Fundada em 2007
ISSN 2175-3318
OS POEMAS DE AUGUSTO PIEGGAS
INDICE DOS POEMAS
O QUE EM MIM MORRIA
Quero cantar minha morte
ainda vivo,
não com pesar,
mas em festa! Sim, em festa!
Pois morri tantas vezes
que morrer era para mim costume
e na agenda a morte tinha
um espaço só seu.
Não é póstuma essa ladainha,
mas quero que escute
e, caso te inspire as musas,
recante e redance essa canção.
Comecei por morrer bem cedo,
quando num necessário acidente
a luz feriu meus olhos mal gerados.
Fora em noventa e seis.
Depois as mortes foram mais agradáveis
e tão constantes que não assustavam,
nem desassustavam.
Talvez porque a morte, em verdade,
desejasse imitar sua irmã, a vida,
que poucas vezes possui sal
e quase nunca um grão de açúcar.
Logo, era eu menino,
de loura tigela a cobrir a cabeça
e curiosos olhos verdes
a esperançar as coisas cinzas.
Ah, nesses dias,
a tenra idade fazia-me
morrer de curiosidade
das vulgares coisas que via.
E morria de rir!
Dos besouros e das formigas,
dos desenhos da TV,
das brincadeiras das tias.
Ao cair da tarde morria de medo,
tão tolo quanto certeiro,
de não ser eterno aquele dia.
Era e não era...
Não tive tempo de filosofar,
logo era noite
e eu morria de sono
e dormia...
Amanhecia também,
e morria nos sonhos
pra acordar pra vida!
Naquele tempo
eu muito morria,
mas cada morte
era uma alegria.
Quando a tigela
da cabeça caiu-me
e os astutos olhos verdes
embaçavam o mundo,
ia para a escola.
Na escola, morria de amor,
pela menina mais bonita da sala.
Um amor de Jacó por Raquel,
tão eterno, que por vezes
durava dois anos!
Depois morria de amores por outra...
Depois esquecia, por morrer de vontade,
de jogar bola até escurecer
e com os amigos
esquecer de tudo.
Morreu esse tempo,
como morrera o anterior,
morrerá esse
e também o próximo.
Daí me matei,
de estudar,
de trabalhar,
de beber.
A partir disso,
a morte fez-se cruel,
todavia era tarde
para pedir o desquite.
Morro de fome,
do sentido sempre oculto,
dos sonhos
que deveria ter tido.
Morro de arrependimento,
-Ah, se ele matasse-
das vezes que não
morri de boas coisas.
E para não morrer de tédio,
pus-me a ler e escrever,
matando cargas de caneta
e páginas de livros.
Quando eu morrer,
pela última vez,
quero que todas as coisas
que fiz e não fiz.
Me leve a morrer
como eu morria quando criança.
E a sala de estar e o quarto de ser,
estarão prontos para receber
a morte e sua irmã mais velha, a vida,
que hão de encontrar-me feliz.
PÓSTUMA
Das fúnebres notícias,
uma, em especial, me entristecia…
Foi quando, sem razão conhecida,
morreu a Poesia.
Talvez adoeceu sozinha
e partindo sem ser notada,
não fez sair sequer uma lágrima,
nem da alma mais elevada.
Ó Poesia, não fosse eu insensível,
creia que te choraria!
E por veneração - ou pura vaidade -
escreveria uma elegia.
Mas é tarde, inútil seria…
Afinal, morreu a Poesia.
SILÊNCIO
As minhas melhores melodias,
foram as que eu nunca entoei.
As minhas melhores poesias,
as que jamais escrevi.
A mais profunda oração,
aquela que esqueci.
Pois no silêncio
sou cantor, poeta, místico…
Mais próximo de Deus.
No silêncio
tenho a audácia de seu eu.
ÊXODO
Quando apenas a sede e a fome
fiéis me acompanhavam.
