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O DUPLO EM “NÓRIA, O PARAÍSO DO DOUTOR GODOT”


Edson Roberto Lanzoni


Mestrando em LETRAS pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua como professor de Literatura e possui graduação em Comunicação Social - habilitação Propaganda pela UPM e LETRAS pela Universidade de São Paulo (USP).





Ao longo de toda uma vida não é talvez senão
o mesmo texto que trabalhamos incessantemente,
acrescentando, transformando (...).
A relação com a alteridade constitutiva
– interdiscurso, ideologia, interpretação –
está presente na relação do sujeito
com ele mesmo e com outras posições do sujeito (...)

(Orlandi, 2005, p. 96).


Para recontextualizar mitos no teatro, Armando Nascimento Rosa, dramaturgo eborense, conta com suas experiências na dramaturgia como autor, e como produtor. É doutor em Literatura Portuguesa Dramática, presidente do Conselho Científico da Escola Superior de Teatro e Cinema, onde também é professor.

A presença do mito clássico em suas obras estabeleceu um percurso articulado que começou com Um Édipo, passando por Nória e Prometeu: Palavras do Fogo, Maria de Magdala: Fábula Gnóstica e a mais recente Antígona gelada. Essas realizações teatrais compõem um projeto de Nascimento Rosa com a formação de uma associação cultural para estudo da cena denominada Teatro de Hermes.

E nenhum patrono será mais apropriado para este fim mitocrítico do que Hermes com a sua polimorfia simbólica, deus sábio e decifrador de enigmas, pai da palavra escrita (identificado com o Toth egípcio dos escribas) e da hermenêutica como arte do sentido; deus alado, viajante, poliglota e diplomata (...). (ROSA, p.2, 2003)

Acrescenta-se a isso, uma busca pelo lugar do inconsciente que faz o jogo de cena entre seus personagens e suas máscaras. Nessa mesma linha de duplicidade, como crítico, propõe-se a um teatro gnóstico.

Por gnóstico entendo eu, em sentido lato, a predisposição a um estado de abertura crítica que concebe o domínio específico da psique individual como um lugar privilegiado de onde podemos aceder a um mais vasto universo de arquétipos que transcende o inconsciente individual (...) (ROSA, 2005, p.15)

O que se pretende nesses arranjos, escolhas que geram novos sentidos, é a trajetória do duplo análoga aos conceitos apresentados por Carla Cunha no texto “Duplo” do E - dicionário de Termos literários. A cena é “Nória, o paraíso do doutor Godot” que compõe a parte final da obra Nória e Prometeu – Palavras do Fogo. Nessa peça, Nascimento Rosa traz o encontro entre o mito clássico e as referências à tradição judaico-cristã.

Aparecem lado a lado, Prometeu, o transgressor da divindade, aquele que entrega o fogo para os homens e Nória, esposa de Noé,

(...) extra-bíblica, apócrifa, e integrando as heréticas exegeses hierológicas dos gnósticos antigos (...) com a sua história de rebelião psicoteológica, é uma figura maldita, recalcada e esquecida; cuja memória arquetípica conheceu uma nova fonte em 1945, pela descoberta da chamada biblioteca de Nag Hammadi, no Egipto, constituída por papiros escondidos, sob as areias de uma gruta, por membros de uma comunidade gnóstica perseguida pela Igreja romana, dos primeiros séculos da era cristã. (ROSA, 2005, p.2)

Parece-nos bem apropriado salientar que é na esfera dessas duas categorias míticas estabelecidas, Nória e Prometeu, como o “eu”, gerador de “outros” que se dará a formação do duplo, pois nessa atuação todas as personagens encenam a Gênese segundo Nória e, para isso, há o desdobramento em outras: Nória será Eva, como veremos, Prometeu Adão e assim por diante. É pela linguagem, o ato de construção da cena, do fazer teatral, que o mito atualizado aproxima-se do duplo na linguagem.

