemporânea. O sujeito contemporâneo é múltiplo por essência, os tipos estão cada vez mais em extinção. A complexidade do mundo é bem maior: as grandes verdades caíram por terra, não existe mais um único discurso verdadeiro. O sujeito pós-moderno, eivado pelo provisório, variável e problemático não possui uma configuração fixa, essencial ou permanente. Ele é, segundo as próprias palavras do romance,
uma caixa donde sempre pode saltar um palhaço a fazer caretas e a deitar-nos a língua de fora, mas há ocasiões em que esse mesmo palhaço se limita a olhar-nos por cima da borda da caixa, e se vê que, por acidente, estamos procedendo segundo o que é justo e honesto, acena aprovadoramente com a cabeça e desaparece a pensar que ainda não somos um caso perdido. (HD, p. 293)
Refletir sobre a condição do homem na atualidade é preocupação primordial das obras de José Saramago. O escritor propõe em seus romances uma análise do homem como sujeito agente e paciente, na medida em que sofre as ações exteriores e as reações provenientes de suas ações por parte do mundo exterior no processo histórico tanto individual quanto coletivo. O que nos propusemos realizar aqui foi mostrar como os expedientes criados por Saramago encontram coerência à luz da filosofia nietzschiana, e como
Mesmo quando parece inventar tudo, o narrador trabalha respeitando a linha de uma “imaginação lendária” que se tem modo de funcionamento, suas necessidades internas, sua coerência. Mesmo sem saber, o autor deve submeter-se às regras desse jogo de associações, de oposições, de homologias que a série de versões anteriores desencadeou e que constituem o arcabouço conceitual comum às narrativas desse tipo. Cada narrativa, para ganhar sentido, deve ser ligada e confrontada às outras, porque, juntas, compõem um mesmo espaço semântico cuja configuração particular é como que a marca característica da tradição [...]. (VERNANT, 2006, p. 25)
Em suma, o olhar que dirigimos para a narrativa saramaguiana deflagra a irrupção de uma filosofia que se quer fugaz, mas interpenetra cada linha da narrativa. Apenas tentamos compreender sua presença e sentido nestas mínimas reflexões.
NOTAS:
1. Apesar de consultarmos mais de uma tradução do texto de Nietzsche para compararmos e termos uma melhor contextualização do conteúdo por ele explicitado usaremos aqui a tradução realizada por Jacó Guinsburg, da Companhia das Letras, pois acreditamos ser a mais fiel e atual versão do texto do filósofo alemão. Para referência completa cf. bibliografia.
2. No pensamento oriental, os dois princípios antipódicos e, ao mesmo tempo, complementares abrangem todos os aspectos e fenômenos da vida social, tal como acontece no pensamento helênico com o impulso apolíneo e o impulso dionisíaco.
3. A repetição do nome completo do personagem Tertuliano Máximo Afonso ao longo deste artigo é proposital, pois objetiva manter seu uso hiperbólico tal qual acontecido na obra de Saramago. Essa hipérbole acaba apontando para um paradoxo: ela evoca uma personalidade histórica, eminente, mas não passa de um professor, anônimo e inexpressivo que busca ser reconhecido. O mesmo serve para o nome do antagonista Daniel Santa-Clara/Antonio Claro, que também terá seus dois nomes completos citados repetidamente ao longo do texto.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
______. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. A Origem da Tragédia. 5ªed. Lisboa: Cotovia, 1988.
______. A Origem da Tragédia, 5ª ed. Trad. de Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editora, 1988.
______. A Origem da Tragédia (ou Helenismo e Pessimismo). Trad. Jacó Guinsburg. 2ªed. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
SARAMAGO, José. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. O Homem Duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.