Colaboladores|Links|Sobre|home |
Índice
Graduada em Letras Português-Inglês pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2007. Atualmente, é Mestranda em Literatura Norte-Americana, na mesma universidade.
Neste trabalho, pretende-se analisar a presença do duplo no conto “A queda do Solar de Usher”, de Edgar Allan Poe. Trata-se de uma das formas de manifestação do gênero estranho, abordada por Freud em “O estranho”. Nele aborda-se, como fator constituinte do duplo, a presença de dois personagens que devem ser considerados idênticos, por parecerem semelhantes ou iguais. Essa relação se acentua pela telepatia, de modo que ambas as personagens dividam os mesmos conhecimentos e experiências. No conto, constata-se a ocorrência do duplo na relação entre as personagens Roderick e Madeline Usher, irmãos gêmeos e, portanto, do mesmo sangue e gestação, tendo como única diferença o sexo. Na narrativa, ambos se encontram enfermos e Roderick atribui a sua condição, o medo de perder a irmã e se tornar o último membro da família Usher. Além disso, o ambiente da mansão e de seus arredores também contribuíam para o agravamento de sua perturbação mental. Na verdade, Roderick e Madeline Usher representam a impossibilidade de separação entre mente e corpo humanos. Ele é o intelectual e ela pode ser associada ao físico, aos sentidos (deficientes no irmão) e até ao aspecto fúnebre do solar, pois no momento em que ela sai da adega, em que estava enterrada, e abraça o irmão, dá-se tanto na morte de ambos e a queda do solar.
‘Morrerei – disse ele –, devo morrer nesta loucura deplorável. Estarei perdido assim, assim e não de outra maneira. Temo os acontecimentos do futuro, não por si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço ao pensar em algum incidente, mesmo o mais trivial que possa influir sobre essa intolerável agitação de alma. Na verdade, não tenho horror ao perigo, exceto no seu efeito positivo: o terror. Nessa situação enervante e lastimável, sinto que chegará, mais cedo ou mais tarde, o tempo em que deverei abandonar, ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com esse fantasma lúgubre: o MEDO’. (POE, 1981, p.85)
Neste trecho, percebe-se que Roderick teme os acontecimentos futuros, pois realmente acredita que irá morrer. Mais adiante, o narrador menciona as possíveis causas da enfermidade do amigo.
estava preso a certas impressões supersticiosas com relação ao prédio em que morava e de onde, por muitos anos, nunca se afastara, e com relação a uma influência cuja força hipotética era exposta em termos demasiado tenebrosos para serem aqui repetidos; influência que certas particularidades apenas de forma e de substância do seu solar familiar, através de longos sofrimentos, dizia ele, exerciam sobre seu espírito; efeito que o físico das paredes e torreões cinzentos e do sombrio pântano em que esse conjunto se espelhava, afinal, produzira sobre o moral de sua existência.
Ele admitia, embora com hesitação, que muito da melancolia peculiar que assim o afligia podia rastrear-se até uma origem mais natural e bem mais admissível: a doença severa e prolongada, a morte – aparentemente a aproximar-se – de uma irmã ternamente amada, sua única companhia durante longos anos, sua última e única parenta na terra. (POE, 1981, pp.85-86)
Aos poucos, a ocorrência do duplo é desenhada. Já se sabe que Roderick tem uma irmã “ternamente amada”, a qual, como ele, encontrava-se enferma. Nota-se, ainda, uma certa “telepatia” entre as personagens, expressa por meio da preocupação de Roderick no trecho acima. Do mesmo modo que Madeline estava aparentemente se aproximando da morte, Roderick temia morrer em sua loucura. Resta saber se existe alguma relação entre esse efeito de melancolia que o físico da mansão lhe proporcionava e essa preocupação com a saúde debilitada de sua irmã.