Ambos são ramos diversos da mesma informação simbólica, que brota de um mesmo ato fundamental (...) (Cassirer, 1985, p.: 106)

Para apontar essa linguagem faz-se necessário discorrer a respeito de técnicas do discurso que atualizam o mito. A intertextualidade estabelece íntimas relações com esse processo de construção do duplo. Esse diálogo entre texto-fonte e intertexto se estabelece para preparar o campo do “eu” que será apresentado no teatro.

Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso [...]”. (BAKHTIN, 1988, pp. 100 - 105)

Comecemos então por observar as semelhanças iniciais do intertexto com o texto clássico e judaico-cristão para, em seguida, descobrirmos que novas orientações significativas eles imprimem ao texto original.

Mais do que o diálogo do mito - aquele que “conta uma história sagrada” (...) que “relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”(....) ( ELIADE, 2000, p. 11) - a ação teatral de Nascimento Rosa constrói ligações com o que entendemos por rito. De fato, é preciso entender essa movimentação que vai tecendo o texto. A cena teatral, neste caso, a Gênese da personagem Nória, vai ritualizar os primórdios da humanidade. Uma constituição aproximada de modelos consagrados. A respeito do tempo mítico ligado à busca da origem, pede-se ao ato teatral um reatualizar dos tempos primitivos:”(...) o que aconteceu ab origine pode ser repetido através do poder dos ritos.”. (ELIADE, 2007, p.17).

Diante do desdobrar cênico no “Mitodrama paródico em sete cenas”, como quer Nascimento Rosa, é na sétima cena e última que está a nova gênese, o Jardim do Éden na concepção de Nória. A estrutura aqui referida está assim disposta: Nória como mulher de Noé assumirá o papel de Eva, uma nova fêmea da espécie mutante; o Prometeu do mito apresenta-se como Adão, novo macho mutante; Zeus, o superior olímpico, aparece na figura de Doutor Godot, astronauta, geneticista, nome paródico de Beckett e seu Rapsodo, um mestre de cena, como assistente alienígena; a Águia referência do martírio de Prometeu apresenta-se como Arcângela, extraterrestre dos aéreos; e Cassandra, a mulher de Tróia, profetisa desacreditada, vai assumindo a identidade de Angélica, rebelde e filha da águia.

Essas relações projetadas na cena, entendendo que as consciências das personagens são criações literárias, ou seja, o resgate da figura Prometeu, recontextualizada na personagem dessa peça escolhe seu papel para atuar como Adão no final, identificando-se, de certa forma, com esse outro e, assim, vão se misturando as referências que tínhamos de Prometeu com essa nova personagem Adão: “(...) o DUPLO apresenta, segundo o julgamento do “eu”, características positivas, sendo resultante de um processo de identificação entre o “eu” e o seu DUPLO”. (CUNHA)

Sabemos, dessa forma, que Adão vai subverter a ordem divina, primeiro porque há elementos intertextuais, nessa figura, mantidos do texto fonte e segundo, que fica claro qual é a concepção de homem prometêico alcançada em nosso século: “(...) símbolo por excelência da revolta na origem metafísica e religiosa, como se encarnasse a recusa do absurdo da condição humana/ (...) atitude desafiadora ou contestaria dos valores tradicionais.” (BRUNEL, 2005, p. 784)

Para Prometeu/ Adão foi apresentado o Jardim do Éden por Zeus/ Dr. Godot, com uma proibição: a árvore com a maçã. É nítido que essa aproximação também funciona com Nória/Eva, aquela que, “(...) teria por três vezes tentado incendiar a arca que o marido construía, para impedir que a criação falhada do demiurgo subsistisse.”. (ROSA, 2003, p. 2) será a personagem primeira a comer a maçã a e quebrar o acordo com Zeus/ Godot.

