INTRODUÇÃO
Prezado leitor, na continuação, oferecemos uma breve resenha dos artigos deste número de Pandora Brasil.
Ângela Sivalli Ignatti faz um recorte de ideias teóricas sobre a construção do duplo nas artes, sobretudo na literatura. Para tanto, explora a questão da identidade cindida, através da teoria de Georges Gusdorf, a qual versa sobre os tempos mítico e histórico na construção da consciência do homem desde sua pré-história. A partir desse pressuposto, propõe dois caminhos para o estudo do duplo: o psicanalítico de Freud, por meio do texto seminal O Estranho, e o sociológico da pós-modernidade, de Stuart Hall.
Anita Jovelina Brito de Jesus contribui com três textos, todos eles relativos à narrativa curta. No primeiro, analisa o conto O Espelho, de Machado de Assis, tendo como perspectiva a cisão e a consubstanciação da personagem Jacobina com sua outra metade ao enfrentar a solidão e tomar o espelho como sua “alma externa”. No segundo, envereda pela ficção, num conto no qual o tema do duplo aparece de forma tocante e singela. No terceiro texto, em parceria com Maria Andrade dos Santos, é analisado o conto O Vôo da Madrugada, que integra o livro homônimo de Sergio Sant’Anna. As autoras argutamente percebem a intrigante presença do duplo e do fantástico através da forma, ora simbólica, ora verossímil, e também na atuação desdobrada do narrador-personagem.
Edson Lanzoni discorre sobre a recontextualização mítica. Seu objeto é o teatro português de Armando Nascimento Rosa, especificamente na peça Nória e Prometeu, em que aparece a instância do duplo. Surgem em cena vozes duplicadas e constitutivas da mitologia como, por exemplo, a figura clássica de Prometeu e seu discurso do fogo, e a subversão do mito judaico-cristão do Gênese. Ao espectador e ao leitor restam decidir sobre as aproximações e os distanciamentos de tais duplicações.
Na análise da crônica intitulada Not dead, de autoria do português José Luís Peixoto, Kátia Medeiros Suelotto trata de um eu que reconhece a existência de um outro dentro de si. Mais do que reconhecer, descreve a relação que mantém com esse duplo, uma relação que apresenta momentos de harmonia absoluta e momentos em que este mesmo duplo precisa ser posto em seu lugar, ou seja, em segundo plano. O duplo não é descrito como um intruso, um estranho, mas sim como um arranjo.
Lílian Cristina Corrêa discorre sobre a duplicidade da figura da mulher-feiticeira, como entidade demoníaca e representação do “diferente”, a partir da análise do percurso da personagem Tituba, protagonista do romance Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Salém (1986), de Maryse Conde. Avultam daí não somente ilações com a imagem da feiticeira, mas também possíveis releituras intertextuais com figuras mitológicas.
Mariana Ferraz de Albuquerque e Neide Medeiros Kazan sugerem, na análise do conto Enquadramento, de Adriana Lunardi, uma volta à atmosfera lúdica da infância. Nesse jogo proposto não há regras de princípio, meio e fim, mas o pressuposto é o necessário diálogo entre a literatura e as artes plásticas. Em conseqüência, descortinam-se personagens construídas em espelho, que atingem a autoconsciência geradora do duplo, do eu e do outro.
Nefatalin Gonçalves Neto se ocupa do romance O homem duplicado, de José Saramago, em que um protagonista em crise existencial reconhece ser possuidor de um duplo. O enfrentamento analítico se sustenta no universo filosófico, notadamente nietzschiano, a partir dos conceitos do apolíneo e do dionisíaco, duas faces contrapostas, mas que se complementam. O leitor, ao percorrer a investigação proposta, encontra as respostas de quem é o caçador e quem é a caça nesse jogo permeado pelo duplo.
Paula Silveira de Aquino se propõe a analisar a presença do duplo em A queda do Solar de Usher, conto antológico de Edgar Allan Poe. Entende que a referida narrativa é uma das formas de manifestação do gênero estranho, abordada por Freud em O estranho. Configuram-se, assim, duas personagens consideradas idênticas, por parecerem semelhantes ou iguais. Essa relação se acentua pela telepatia, de modo que ambas as personagens dividam os mesmos conhecimentos e experiências.
Rosana Bignami Grecchi ocupa-se do romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, mais especificamente em apresentar uma leitura de Amleto como exemplo de um duplo, na medida em que esta personagem abre mão de sua verdadeira identidade, desdobrando-se em algo novo que é reconhecido mediante transformações estéticas e artefatos éticos (ou antiéticos). A ascensão para o mestiço Amleto significa a busca pelo branqueamento, que acredita torná-lo superior.
A partir de dois contos do escritor brasileiro Ronaldo Correia de Brito, Faca e O que veio de longe, Wagner Martins Madeira aborda manifestações do duplo e de construção identitária. As referidas narrativas se desdobram, a indicar que a obra se encontra em gestação e em contínuo diálogo com o processo de criação ficcional. Avulta, por conseguinte, um ethos sertanejo que teima em não sucumbir à sua degradação na época contemporânea.