Pintávamos e líamos juntos, ou ouvíamos, como em sonhos, suas improvisações estranhas, em sua eloquente guitarra. E assim, à medida que a intimidade cada vez maior me introduzia sem reservas nos recessos de seu espírito, mais amargamente eu percebia a vaidade de todas as minhas tentativas de alegrar uma alma da qual a escuridão, com uma quantidade inerente e positiva, se derramava sobre todos os objetos do universo moral e físico, numa incessante irradiação de trevas. (POE, 1981, p.87)
Roderick manifestava sua melancolia por meio das “improvisações estranhas de sua guitarra, suas pinturas e da escolha de seus livros favoritos. Uma de suas concepções era um pequeno quadro que representava “o interior de uma adega ou túnel, imensamente longo e retangular, com paredes baixas, brancas e sem interrupção ou ornamento” (POE, 1981, p. 87-88), da qual alguns aspectos transmitiam a ideia de uma escavação extremamente profunda, em que não era perceptível nenhuma fonte de luz. É importante ressaltar, ainda, que no momento em que o narrador se aproxima da mansão e começa a descrevê-la, ele revela que apesar do aspecto decadente da mansão, sua alvenaria encontrava-se sólida. Segundo ele,
Nenhuma parte da alvenaria havia caído e parecia haver uma violenta incompatibilidade entre sua perfeita consistência e o estado particular de suas pedras esfarinhadas. Isto me lembrava bastante a especiosa integridade desses madeiramentos que durante muitos anos apodreceram em alguma adega abandonada, sem serem perturbados pelo hálito do vento exterior. ((POE, 1981, pp.82-83)
Assim como a alvenaria da mansão era conservada como os madeiramentos mencionados pelo narrador, Roderick vivia na mansão sem manter qualquer contato com o mundo externo, pois sua acuidade dos sentidos fazia com que o cheiro das flores lhe fosse insuportável e a mais fraca luz lhe torturasse os olhos.
Tendo depositado nosso fúnebre fardo, sobre cavaletes, naquele horrendo lugar, desviamos em parte a tampa ainda não pregada do caixão e contemplamos o rosto do cadáver. Uma semelhança chocante entre o irmão e a irmã deteve então, em primeiro lugar minha atenção; e Usher, adivinhando, talvez, meus pensamentos murmurou umas poucas palavras pelas quais vim a saber que ele e a morta tinham sido gêmeos e que as afinidades, duma natureza mal inteligível, sempre haviam existido entre eles. Nossos olhares, porém não descansaram muito tempo sobre a morta, pois não a podíamos contemplar sem temor. A doença que assim levara ao túmulo a senhora, na plenitude de sua mocidade, havia deixado, como sempre acontece em todas as moléstias de caráter estritamente cataléptico, a ironia de uma fraca coloração no seio e na face, e nos lábios aquele sorriso desconfiadamente hesitante, tão terrível na morte. Fechamos e pregamos a tampa e, depois de havermos prendido a porta de ferro, retomamos, com lassidão, o caminho de volta para os aposentos, pouco menos sombrios, da parte superior da casa. (POE, 1981, p.92, grifo nosso.)
Apesar de ser amigo de infância de Roderick, o narrador desconhecia sua irmã e não sabia que eles eram gêmeos. Esse fato reforça o tema do duplo na obra, pois além de Roderick e Madeline Usher serem irmãos e terem grande afinidade, são frutos da mesma gestação e semelhantes fisicamente.
