IARA
(Conto)
Anita Jovelina Brito de Jesus
Licenciada em Língua e Literatura Inglesa e Norte Americana pela PUC-SP. Bacharel em Tradução, também pela PUC-SP. Trabalha como professora há 20 anos e como consultora e tradutora há 15 anos. É mestranda na área de Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Quando encontrei Iara pela primeira vez, foi em um café perto de minha casa. Era uma garota linda e simpática, sempre com um sorriso doce e um olhar misterioso. Atendia às mesas com uma graça singular e com um jeito enigmático e, embora executasse seu serviço muito bem, parecia não pertencer àquele lugar. Até hoje penso se o que via em seu olhar era mistério ou tristeza.
Com o passar do tempo criamos uma amizade entre cliente e atendente. Sabe essas amizades que você faz com o açougueiro que sempre te atende, com o farmacêutico, com o pessoal da coleta de lixo, e aquelas que você cria com quem você atende onde quer que você trabalhe? Então, era assim. Ao menos eu achava que era assim. Quando ela me entregou seu diário e saiu sem nada dizer, fiquei pensando se não seria a última vez que a veria. Acertei... Comecei a ler as poucas páginas que havia.
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Eu não me lembro bem, acho que foi em um ano qualquer, mas me lembro que chovia muito. Será que é possível descrever dentro de meus pensamentos a real chuva daquele ano? É, acho que minha história começa no meio do caminho... Será que é possível? Sempre tive uma ligação muito grande com dias chuvosos, com tempestades, com lágrimas. Acho até que foi a única coisa que tive alguma ligação até hoje.
- Iara! Entra agora!
- O que é mãe!
- Desgraçada! Se me disser “qui qui é” mais uma vez te arrebento inteira! Num to criando filho pra me dizer “qui qui é”. Você tem que dizer é “SENHORA”!
Cheguei mais perto e perguntei na maldade:
- “Que qui é?” - E veio o tapa. Bem no meio da boca. O sangue úmido e quente descia sem parar. Meu primeiro dentinho caiu. Não chorei, mas ninguém dizia que eu era forte. Diziam:
“-Que menina ruim, Rosivalda!”
“- Virgem santa! Você vai cortar um doze com essa daí!”
“- Ahhhh, se fosse minha filha. Ia apanhar até chorar.”
Ao que minha mãe sempre retribuía:
- Isso é o demônio. Devia ter abortado tudo! Bando de praga que tenho, isso sim! Essa daí é a pior. Com cara de santinha, mas é o capeta em forma de gente. Só me faz passar raiva, a desgraçada. Se é verdade o que a Carlota falou, que “todos nascemos de novo pra pagar os pecados”, taí! Nem preciso nascer mais. Essa é a última vez, porque com esse bando que o desgraçado, lazarento me largou, não tenho mais pecados a pagar. Agora é só glória ao lado desse tal “Deus” que a “crente” me falou. É só eu ir pra igreja que tá tudo beleza! Pelo menos foi o que eu entendi...
E entrou sem nem perceber que há muito falava sozinha. Vera era uma que já não agüentava as murmuras de minha mãe e sempre falava consigo mesma:
-Deus não gosta de murmúrio... Se meu pastor pega ela falando assim da própria cria já ia logo tirar o demônio do corpo da infeliz! – E seguia sem nem perceber que também murmurava.
Lembro-me também de já estar com meu dente novo e toda faceira na escola. Adorava deixar os meninos doidos. Não fazia nada de “errado”, mas provocava e não tinha garoto que não sonhasse comigo... Ahhh, eu era linda. Uma garota e tanto. Muito desenvolvida para os poucos anos e igualmente abusada. Fazia o tipo de garota que qualquer homem gosta: viva e cheia de graça! Acho que puxei minha mãe.
Toda vez que via minha mãe com um camarada novo, não chorava (mais), queria saber porque eles faziam aquelas caras e bocas. Aqueles beijos ardentes... Corpos suados... (Acho que estou sendo repetitiva... Acho que você já viu ou leu isso em algum lugar... Mas não resisto! Tenho que contar.) Eles nunca haviam me visto, até que um dia, chovia torrencialmente e o Totonho, garoto lindo de uns dezesseis anos, corpudo pra idade, me viu. Ele teve ali sua iniciação, não naquele momento, mas naquela cama há uns dois meses. Aquela que dormíamos todos juntos em dias de tempestade. Levei um susto, mas ele começou a me olhar de uma forma estranha e não parava de sentir aquele frenesi quente em meu corpo. Minha mãe nem percebeu. Acho até que o Totonho começou a sentir mais prazer. Foi ali que tudo começou (eu acho). Eu, literalmente molhada, mudei de comportamento em relação aos homens.