O sol que me feria,
o mar de areia desnudava.
Resignado me mantive,
conformado à pungente sina,
até que por recompensa
recebi a manifestação divina.
Extasiado fiquei
sem crer no que via:
na vida que me cercava,
vi que Deus é poesia.
AO AMOR DISTANTE
O beijo frio da caneta no pálido papel
é nosso caloroso primeiro beijo.
Não saberei a cor dos teus olhos,
nem se de festa ou luto
vestem-se os teus cabelos.
A única coisa que posso sentir
é a quente lágrima que do teu rosto verte,
borrando a fria letra de minha caneta.
Enxugue as lágrimas, meu amor.
Talvez eu culpe os anos por não nos unir,
ou as circunstâncias que tardaram nosso encontro
a ponto dele não existir.
A linha que liga nossas almas
sem jamais se romper
é a da ausência mútua.
E, antes de partir,
dê um beijo nos filhos
que de nós não vieram.
Enxugue novamente as lágrimas, meu amor,
busque uma família real para ter.
Quanto a mim, tenho as estrelas,
não se preocupe!
Por quem tem tanto,
não convém sofrer.
ACASO
Um contratempo
fez João
sair mais cedo da festa
e não conhecer Ana.
Obra do acaso!
Por um acaso,
três foram os minutos
que os separaram.
Três também foram as vezes
em que depois se encontraram,
mas sem se conhecerem
os olhares a cruzar se negaram.
Por culpa do acaso,
Ana morreu sozinha,
João morria de tédio
e ninguém soube como seriam
a Joana, a Flavinha ou o pequeno Sebastião.
O acaso me fez escrever
dos dois a história,
também ele te faz ler
o inexistente encontro.
Por acaso,
seria o acaso
brilhante humorista
ou o mais velhaco dos sádicos?
Tal qual um meritíssimo juiz,
dou fim ao caso:
para mim o acaso é amigo
dos que contam os causos.
NOSTOMANIA
Quando eu era menino
e a alegria me abraçava,
não sei se me dava conta
do quanto era feliz.
Mas jamais me faltou nada!
O futebol com os amigos,
a namorada para dar as mãos
e, quando o joelho ralava,
o sacramental colo de mãe.
Saudoso, hoje posso ver
que fui feliz naquela aurora
e espero a noite
para que o amanhã me diga
que também fui feliz agora.
MUSEION
A primeira vez
que em sonho me visitou,
não sabia se era Érato
ou a própria Afrodite.
Talvez fosse mortal…
Certo é que
mortal eram seus olhos,
que teriam me matado
ou eternamente me prendido,
caso não viesse
me salvar o Sol.
Eis que o Astro real tocou a janela,
antes de meus lábios
tocarem os teus.
E ao invés da venturosa musa,
beijou-me a fiel solidão.
RESSUFIXO
A Cruz na parede
traz no lugar de Cristo,
a estranha e informe imagem
de um graveto retorcido.
Na vã sede
de matar a nossa dor,
afastamos dos olhos
a figura do Servo Sofredor.
Mas nada conseguimos,
além de sofrer sozinhos.
Olhando o estranho crucifixo,
agora suspiro de saudades
de um Deus pra morrer comigo.
FLORAL
Pra não dizer que não falei das dores,
falo sincero que o mais legítimo
dos temores,
é o que me causam as flores.
Temo as flores para não temer a morte
de uma beleza entregue à própria sorte,
que partirá no próximo pisão desatento
ou murchará ao próximo sol.
E me retiro transtornado
da vista da pétala seca,
que rachada e negra proclama
que o amanhã esquecerá suas cores.
Pra não dizer que não falei do medo,
me pus a escrever,
que ao contemplar as desgraçadas flores
possa em, em verdade, me ver.
AD PERPETUAM REI MEMORIAM
Na pedra fundamental da vida
guardei numa pequena caixa
as coisas a não serem esquecidas.
