ALGUMA TEORIA ACERCA DO DUPLO E DA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
Angela Sivalli Ignatti
Doutora em Literatura Portuguesa pela FFLCH-USP e Mestra em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua há dez anos como docente de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira e Portuguesa. Atualmente, é professora de Comunicação Oral e Escrita no SENAI de São Paulo.
Diante da questão proposta pelo grupo de estudos cujo tema é Os desdobramentos do eu: o duplo na literatura e em outras manifestações artísticas, coordenado pela Prof. Dra. Lilian Lopondo, confrontei-me com a tarefa de compreender o que seria trabalhar com o duplo e com a problemática da construção da identidade com ele envolvida. Vale dizer de antemão que o referido “desdobramento do eu” não se trata simplesmente daquilo que se duplica, que se repete ou que se transforma nas artes, na sociologia ou na psicologia, pois, desse modo, qualquer manifestação artística poderia ser analisada sob a óptica do duplo.
Várias foram as vezes em que nossa coordenadora alertou-nos para o fato de que ao se trabalhar com esse tema seria necessário lidar com um objeto de estudo que é “um” e “outro” simultaneamente. Dentre as discussões de que pude participar nesse foro acadêmico e entre os textos indicados por colegas e por palestrantes, foi colocada a figura do duplo na sua relação com a contemporaneidade. Esse aspecto específico do “desdobramento do eu” trata-se do reflexo da fragmentação do indivíduo, o qual se vê sem ancoragem social diante das mudanças aceleradas e da falta de compartilhamento de questões coletivas nas sociedades contemporâneas.
Durante as discussões de nosso grupo de estudo, ficou patente ser fundamental adentrar na questão da construção da identidade e também na das relações dialógicas para se poder analisar a figura do duplo nas manifestações artísticas. Em um resumo dos trabalhos do grupo, a Prof. Lilian escreveu: “De acordo com Bakhtin, a identidade se constrói mediante as relações com o outro. No entanto, o outro não é, necessariamente, o duplo, ao passo que o duplo é, necessariamente, o outro”.
Portanto, uma de nossas tarefas seria compreender as problemáticas envolvidas nesse tema e a aplicação das teorias disponíveis em torno de relações dialógicas e de “desdobramento do eu” ao analisar um texto literário. Desse modo, apresento aqui, neste artigo, algumas bases teóricas, de diferentes autores que considero fundamentais para compreensão dessa figura tão desafiadora que é o duplo nas manifestações artísticas, sobretudo na literatura. Não pretendo, aqui, nem de longe, cobrir todas as teorias trabalhadas em nosso grupo de estudos. Contudo, coloco a seguir alguns pressupostos teóricos que podem indicar uma possibilidade, dentre várias possíveis, para o estudo do duplo na sua relação com a construção da identidade do indivíduo e da coletividade.
Inicio sintetizando o pensamento de Georges Gusdorf acerca da construção identitária na relação com o mito e a racionalidade. Desse modo, tratamos a questão do ponto de vista histórico-filosófico, partindo da constituição da dualidade da alma humana.
De acordo com os estudos de Gusdorf, em sua obra Mito e Metafísica (GUSDORF, 1980), que versa sobre a evolução da sociedade pré-histórica para a histórica, os seres humanos deixaram pouco a pouco de viver o tempo mítico e ritualístico para ingressar no tempo histórico e racional. Nessa transição, a sociedade deixa de lado sua busca constante pela unidade com o meio ambiente, começa a abandonar os rituais que a integram ao grupo e à natureza e inicia sua jornada em busca de explicações racionais para os fenômenos.
Para o estudioso, o advento da história está intrinsecamente ligado à “aparição da razão” (p. 109) e à lenta dissolução do tempo mítico. Para compreendermos a amplitude do tempo mítico é importante que nos debrucemos sobre o tempo da racionalidade e seus desdobramentos na sociedade contemporânea.
