NOT DEAD, DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO:
A CONTEMPLAÇÃO DE UM DUPLO
Kátia Medeiros Suelotto
Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Integrante de grupo de pesquisa sobre o Duplo, liderado pela professora doutora Lílian Lopondo.
De acordo com Clément Rosset, em sua obra O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão,
só nos tornamos indesejáveis tentando não sê-lo, e que pedir ao outro para reconhecer que é indesejável equivale a querer suprimir sua própria indesejabilidade. Porque “ser si próprio” coincide aqui “com considerar-se um outro”; de modo que, pensando criticar a sua dissimulação, critico ele mesmo em pessoa. Mostrando-lhe que é diferente do que pensa ser, espero secretamente que ele seja diferente do que pensa ser, espero secretamente que ele seja diferente do que é, imaginando confusamente que ele poderia realmente não ser ele mesmo, mas justamente um outro (2008, p.97).
A crônica intitulada “Not dead”, de autoria do português José Luís Peixoto, trata de um eu que reconhece a existência de um outro dentro de si. Mais do que reconhecer, descreve a relação que mantém com esse duplo, uma relação que apresenta momentos de harmonia absoluta e momentos em que este mesmo duplo precisa ser posto em seu lugar, ou seja, em segundo plano:
Tenho um punk dentro de mim, debaixo da minha pele. Há vezes em que sou obrigado a pôr-me à sua frente e segurá-lo pelos ombros, quer fugir, quer dar pontapés nos caixotes do lixo e deixá-los espalhados no meio da rua. Seguro-o como se tentasse evitar uma briga. Não faças isso, não vale a pena. Na maior parte do tempo, esse punk está a dormir, sentado num passeio dentro de mim, encostado a uma parede, com as costas tortas, o pescoço torto, inconsciente, bêbado ou drogado, com o perfume dos lugares onde vou (PEIXOTO, 2009. Grifo nosso).
O duplo punk descrito no texto de José Luís Peixoto carrega em si a aura do marginal, do outsider e, conseqüentemente, do indesejável: “Depois, quando estamos no centro de uma multidão, esse punk quer sair, mas eu digo-lhe que não, ninguém pode vê-lo mais do que apenas um pouco, quase nada. Se o vissem, os professores universitários iriam chocar-se” (Idem. Grifo nosso). O fragmento de Rosset, citado anteriormente, atesta que “pedir ao outro para reconhecer que é indesejável equivale a querer suprimir a sua própria indesejabilidade”. Entretanto, o punk não é considerado indesejável pelo seu hospedeiro que, ao contrário, tem por ele grande estima: “Passamos muito tempo sozinhos, eu e esse punk. Se precisamos um do outro, basta chamarmos”. E mais: “Rimo-nos. E parece-nos que não há outra pessoa que possa compreender as nossas histórias” ( Idem). Verificamos que, apesar das características negativas desse duplo punk, não há um distanciamento entre o eu e ele, ou seja, o processo de identificação, ainda que inclua a constatação de aspectos negativos que dizem respeito somente ao duplo não promovem a negação do duplo pelo eu.
Vale ressaltar que a inadequação do duplo que, em determinadas situações, precisa ser oprimido, forcluído, equivale, em certa medida, à não-conformação do eu original, à sua própria incapacidade de aceitar que o mundo seja composto de leis e de regras, muitas vezes, sem sentido. Num dado momento, o eu afirma: “Esse punk gosta de sujar-se. As outras pessoas têm dificuldade em entender o prazer imenso de estar sujo, de não tomar banho, de deixar o tempo acumular-se na pele, de torná-la morna, da certeza de vida que existe por baixo de tudo isso” ( Idem). Observamos que o período que se inicia em “as outras pessoas têm dificuldade...” é um discurso do eu, daquele que narra, e não do seu duplo que, na crônica, não tem voz. É o eu quem afirma que as pessoas não compreendem o prazer de sujar-se e, veladamente, nos deixa crer que ele, ao contrário das outras pessoas, compreende tal prazer. O inconformismo explicitado nessas palavras deve ser atribuído ao eu e não ao seu duplo punk.