24 de dezembro. Eu estava de vestido azul, longuete. Saltos baixos, boca pintada e de repente, outro tapa. Não! Não se espantem. Era assim mesmo. Um tapa a cada ação. Esqueçam a lei de ação e reação. Tentem conceber a idéia de ação e coação. Desmedida. Incongruente...
- Vai limpar essa cara, rapariga! Querem que diga o que de você? – Disse minha doce mãezinha...
Eu não sei porque, mas as lágrimas já não me faziam falta. Quando era pequena fiquei internada e não chorava nem para as injeções. Minha mãe sempre dizia para o médico: “Isso é o cão! Não chora nem que a matem”.
Tirei a roupa linda. Arrumei poucas coisas e saí embaixo de chuva. Estava uma noite quente e chovia pouco. Cheguei à beira da estrada e pedi carona. Era quase meia-noite quando uma perua parou e me ofereceu carona. Entrei. Quando saí estava toda ensangüentada. Doía todo meu corpo e tinha um dente do fundo quebrado com uma pancada que ele me deu na boca. Sempre fui levada na escola, mas nunca tinha feito nada que me desabonasse. Mas ele achou que eu mentia e não adiantou pedir para descer. Suas mãos fortes me arremessaram para trás e só acordei com a água batendo em meu rosto. Lembrei de uma história que a professora contou na sala de aula, acho que era da Macabéia (nome estranho!). Achei que estava sonhando com aquilo tudo. Adormeci de novo. Seis dias depois acordei em um hospital. Sem documentos, sem identificação. Sem mim mesma... Quando o médico perguntou meu nome, menti. Disse que não me lembrava de nada. Dois dias depois fugi. Agora eu poderia ser quem eu quisesse. Escolhi ser atriz muito famosa e rica. Dessas que vão para a terra dos sonhos.
Fui para o estúdio mais famoso da cidade grande e comecei trabalhando como a “garota do café”, aquela com um belo derrière. Era estranho como os homens bonitos me olhavam, mas os feios, os esquisitos, aqueles que só tinham mulher pagando, me olhavam com desejo, mas era nojento. Primeiro foi seu Oscar. Um homem atarracado, careca, com óculos bem fundos e de armações pretas e grossas. Era gordão e suava muito. Estava sempre com um lencinho apalpando a testa e o limpando o nariz. Veio me dizendo tudo o que eu queria (ou precisava) ouvir. Eu acreditei nele. Não era bem esse o “Oscar” que eu queria, mas... Só por uma noite e teria a chance de minha vida. Depois era só esperar a premiação, o reconhecimento internacional e a famosa estatueta. Assim, tive minha “primeira noite” com ele por oito meses. Ha, ha, ha que ironia! Depois foi com seu Fulano, seu Cicrano, seu Beltrano...
Dois anos depois, estava conversando com Alma. Moça branca, simplória, de bom coração. Ela me disse para procurar um homem adivinho que tinha perto do estúdio. Fui. “Os astros não mentem”, dizia ele com um turbante na cabeça. E continuou:
- Você subirá mais que possa imaginar, mas para isso terá que descer ao inferno.
- Como assim? - Indaguei.
- No momento certo você saberá...
Saí dali feliz. O inferno eu já tinha conhecido, agora só falta o céu. Ou seja, meu sonho está próximo. Peguei a balsa e voltei ao trabalho e às promessas.
Falei com Alma meses depois e expliquei que estava ansiosa por saber quando seria “meu momento de subir”. Já não agüentava mais o inferno. Então Alma aconselhou-me a fazer regressão, pois entenderia melhor minha vida e quem fui, para entender quem sou. Achei confuso e irreal, mas fui. Ao chegar lá tive a impressão de já ter estado lá antes. Deja vu. Fechei os olhos e me vi em uma bolsa de água quente. Ele dizia baixinho que era o útero de minha mãe, o que me trouxe muito medo. Já imaginou nascer (daquela mulher) de novo? Depois vi meu batizado e aquele monte de água caindo sobre minha cabeça. A chuva. Os banhos no rio da cidade onde morava. Quis acordar. Ele me disse para ter paciência, mas saí correndo.
Ao atravessar com a balsa, comecei a olhar minha vida e tentar entender o que dera errado. Senti-me suja, suada, enojada. Olhava no espelho da água e via meu rosto retorcido pelas ondas. Será que essa sou eu? Será um “outro eu” formado ou transformado pela água? Senti-me feia, mas entendi o que a água fazia comigo. Senti-me dupla para me sentir uma só, mais completa. Ela me acordou e me lavou quando fui violentada, me segurou viva no ventre de minha mãe, me colocou em uma relação com Deus no meu batizado, limpava minha alma na hora do choro contido. Estou me sentindo leve agora. Estranho, não tenho mais medo. Vejo a balsa ir embora por cima de minha cabeça. Agora entendi...
Agora posso subir em paz...