Um dos paradoxos focalizados por Georges Gusdorf é o fato de que o advento do período histórico não se encontra registrado dentro da própria História. Sabe-se apenas que o homem do tempo mítico encontrava nos rituais e no eterno retorno a sua estabilidade ontológica. As sociedades ancoravam-se na certeza da repetição dos ciclos da natureza e dos rituais humanos, considerando-se a própria unicidade. Natureza, homem, religião, ciência, cultura, arte eram elementos de um tecido social. Dessa maneira, não havia, então, diferenciação entre o indivíduo e o grupo, entre a coisa pública e a privada ou entre natureza e cultura. Nesse momento, o novo tem pouco valor, já que a tradição e o mito dão conta de todos os possíveis questionamentos que surjam no interior do homem. Na verdade, o mito impede questionamentos e dúvidas, lida com a certeza. Nesse sentido, a grande capacidade criativa e racional da humanidade limita-se ou desenvolve-se muito lentamente, levando-se em conta as potencialidades racionais humanas.
Gusdorf reflete sobre o fato de que a razão, aos poucos, liberta-se do repertório de imagens míticas, e, com isso, a inteligência transcende seu cativeiro do eterno-retorno, encontrando autonomia e liberdade (p. 110). A literatura ilustra esse processo de libertação, pois vem para substituir as fabulações primitivas, as quais são parte integrante da constituição dos ritos. Com o advento do tempo histórico, a literatura passa a ter um valor estético, não mais apenas ritualístico. O surgimento das religiões é um outro exemplo da dissolução do tempo mítico, uma vez que o sagrado institucionaliza-se e compartimentaliza-se, sem, contudo, deixar de existir. O homem começa a separar-se do espaço, estabelecendo um limite entre o que seria o “eu” e o que seriam as “outras coisas”:
Na medida em que se dessolidariza das coisas o homem se descobre a si mesmo como capaz de remanejar as aparências, de transformar a configuração do mundo dado, de conferir um sentido ao movimento dos astros e à germinação das plantas. Em lugar de sofrer passivamente o jogo das forças naturais, ele aprende a utilizar cada vez melhor estas diversas influências. (p. 110)
O ser humano supera sua existência rústica mediante a técnica, o conhecimento, a política. Porém o universo do mito não desaparece por completo, interpondo-se como um elemento que deixa suas marcas profundamente enraizadas no desenrolar da racionalidade. A consciência mítica tem por função, segundo Gusdorf, manter o status quo graças à integração do homem com o meio, enquanto a razão rompe esse estado de coisas e autoriza o homem a modificar o seu ambiente, a sua estrutura social e a natureza: “A tomada de consciência dessas novas exigências e destas novas possibilidades é contemporânea a uma nova criação do mundo, criação contínua que tornará o ser humano cada vez mais senhor e possuidor da natureza” (p. 110). Em suma, o mito traz as suas próprias razões e a sua abrangência completa das coisas, enquanto que o universo histórico é a possibilidade da investigação e da liberdade de espírito para o homem se localizar no mundo.
A dissolução da consciência mítica não é um fenômeno que se deu por completo na civilização humana, havendo sempre, em maior ou menor escala, influência da primeira sobre a segunda. Contudo, a humanidade abandona a existência mítica e incorpora a existência histórica via percepção, cada vez mais aguçada, de um algo que, anteriormente, não lhe era caro: a assimilação do tempo. A consciência mítica não valoriza a passagem do tempo ou a sua rememoração. Dentro de uma existência cíclica, toda a vida se resume ao tempo presente e ao tempo do eterno retorno, pois o homem tem como medida para si mesmo as estações do ano, os ciclos do seu próprio corpo, os ciclos de vida dos vegetais e dos animais. As lendas e as histórias que fazem parte de alguns rituais e que resgatam acontecimentos passados servem, em verdade, para estabelecer uma conexão com o as atividades do tempo presente e não para remontar ao passado. (p. 116-117).