Carlos Ceia, ao conceituar o duplo, afirma que ele se origina num indivíduo, é uma duplicação desse eu e adquire existência própria, em geral, contrastante com esse eu. Em “Not dead” parece haver o desejo de contraste. Mas o que se deixa entrever, também, é que o eu original admira a coragem, a autenticidade de seu duplo. Nesse ponto, parece irônico nos referirmos à “autenticidade” do duplo porque nos acostumamos a pensar no duplo como cópia. Porém, não podemos nos esquecer da advertência de Carlos Ceia de que, num primeiro momento, o duplo pode ser conceituado como cópia, mas, por outro lado, adquire “existência própria” e, por essa razão, é autêntico. Dessa forma, é possível pensarmos que o eu original admira a autenticidade de seu duplo punk e, afinal de contas, esse próprio eu ressalta que “esse punk não é uma metáfora ou uma ironia. É um punk a sério”. E mais:
Esse punk gosta de escrever frases nas paredes, gosta de repetir refrões quatro vezes e considera que tanto as metáforas como as ironias são subterfúgios que algumas pessoas utilizam para não serem directas, para serem mentirosas, para serem cobardes e se protegerem daquilo que têm para dizer, para se protegerem do olhar dos outros sobre aquilo que têm para dizer. Esse punk engana-se muitas vezes, mas não tem medo de utilizar o verbo ser (PEIXOTO, 2009).
Esse duplo se origina dentro do eu, vive dentro desse eu e, por essa razão é chamado de endógeno. A relação que eles mantêm é morfológica e anímica, porém, a essência do duplo não corresponde à essência do eu duplicado, ou antes, aparentemente, o duplo é a imagem especular deste eu, imagem invertida, como não poderia deixar de ser, e que trata de ser o mais libertário e mais livre dos dois, ainda que pareça contraditório, visto que o punk vive debaixo da pele do eu do qual se origina, ou seja, está preso dentro desse eu. Por outro lado, esse duplo parece possuir a sua própria pele, como atesta o seguinte fragmento: “Porque esse punk também tem muito dentro de si, também há muito debaixo da sua própria pele” (Idem. Grifo nosso). E, ainda mais: “Eu tenho um punk dentro de mim, debaixo da minha pele, e esse mesmo punk tem muito dentro de si” ( Idem). Ora, debaixo da pele do duplo também há algo e essa informação nos faz pensar em camadas dispostas umas sobre as outras e que, ao final, compõem um todo desmontável, espécie de patchwork.
O duplo não é descrito como um intruso, um estranho. A indesejabilidade que se refere a ele é presumida pelo eu e sempre diz respeito a terceiros. Em “Not dead”, o que existe entre o eu e seu duplo é um arranjo. Nicole Fernandez Bravo, citando Beckett, lembra que:
O mito do duplo acha-se hoje vivo e produtivo. Permeável às modificações, ele tanto se presta à ambição totalizante dos românticos – que pretendem possa refletir-se no eu finito o mundo infinito – como à pintura da obliteração do eu, disposto a viver em avatares, esse eu que estabelece e por vezes aceita seu caráter de fragmento, considerando que aí reside uma perspectiva de enriquecimento e de diálogo com o mundo, visão contemporânea de um otimismo construído, racional, que ao soar a hora do absurdo viu-se temperado pela pintura de um eu que já nem sequer é capaz de asseverar a sua existência pela intermediação do discurso (1997, p. 287).
Em “Not dead” parece haver um diálogo entre essas duas definições do duplo: existe o desejo romântico do eu finito por um mundo sem limites, representado pela imagem do seu duplo, punk, que rejeita as convenções e que “prefere comer restos abandonados na mesa de esplanadas do que jantar de fato e gravata na casa de príncipes, prefere vomitar aguardente destilada pelo estômago do que ter de responder palavras vazias às palavras vazias dessas conversas” e, simultaneamente, esse mesmo eu tem consciência da inadequação desse duplo no convívio da sociedade dita civilizada e, por isso, é “obrigado a segurá-lo pelos ombros”, com o intuito de não escandalizar “as senhoras que têm netas e filhas”, colocando em ação a sua racionalidade. Ele aceita seu caráter de mero avatar em um mundo sistematizado, mas, por outro lado, não rejeita a enriquecedora perspectiva de diálogo com esse duplo anarquista.