E então, tendo decorrido alguns dias de amargo pesar, uma mudança visível operou-se na desordem mental de meu amigo. Suas maneiras usuais desapareceram. Suas ocupações costumeiras eram negligenciadas ou esquecidas. Vagava de um quarto a outro. A passos precipitados, desiguais e sem objetivo. A palidez de sua fisionomia tomara, se possível, um tom ainda mais espectral, mas a luminosidade de seu olhar havia se extinguido por completo. Não mais escutava aquele tom rouco de voz que ele outrora fazia s vezes ouvir, e sua fala era agora caracterizada por um gaguejo trêmulo, como de extremo terror. Havia vezes, na verdade, em que eu pensava que seu pensamento, incessantemente agitado, estava sendo trabalhado por algum segredo opressivo, lutando ele para ter a necessária coragem de divulgá-lo. (POE, 1981, p.92)
De fato, Roderick estava escondendo um segredo. Aproximadamente oito dias após o sepultamento de Madeline, como já foi dito, o narrador passa a ter dificuldades para dormir, pois começa a ouvir sons pela casa. Quando eles se tornam mais audíveis, o narrador pergunta se Roderick estaria ouvindo, ao que ele responde:
Sim, ouço-o, e tenho-o, e tenho-o ouvido. Longamente... longamente... muitos minutos, muitas horas, muitos dias tenho-o ouvido , contudo não ousava... Oh, coitado de mim, miserável, desgraçado que sou! Não ousava... não ousava falar! Nós a pusemos viva na sepultura! Não disse que meus sentidos eram agudos? Agora eu lhe conto que ouvi seu primeiro fraco movimento, no fundo do caixão, Ouvi-o faz muitos, muitos dias, e contudo não ousei...não ousei falar! E agora, esta noite... Etelredo... ah, ah, ah!... o arrombamento da porta do eremita, e o estertor de agonia do dragão, e o retinir do escudo! Diga, antes, o abrir-se do caixão, e o rascar dos gonzos de ferro de sua prisão, e o debater-se dela dentro da arcada de cobre da masmorra! Oh! Para onde fugirei? Não estará ela aqui dentro em pouco? Não estará correndo a censurar-me por minha pressa? Não ouvi eu o tropel de seus passos na escada? Não distingo aquele pesado e horrível bater de seu coração? Louco! – e aqui saltou ele furiosamente da cadeira e gritou, bem alto cada sílaba, como se com aquele esforço estivesse exalando a própria alma: – Louco! Digo-lhe que ela está, agora, por trás da porta! (POE, 1981, p.98)
Então, a porta para onde Roderick Usher apontava se abre, e atrás dela encontra-se Madeline que
tinha sangue sobre suas vestes brancas e sinais de uma luta terrível, em todas as partes de seu corpo emagrecido. Durante um instante, permaneceu ela, tremendo e vacilando, para lá e para cá, no limiar. Depois, com um grito profundo e lamentoso, caiu pesadamente para a frente, sobre o irmão, e, em seus estertores agônicos, violentos e agora finais, arrastou-o consigo para o chão, um cadáver, uma vítima dos terrores que ele mesmo antecipara. (POE, 1981, p.98)
Conforme os indícios apresentados no conto, Roderick realmente teve o fim que tanto temia. Desde o começo, sabe-se que uma das causas da enfermidade de Roderick é a enfermidade da irmã Madeline. Eis o que compõe o duplo nessa obra de Poe: duas personagens irmãs, gêmeas, entre os quais a afinidade se manifesta até mesmo no estado de saúde de ambos. Quando um morre, o outro tem o mesmo fim.
Fugi espavorido daquele quarto e daquela mansão. Ao atravessar a velha alameda, a tempestade lá fora rugia ainda, em todo o seu furor. De repente, irrompeu ao longo do caminho uma luz estranha e voltei-me para ver donde podia provir um clarão tão insólito, pois o enorme solar e as suas sombras eram tudo que havia atrás de mim. O clarão era o da lua cheia e cor de sangue, que ia se pondo e que agora brilhava vivamente através daquela fenda, outrora mal perceptível, a que me referi antes, partindo do telhado para a base do edifício em ziguezague. Enquanto eu a olhava, aquela fenda rapidamente se alargou... sobreveio uma violenta rajada do turbilhão... o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista... meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem... houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes... e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silenciosamente, sobre os destroços do “Solar de Usher”. (POE, 1981, p.98)
Na verdade, nesse conto, Roderick e Madeline representam a impossiblidade de separação entre mente e corpos humanos. Enquanto Roderick era o intelectual, extremamente dedicado a atividades de leitura, pintura e composição musical, Madeline pode ser associada ao físico, aos sentidos, que eram deficientes em seu irmão. Uma vez que é no momento em que Madeline reaparece que se dá a morte de ambos e a queda da mansão, pode-se dizer que, de certa forma, ela também está associada àqueles “efeitos” provocados pelo “físico” da mansão, bem como a sua solidez, que se conservou enquanto Madeline ainda estava viva e mantida na adega.
|