A maior parte da evolução da humanidade, de acordo com Gusdorf, encontra-se no período em que impera a consciência mítica, sendo, ao contrário do que se pensa, o tempo histórico e racional um advento relativamente recente para a humanidade. Porém, em seu processo evolutivo, o ser humano percebe que a assimilação do tempo é um fenômeno libertador, por meio do qual é possível desligar-se da realidade imediata, mentalizar suas experiências e criar um “universo do discurso”:
Assim, o tempo se nos dá como um universo intermediário, um mundo de possíveis [sic] que corrobora e engloba o mundo real, um mundo de recursos tanto para a ação como para o sonho, porque, se o tempo multiplica a ação no presente, autoriza também a ausência, a colocação entre parênteses do universo e de suas urgências, assim como a evasão para o irreal. O tempo do homem é a possibilidade de contar o seu passado e de premeditar o seu futuro, assim como a de romancear a sua atualidade. Ele é uma das claves mais significativas do ser no mundo. (p. 119)
O advento da escrita não coincide com a entrada do homem na história, pois diferentes civilizações já dispunham de elementos pictóricos de comunicação; não deixaram registros de sua história simplesmente porque não viam necessidade de relatar o que se passava. O passado, para o homem da existência mítica, serve apenas como um cabedal de técnicas que podem ser reproduzidas no presente com objetivos práticos e ritualísticos, ou seja, a experiência e a tradição são o que fica do passado para esse homem. Na idade histórica, contudo, o tempo é a possibilidade de o ser humano observar o passado, de pensar no futuro e de tomar consciência de seu próprio destino. Ao situar-se dentro do passado, presente e futuro, o homem pode dar sentido ao que está por vir sem ficar aprisionado ao tempo cíclico, do eterno retorno: “A história nasce com a passagem do reino do se ao reino do eu, com a entrada em cena do homem não mais como espécie, mas como indivíduo.” (p. 123. Grifo do autor).
A análise que Gusdorf coloca sobre o tempo mítico e o tempo histórico ajuda-nos a compreender uma questão fulcral para a construção do duplo na manifestações artísticas: quando o homem constitui-se como indivíduo, ele passa a um “eu” cindido, que traz em si as marcas do tempo ritualístico, da vida baseada nos ciclos da natureza e dos rituais de repetição do tempo do eterno retorno, porém sem poder vivenciar esses aspectos intrínsecos uma vez que se encontra no tempo histórico-racional. Ao instituir-se como ser racional e histórico, o homem livra-se das amarras do mito e desenvolve-se numa velocidade técnica e científica sem precedentes, mas carrega em sua inconsciência e em sua gênese a herança do período mais longo de sua evolução, a do tempo mítico. A partir daí, há várias possibilidades de análise para essa eterna dualidade que complementa e atormenta nossa existência. As manifestações artísticas, portanto, podem ser analisadas levando-se em conta os duplos que surgem dessa dualidade estudada por Gusdorf, na medida em que o desdobramento do eu tornar-se, a um só tempo, o mesmo e um outro.
A partir da ideia do dualismo do homem mítico e racional temos dois importantes rumos que podem ser tomados no estudo da construção da identidade individual e coletiva e, consequentemente na análise da questão do duplo na sociologia, na psicologia e nas manifestações artísticas. As possibilidades de estudo que abro aqui não são excludentes em maneira nenhuma, apenas tratam de tópicos distintos da questão e devem ser consideradas complementares ou, ao final das contas, convergentes.
Por um lado, podemos prosseguir com o estudo do pensamento de Sigmund Freud, em especial as ideias presentes no artigo O estranho, publicado em 1919 (FREUD, s.d.), complementado pelo trabalho de Otto Rank, O Duplo, de 1914 (RANK, 1939). Por outro caminho, podemos observar as análises de Stuart Hall, na obra Identidade cultural na pós-modernidade (HALL, 2003), o qual trata mais especificamente da construção e da cisão da identidade, no contexto da contemporaneidade.
v
Seguindo pela primeira via, é interessante notar como podemos estabelecer uma conexão direta entre as ideias de Freud apresentadas em O Estranho e o pensamento de Gusdorf , em Mito e Metafísica.