Diante desse desdobramento de cena nos moldes de ficção científica - com alienígena, astronauta, transformações genéticas – o poder divino/ tirano de uma representação de Zeus é emprestado a seu duplo Dr. Godot:

O objetivo da missão: encontrar vida na galáxia. E se encontrássemos, vermos se era possível injectar-lhe inteligência. (...) Houve um casal que eu destaquei daquele grupo (...). Serão cobaias perfeitas. (...) Adão e Eva! Meus queridos filhos! De mim vocês hão de ter tudo, desde que façam aquilo que eu mando. (ROSA, 2003, pp. 34 – 37)

Tomando mais a fundo a relação Zeus e Dr. Godot, verifica-se que as aproximações desencadeiam um trabalho com a linguagem que rebaixa, da posição alta, situada na figura clássica contida em Zeus, para um Godot terreno, em um posicionamento baixo, do popular, assim como quer BAKHTIN (2008, p. 17) no realismo grotesco:

O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. (BAKHTIN, 2008, p.17)

Dr. Godot quer transformar os humanos em escravos sexuais, em uma espécie sexualmente ativa durante todo ano, “em cio permanente”. Zeus/ Dr. Godot é um ser que adora filmes para adultos e que espalhou no paraíso câmeras para filmar Adão e Eva. Além disso, injeta-lhes substância para que percam o pêlo.

(...) Belos como são, estes terráqueos farão as delícias carnais da nossa raça. Regresso ao meu planeta e abro um bordel com eles. (...) Mas é preciso que percam a pelagem macacóide por terapia genética. (ROSA, 2003, p.34)

Com Zeus/ Dr. Godot sob a representação da divindade está montado o jogo de cena do Paraíso. Reforçando essa questão, é na maçã que está o poder contestador que Dr. Godot tenta proteger dos terráqueos e que, como vimos, o percurso prometêico vai desafiar: “Mas tenham cuidado com as vedações porque estão electrificadas (...). Se trincarem as maçãas, irão cair em desgraça (...)” (ROSA, 2003, p.36)

Agora, já se discorre que o papel do inscitar, da tentação, da serpente, também está nesse jogo do duplo. É Cassandra/ Angélica que o fará na cena. A figura mítica do profetizar em vão, sem que ninguém a acreditasse, dá lugar à rebelde alada desafiadora desse deus astronauta: “Porque Godot controla os vossos pensamentos. Experimente a comer uma maçã e verão como falo verdade.” (ROSA, 2005, p. 37)

A personagem Angélica tem também seus outros desdobramentos. Desta vez, é ela que se apropria do fogo para salvar a humanidade. Cassandra/ Angélica é nossa nova Prometeu. Ela incendia o laboratório de Dr. Godot para queimar arquivos e informações sobre os terráqueos. Desse modo, constitui o duplo que já existia na figura prometêica: de novo aproxima-se do divino, de seu “eu”- Cassandra - novamente, pela ação e anulação do seu outro, do seu humano.

É queimando até o último germe de uma vida futura que se consegue abolir definitivamente o ciclo kármico e libertar-se do Tempo. (ELIADE, 2000, p. 80)

Na relação com os conceitos do duplo, podemos perseguir a essência do que é esse ser prometêico (ora, divino, ora mortal) e verificar a dependência do “eu” com sua projeção do “outro”: ao tentar fazer o caminho inverso, buscar sua essência, aquela ligada aos deuses, da origem – do divino, distancia-se novamente de seu “outro” terreno, aquele humanizado; agora se reconhece, pois não é só a experiência mortal, está além, transita entre os dois mundos.