Ao nos referirmos a uma sociedade “civilizada”, em oposição à uma outra, idealizada pelo duplo punk, convém recorrermos a Antonin Artaud:
Julga-se um civilizado pelo modo como se comporta; mas já quanto à palavra civilizado há confusão; para todo o mundo, um civilizado culto é um homem informado sobre sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signos, em representações. É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos em vez de identificar nossos atos com nossos pensamentos (2006, p.2-3).
O duplo punk encarna o pensamento artaudiano; ele repudia esse monstro adaptado aos sistemas e procura ser aquele que identifica os seus atos com os seus pensamentos, isto é, é pura ação: “Já houve ocasiões em que esse punk quis puxar a toalha da mesa posta, aquilo que mais desejou foi ver o serviço inteiro de jantar suspenso por um instante no ar da sala e, depois, a desfazer-se no chão”. Contudo, o punk é refreado pelo eu que, de certa forma, identifica-se mais com o homem criticado por Artaud.
Notamos que há uma divisão do eu que, linguisticamente, inclusive, se desdobra em “eu” e “ele”: “ Ele é um punk velho, que nunca desistiu, que nunca baixou a voz, apesar de tudo o que inventaram para o demover, para mudar o mundo que descobriu com 14, 15 anos, ou talvez antes. Eu sou um velho que, entre outras coisas, carrega um punk velho dentro de si” (Grifo nosso). Essa bipartição nos remete ao Gênesis e a Platão. O homem, no princípio, é um e, quando dividido, fica enfraquecido. A divisão representa um castigo, que levará o homem a vivenciar uma eterna insatisfação, na busca incansável por sua outra metade.
Stuart Hall explica que:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (2003, p. 12).
Podemos pensar que, numa perspectiva pós-moderna, o eu que se fragmenta em dois, que se divide, triplica, multiplica, torna-se substancialmente problemático. A identidade “é definida historicamente, e não biologicamente” ( Idem). E mais: “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (Idem, p.13, Grifo nosso).
O duplo, a ramificação do eu, remete a inúmeras possibilidades interpretativas. Aqui, este eu pode estar projetando no duplo a parte de si mesmo indesejável, como mencionamos no início. Por outro lado, o eu revelado na crônica que, por sua própria constituição de gênero traz à tona a voz daquele que narra, ou seja, o escritor é, antes de mais nada, um artista e, “o artista, homem-duplo por excelência, é aquele que pode compreender que por trás das aparências se esconde a verdadeira vida” (BRAVO, 1997, p. 273). Podemos pensar, portanto, que, aqui, a temática do duplo repousa em uma questão identitária, ou antes, surge como símbolo da busca da identidade.
As palavras que definem ou invocam o pós-moderno, tais como, simulacro e desreferencialização (SANTOS, 2008, p.17) parecem esclarecer que a função do artista é justamente perturbar, transverter, anarquizar, complexar, problematizar. Ao contemplar o seu duplo, o eu, material, tangível coteja uma discussão a respeito da identidade que ultrapassa o limite da literatura e ilumina outras áreas do conhecimento para, dessa maneira, duplicar, multiplicar a função da própria literatura como agente de reflexão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BRAVO, Nicole F. Verbete “Duplo”. In. BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
CEIA, Carlos. Verbete “Duplo”. In. E- dicionário de termos literários.
http://www2.fcsh.unl.pt/edt/verbetes/D/duplo.htm acessado em 25 de março de 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
PEIXOTO, José Luís. “Not dead” . Crônica retirada do blog de José Luís Peixoto, postada pelo autor no dia 08/01/2009. Publicada originalmente no Jornal de Letras.
http://bravonline.abril.com.br/blog/joseluispeixoto/ acessado em 30 de março de 2009.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
SANTOS, Jair F. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2008.