A ideia central discutida nesse artigo de Freud é a chamada “estranheza familiar”, ou “unheimlich” na língua alemã, a qual se trata da sensação de estranhamento, associada ao medo ou ao terror que acomete um indivíduo frente a determinada situação. O pesquisador observa esse sentimento tanto do ponto de vista médico quanto do ponto de vista estético-literário, pois analisa as atitudes de pacientes seus e o comportamento de personagens de textos literários. Esse psicanalista faz inicialmente um estudo da palavra “heimlich”, para tentar descobrir porque tanto ela quanto a sua negação, “unheimlich”, têm, em alguns casos, o mesmo sentido em vez de sentidos opostos. Após uma reflexão etimológica dos dois termos, Freud conclui que “heimlich” inicialmente tinha o sentido de familiar, de relativo ao lar, de acolhedor, de amigável, de doméstico, mas, com o passar do tempo, passou a indicar algo que deveria ficar oculto, que é sorrateiro, feito pelas costas de alguém, obscuro, inacessível, algo que deveria ser ocultado por ser estranho. Desse modo, em certos contextos, tanto “heimlich” quanto a variante acrescida do prefixo “un”, que indica a ausência ou o contrário, “unheimlich”, têm o mesmo sentido: aquilo que não é familiar, não é acolhedor, que é estranho.
Nesse estudo da palavra, associado à observação da sensação de estranhamento tanto em pacientes considerados portadores de patologias psíquicas quanto em personagens da literatura, Freud afirma que primeiro observou a natureza familiar do sentimento de estranhamento, para, depois, passar ao exame linguístico dessas palavras. Esses estudos levaram-no a colocar a hipótese de que, em determinadas circunstâncias, o que é familiar pode tornar-se estranho e assustador. “Sendo assim, ‘heimlich’ é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência até finalmente coincidir com seu oposto, “unheimlich””. (FREUD, s.d., p. 07).
Com essas reflexões, o psicanalista comenta um estudo de Jentsch, no qual este último fala da situação de rever coisas, pessoas, impressões já familiares, mas que, num dado momento despertam em nós um sentimento poderoso de estranheza. Jentsch dá como exemplo o fato de vermos um objeto inanimado e termos a impressão de que está vivo. Apresenta, ainda, nosso estranhamento com autômatos, fantoches, bonecos mecanizados, uma vez que sabemos tratar-se de criaturas inanimadas mas que, em certo contexto, causam medo. Esse autor toma como base o sentimento de personagens da literatura, em especial o protagonista do conto O Homem de Areia, de E. T. A. Hoffmann, (CALVINO, 2004, p. 49).
A partir dos exemplos de Jentsch, Freud elabora suas próprias reflexões acerca do chamado estranhamento familiar ou, melhor dizendo, “unheimlich” . Para tanto, esse autor analisará em detalhes a personagem Nataniel, de O Homem de Areia, a qual passa diversas vezes pelo poderoso sentimento de estranheza familiar. Esse sentimento é devastador para a personagem, causa-lhe pavor, sensação de insanidade e, finalmente, leva-a ao suicídio. Nataniel vive o “unheimlich” todas as vezes que se defronta, no enredo, com a personagem de um oculista, o qual, por sua vez, está relacionado com o episódio obscuro que, quando o protagonista era criança, levou à morte seu pai. Há, portanto, a sugestão de que o oculista causou a morte do pai. Há ainda o mito do homem de areia, que faz parte de histórias que a mãe de Nataniel contava sobre um homem de areia que vinha à noite para arrancar os olhos das crianças desobedientes que não quisessem ir cedo para a cama. O enredo não deixa claro se foi o menino quem relacionou o oculista com o homem de areia, por causa das narrativas de sua mãe, ou se esse homem tinha mesmo alguma relação com a retirada de olhos de crianças. Porém, quando ainda era pequeno, Nataniel flagrou o pai e esse homem participando de um ritual estranho, e ao ser pego em flagrante espionando os dois adultos, o oculista ameaça arrancar os olhos do rapazinho. Pode ser que o oculista estivesse de fato envolvido no acidente que vitimou o pai do rapaz e que, por isso, o menino foi levado a correlacionar esse estranho com a imagem assustadora do homem de areia. Mas o enredo deixa todas essas questões em suspense.