(...) é necessário que esse “eu” renuncie ao seu DUPLO, exorcizando-o. A eliminação do DUPLO significará então o retorno à forma original, ao Real, à unicidade. (CUNHA)

Além disso, Angélica é um ser alado, dos aéreos e ao mesmo tempo é, pela experimentação de seu outro, o ser desafiador dessa ordem sagrada, em que ela, a serpente que instiga o homem, reconhece-se e abre a cena para a criação humana do próprio Paraíso, divinizando a humanidade. “(...) capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis ou os ancestrais fizeram.” (ELIADE, 2000, p.18) / “(...) a expectativa de um Mundo Novo implica emcom um retorno às origens.” (ELIADE, 2000, p.66)

Essa colocação que se apresenta na criação da própria função e status do criador é a síntese do duplo em Prometeu: é divino/ humano, sagrado/ profano, em que o humano só existe porque há origem divina e o profano em decorrência do sagrado - o eu e o outro.

Essa gênese, é importante ressaltar, apresentada na última cena da obra, vai se formando durante todo o espaço cênico, desde a chegada de Nória ao palco procurando Prometeu. Os desdobramentos acontecem na progressão teatral para atingir seu ápice nessa referência final apresentada: Cassandra, Zeus, Águia, Heráclito, Dionísio, o discurso do fogo é uma linha tênue entre o eu e o outro estabelecida para compor o duplo maior que é reescrever o percurso de Prometeu e Nória: do mito clássico, do judaico-cristão, do elevado e do baixo.

Voltemos, para terminar, à circularidade citada na obra Mito e Realidade, em que o homem primitivo busca o sagrado para ganhar consciência da unidade do cosmo. Esse é o ponto de encerramento da cena sete de Nória e Prometeu. Para Eliade (2000, p.86), “o essencial, para o judeu-cristianismo, é o drama do Paraíso, que institui a atual condição humana” que de certa forma é um eterno retorno.

Isso está provado na própria constituição do espaço cênico ao recontextualizar o Paraíso por Nória. Mais adiante, essa busca também está representada nas indagações a respeito do futuro do criador, no próprio discurso da peça, ao se perguntar do destino de Angélica:

Ninguém apaga o rasto dos aéreos. Dizem que o fogo e a ira a tomaram num anjo dos infernos (...). Espero que ela ainda, assim como os netos de Adão e Eva continuam à espera de Godot. (ROSA, 2005, p.40)

Diante desses desdobramentos do mito Prometeu, os novos sentidos que ganham as personagens e contexto constituem uma forma autônoma de retorno ao passado e atualização do discurso. Não só pelo rito presentificado no ato teatral, não só para alcançar o homem primitivo; quando o contemporâneo aproxima-se de tal primórdio sagrado, é apresentado um processo intelectual de o próprio fazer da cena criado por Nascimento Rosa. “(...) “voltar atrás”: não mais um regressus obtido por meios rituais, mas efetuado por um esforço do pensamento.” .(ELIADE, 2000, p.101)

Os sujeitos materializados nas personagens de seu teatro ganham características próximas das divindades que elas subvertem e re-elaboram o que é esse novo humano através de suas possibilidade de consciência e de suas relações com o outro que assumem na peça. Prometeu vai ao Olimpo e desce o fogo aos humanos; ao voltar já experienciado de humanidade, já é todo limiar.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. Tradução de Yara F. Vieira. São Paulo: Universidade de Brasília - Hucitec, 2008.

______________. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988.

CUNHA, Carla. E-dicionário de Termos literários. Disponível em = duplo []. Acesso em 29/08/2009

CASSIRER, ERNST. Linguagem e Mito. 2ª ed.. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

ELIADE, Mircea. Mito e realdade.

_____________. O mito do eterno retorno.

Orlandi, Eni. Discurso e Texto.Formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2005.

ROSA, Armando Nascimento. Nória e Prometeu: palavras de fogo. Évora: 2005.

ROSA, Armando Nascimento. O que é teatro gnóstco. Revista Véronica on line [On Line]. 2006.

Disponível em http://veronica.estc.ipl.pt/numero.. Acesso em 29/08/2009

ROSA, Armando Nascimento. Antecedentes. Arquivo-projeto por email. 2003