O que Freud analisa, contudo, é o fato de a personagem guardar essa associação insólita entre o homem de areia e o oculista em sua mente infantil e, mais tarde, sentir a terrível estranheza familiar quando se encontra com ele. A sensação de terror associa-se a algo que é familiar a Nataniel, o oculista, mas que lhe causa estranhamento quando a relação que estava guardada na sua mente vem à tona em forma desconhecida. Aparentemente, o homem de areia não é o oculista, por isso o protagonista não sente medo do oculista, mas sente uma sensação de terror, pois, quando o vê, o que estava escondido em seus pensamentos infantis ressurge, sem mostrar-se tal como é. Freud faz ainda algumas análises e comparações com outras personagens consagradas como Édipo, Hamlet, Macbeth, para ilustrar o “unhemlich”. Essas análises servem para que o próprio Freud adentre nos desdobramentos da questão do estranhamento familiar, retomando a idéia de que se trata de um sentimento, e também de um vocábulo, que engendra um dualismo: algo que é estranho, mas que é familiar, que estranhamente aterroriza, mas que é perfeitamente conhecido. A partir desse ponto, surge a problemática do duplo em seu artigo.
Para contextualizar o duplo na literatura, Freud comenta a obra de Otto Rank, O Duplo (RANK, 1939). Nessa obra, Rank faz uma análise de vários autores, entre eles Edgar Allan Poe, Dostoievski, Goethe, analisando-lhes as obras literárias, nas quais constroem a figura do duplo. Imagens de espelho, irmãos gêmeos, espíritos, sombras, pessoas com dupla personalidade, bonecos animados, vozes invisíveis, tudo isso é observado por Rank em contos, romances e novelas de grandes autores. Essas figuras duplas estão sempre associadas a enredos macabros, aterrorizantes, perturbadores, com personagens insanas, destrutivas, desestruturadas socialmente, nas quais o medo da morte é uma figura recorrente. É interessante notar como Rank, no capítulo III de sua obra, faz uma associação entre os duplos perturbadores e a suposta personalidade “dupla” dos escritores. Rank usa a biografia de Poe, Dostoievski, Hoffman, para mostrar que, segundo ele, os autores foram capazes de construir tais figuras grotescas e insanas, porque possuíam vidas desajustadas, dissolutas e mentes patológicas.
É importante salientar que Freud, em seu artigo, não aproveita essa correlação entre a vida pessoal dos autores e suas personagens duplas. Ao lermos esse capítulo específico de Rank, o texto mostra-se permeado de preconceitos morais da época em que foi escrito, não sendo aconselhável levar em conta tais correlações para o estudo do duplo na literatura. Para Freud, um dos méritos da obra de Rank está no fato de que ele menciona a figura do duplo na psique humana como forma ancestral de segurança contra a destruição do ego, como uma maneira de negar a morte.
O ponto crucial do artigo O Estranho que quero salientar aqui é o momento no qual Freud afirma que, no desenvolvimento da humanidade, “surge” a alma como um poderoso duplo do corpo, uma forma de atrelar um elemento imortal a outro mortal (p. 15). A explicação que se segue a essa hipótese coloca-nos diante da intersecção das idéias de Freud e das de Gusdorf apresentadas aqui anteriormente. A construção desse duplo nas etapas mais ancestrais do ser humano, segundo Freud, está relacionada com o narcisismo primário da mente da criança, que quer proteger a todo custo seu ego, mas, depois, supera essa fase. O homem ancestral, na tentativa de lutar contra a destruição de seu ego, constrói os duplos, esculpindo, inclusive, imagens em material durável (pedra, metais) para manter “vivo” o que morre. A problemática do duplo surge, segundo Freud, porque em nosso processo de desenvolvimento humano essa questão foi aparentemente superada, contudo continuamos a criar duplos. Acontece que passamos, em alguns casos, a criar duplos que, agora, se voltam contra nós, nos aterrorizam e atormentam. A figura do duplo vai, portanto, tal como pondera Rank, associar-se a idéias aterrorizantes e estranhas.
Gusdorf, ao discutir a migração da consciência mítica para a consciência histórica, assinala justamente que o homem histórico passa a viver em desequilíbrio com os rituais místicos e cíclicos que garantiam sua transcendência. O ego estava resguardado pelo mito, o qual mantinha o equilíbrio do ser no mundo. O homem não precisava de religião, porque tudo o que o cercava era transcendente e metafísico. Mais tarde, na evolução da consciência, começam as explicações racionais da natureza e o homem entende-se como indivíduo e desenvolve-se tecnicamente. Para Gusdorf, o homem passa a sentir-se cindido, e busca, inconscientemente, pela ancoragem social que a consciência mítica lhe emprestava.
Ao correlacionarmos as duas teorias, poderíamos afirmar que a consciência mítica ou consciência ancestral criou o duplo que lhe protegia da destruição do ego. A consciência histórica ou a consciência mais desenvolvida passou a proteger o ego pela via da racionalidade, porém, de alguma forma, ainda guarda os vestígios da ancestralidade do mito.
Freud afirma que o duplo não desaparece totalmente quando superado o narcisismo primário, e acredita que “forma-se ali, lentamente, uma atividade especial, que consegue resistir ao resto do ego, que tem a função de criticar e de observar o eu e de exercer uma censura dentro da mente, e da qual tomamos conhecimento com nossa consciência” (p. 15). No caso patológico, Freud afirma que essa atividade mental da “consciência” torna-se isolada, dissociada do ego, e passa a observá-lo. Assim, para esse estudioso, o fato de que existe uma atividade dessa natureza, que pode tratar o resto do ego como um objeto – o fato de que o homem é capaz de auto-observação – torna possível pensar o duplo com uma nova significação: a de que está associado à autocrítica das ações do ego e à autocrítica daquilo que o indivíduo deseja, mas não realiza.
Podemos concluir que o duplo, do ponto de vista da psicanálise, situa-se no campo da patologia psíquica, e tem como base os resquícios do homem ancestral, de consciência mítica, o qual construía o duplo para proteger sua existência da morte. Na sua evolução, esse duplo transforma-se na sua consciência, mas, no caso patológico, volta a ser um duplo, agora não mais protetor, mas, sim, o observador crítico de suas ações e de sua incapacidade de realização dos desejos. Por isso, o duplo surge associado ao medo, ao terror, aos espíritos malignos, aos fantasmas, às imagens estranhas no espelho, às sombras sinistras. Patologicamente, o duplo volta na forma da consciência mítica e não mais na da consciência histórico-racional, usando os termos de Gusdorf. Desse retorno de algo familiar, na forma de algo estranho surge o “unheimlich”.
O outro caminho teórico, mencionado anteriormente, que podemos seguir para o estudo da duplo nas manifestações artísticas é calcado na problemática da construção da identidade do sujeito dos dias atuais. O estudioso da matéria que destaco aqui é Stuart Hall, o qual, em sua obra intitulada A identidade cultural na pós-modernidade (HALL, 2003), discute a questão da complexa organização humana vivida na contemporaneidade, fazendo uma distinção entre as sociedades ditas tradicionais e as modernas. Para esse autor, a questão da identidade só pode ser compreendida se observarmos as últimas mudanças históricas da sociedade ocidental, como, por exemplo, a construção da modernidade.
As sociedades denominadas tradicionais são aquelas onde o passado é venerado e os símbolos valorizados por conterem e perpetuarem a experiência de gerações. A tradição, portanto, seria um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, ligando-o ao presente e ao futuro. Passado, presente e futuro, nessas sociedades, são estruturados por práticas sociais recorrentes. Em contraposição, Hall aponta as sociedades modernas, onde as mudanças ocorrem de maneira muito mais acelerada e, sobretudo, de forma constante, de modo a não estabelecerem uma linha de continuidade claramente definida com o passado e as tradições sociais: “(...) as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter.” (p. 15)
O homem, ao longo de sua história, quase sempre se organizou de modo a criar estruturas sociais em que houvesse diferença de classe social, ou simplificando, criando sociedades nas quais houvesse dominadores e dominados. Contudo, o que diferencia as sociedades tradicionais das modernas é a definição clara de papéis, culturas e tradições a serem seguidas pelo indivíduo e pelo grupo. A complexidade trazida pela modernidade e, mais adiante, pela modernidade tardia (ou pós-modernidade) está relacionada à rapidez das mudanças sociais e à descontinuidade cultural na quais as pessoas estão mergulhadas. Esse tipo de complexidade social já havia sido observado por Karl Marx, quando afirmou que “todas as relações fixas e congeladas, com seu cotejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar (...)” (MARX e ENGELS, 1973, p. 70).
Hall baseia-se no pressuposto de que a identidade é formada na interação entre o “eu” e a sociedade de forma a preencher o espaço interior e o exterior da pessoa, tornando-a capaz de alinhar sentimentos subjetivos e ações objetivas (concretização da identidade) desempenhados na sociedade: “A identidade, então, costura, (ou para usar uma metáfora médica “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.” (HALL, 2003, p. 11-12).
No entanto, de acordo com Hall, a sociedade moderna, com suas rápidas mudanças e sua descontinuidade cultural observadas no decorrer do século XX, apresenta, de forma mais perceptível no final desse mesmo século, certa desconexão entre o indivíduo, seu grupo social e a cultura, alterando a relação das pessoas com o tempo e o espaço.
A nova organização social iniciada na modernidade resultou em um confronto do sujeito com o tempo e o espaço que é capaz de gerar, em grande escala, a fragmentação da identidade, a qual acaba por compor-se de diferentes identidades contraditórias ou incompatíveis:
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (...) à medida em que (sic) os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, p. 13. Grifo nosso).
Hall considera que a fragmentação do indivíduo na contemporaneidade se origina do processo histórico observado no Renascimento do século XVI e no Iluminismo do século XVIII, pois nessas épocas fortaleceu-se a ideia do indivíduo, do homem desassociado da figura divina, que começa a dominar a ciência e a tecnologia. Descartes, no século XVII afirma: Cogito, ergo sum, “Penso, logo existo”, a partir da onde surge a premissa de que o homem é dotado de uma identidade individual e autônoma.
O filósofo John Locke seguiu a corrente dos que acreditavam que a identidade do sujeito era algo fixo, continuamente representado por esse sujeito, uma vez que o homem era o responsável maior por suas ideias e atitudes, não suscetível, portanto, a metamorfoses. Hall afirma que a figura do “indivíduo soberano” fortaleceu-se no século XIX, acompanhando o desenvolvimento do capitalismo, o qual, segundo ele, teve sua primeira engrenagem impulsionada no Renascimento, na Reforma Protestante, no Iluminismo e em outros movimentos históricos que construíram a imagem do indivíduo auto-centrado. Contudo, à medida que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas acabaram por assumir uma forma mais coletiva, em um sentido de formação de classes. As teorias clássicas liberais de governo, baseadas nos direitos individuais, foram obrigadas a dar conta das estruturas do Estado-nação e das grandes massas que faziam parte da “democracia moderna”:
As leis clássicas da economia política, da propriedade, do contrato e da troca tinham de atuar, depois da industrialização, entre as grandes formações de classes do capitalismo moderno. O empreendedor individual de Riqueza das ações, de Adam Smith, ou mesmo d´O capital, de Marx, foi transformado nos conglomerados empresarias da economia moderna. O cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno. (HALL, 2003, p. 30)
Assim, aquele indivíduo auto-centrado vê-se de certa forma socializado nessas “maquinarias burocráticas”; surge, nesse momento, o Estado mantenedor do qual falamos há pouco e que começa a responsabilizar-se pela seguridade social dessa coletividade. Após a consolidação das teorias darwinistas e a institucionalização da psicologia, foi reforçada a dualidade do sujeito sugerida por Descartes (penso, logo existo), pois o indivíduo passa a ser visto como um ser biológico, por um lado, e psicológico, por outro. A sociologia, por seu turno, enfatizou essa dualidade em outra instância, estabelecendo a diferença entre indivíduo e sociedade. Embora trabalhe com a premissa de que as pessoas têm sua identidade construída em um nível particular, conjugada com a experiência coletiva, a teoria sociológica moderna instituiu sujeito e sociedade como entidades distintas.
Stuart Hall considera o pensamento de Lacan muito esclarecedor no sentido de ilustrar o conflito entre a identidade e o processo que a compõe, pois Lacan divulgou as ideias de que a criança se constitui como indivíduo mediante a visão que tem de si mesma pelo olhar do “outro”, iniciando-se, assim, no universo da linguagem, da cultura e da diferença sexual. No entanto, essa constituição do ser a partir do outro gera na criança um sujeito cindido, que a acompanhará pelo resto da vida. Tal divisão é o resultado da visão que a pessoa tem de si mesma em contraposição ao modo como os outros a vêem. Porém, o indivíduo tende a vivenciar sua própria identidade como se ela fosse unificada. Por isso, Hall entende que a identidade é necessariamente algo em constante mudança, por ter na sua origem uma contradição, que busca resolução:
Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre a sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre sendo formada. As partes femininas do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez de falar de identidade como coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (HALL, p. 39. Grifo nosso.)
As ideias de Lacan discutidas por Stuart Hall se complementam às apresentadas por Zygmunt Bauman (BAUMAN, 2004), segundo o qual a contemporaneidade capitalista acumula condições históricas e materiais para que o conflito no processo identitário se agrave, impedindo ou dificultando a conciliação delas com elas mesmas e com o grupo ao qual pertencem.
Percebe-se, pois, que para Hall a relação entre indivíduo e sociedade na contemporaneidade é fruto de um intricado desenvolvimento assentado na migração das sociedades tradicionais para as capitalistas modernas, colocando o ser humano em uma posição na qual é lentamente dissociado das tradições e deslocado do entorno da participação coletiva para tornar-se indivíduo.
Nessa perspectiva, a figura do duplo pode se inserir como desdobramento do eu”, que passa a ser um “outro” na busca incessante pela unicidade perdida. A análise do duplo nas manifestações artísticas pode ser, portanto, tomada amplamente pela óptica da problemática do homem contemporâneo, ou pós-moderno, que, à deriva, sem a ancoragem da tradição, duplica-se, buscando representações e virtualidades capazes de firmá-lo em seu meio social.
As teorias abordadas brevemente neste artigo constituem uma base para que se possa estudar os “desdobramentos do eu” nas manifestações artísticas sem, de maneira nenhuma, exaurir a matéria. No entanto, seja pelo viés histórico-filosófico de Georges Gusdorf, seja pela psicanálise de Sigmund Freud ou pela abordagem sociológica de Stuart Hall, abrem-se amplos caminhos no estudo do processo de construção da identidade. Essa identidade, individual ou coletiva, figura nas ideias discutidas aqui como dualidade, como uma cisão e também como uma junção. Essas teorias, portanto, convergem para o foco de nosso grupo de estudos: o oxímoro que constitui o duplo.
BIBLIOGRAFIA
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
CALVINO, Ítalo (org.). Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras. 2004.
FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, s.d., vol. XVII.
GUSDORF, Georges. Mito e Metafísica. São Paulo: Ed. Convívio, 1980.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 8ª ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.
RANK, Otto. O Duplo. Rio de Janeiro: Brasílica, 1939.