Três pares de olhos tomei
e meia dúzia de bocas a me sorrir,
uma imagem da Virgem
e pessoas…
De pessoas enchi!
Quando a construção se levanta
e as paredes ameaçam ruir,
ponho-as logo abaixo
para novamente a caixa abrir.
Recebo de novo os olhares
e os sorrisos me iluminam a face,
oro, então, agradecido
o gratificante enlace.
Não me pesa a história,
quando recebo o zeloso
abraço da memória.
RASGADO
Sem saber que a roseira da vida
tantos espinhos nutria,
ingênuo, quis atravessá-la
trajando o frágil traje da alegria.
Em cada galho a me rasgar,
atacando-me sem prévio aviso,
fui deixando ali pendurado
uma parte do meu sorriso.
Quando em meio ao caminho
um espelho encontrei:
vi na entristecida face
que a alegria no caminho deixei.
Pra combinar com a veste rasgada,
rasguei na minha cara um riso
que de tão forçado e insistente,
tornou-se meu único amigo.
“DOLÓRICO”
A primeira vez que tomei as dores,
não foi por generosidade,
amor à verdade
ou por ter grandes valores.
Tomei o amargo e viciante gole
que a parva vida endossa,
logo tornando-me refém
da bebida dolorosa.
Tomei as dores das flores
misturada com a dos poetas.
Tomei as dores dos atores
e dos rompidos músculos dos atletas.
Quando o vício de mim já se apoderara,
tomei as dores da Mãe no Calvário,
e na cabeça baixa do Cristo
a dor de Deus a morrer solitário.
Tomei as dores do pobre mendigo
e do choroso rei;
nas garrafas vazias da mesa
vi que de toda dor tomei.
E quando chega a ressaca,
o motivo em mim se avizinha:
tomei as dores do mundo
pra não ter de tomar as minhas.
DISTOPIA
Imaginei o pior dos mundos
e no dantesco cenário
entrei em desespero profundo.
Pra distrair, liguei a televisão…
e o catastrófico mundo real,
não deu margem pra competição!
FILOCALIA
Quando acordei amei o céu
que estava azul,
depois amei o sol
e o colorido de uma ave.
À noite, amei as estrelas
e antes de dormir,
amei teus olhos.
Porque a beleza fora para mim
feliz calabouço
em que livremente me prendi,
pra não mais precisar
sair do Castelo.
ELEGIA A UM NASCITURO
Ó, pequenina alma,
peço-te a licença
para chorar teu choro
que fora sufocado.
A cada soluço penso
do intervalo que te privaram
entre o aconchego do ventre
e o embalo da morte.
Choro culpado por ter tido a sorte
de ver o sol a iluminar os dias
e as negras noites, ainda que frias,
que aos poucos, fariam-te forte.
Recebe de mim, pequenina alma,
o amor materno, que deveria receber puro,
se a mesquinharia humana
não tivesse ceifado teu futuro.
Venderam tua vida por uma cadeira no Senado
e o domínio na Universidade,
sem notar que perderam teu riso
e a tua mais sincera amizade.
Receba meu sincero pesar em forma de prece
e peça perdão por nós a Deus,
do presente vital que nos foi dado
e pela ganância, não nasceu.
Ó PIA
Roseira, natural rosário,
em que desfio as rubras contas
de natural veludo
com olhos e alma.
Rainha das flores,
ora pro nobis
degredadas ervas daninhas
que ao puro aroma suspiramos:
Ave Maria...
EU LÍRICO
O eu lírico dança
sem nenhuma timidez.
O eu lírico canta todas as canções
a gosto do freguês.
O eu lírico é crente
que não vacila na fé.
O eu lírico tem uma paixão adolescente
para cada mulher.
O eu lírico enfrenta
os dragões medievais.
O eu lírico vive
na mais completa paz.
O eu lírico é belo
e sua amada também.
O eu lírico não erra,
sabe fazer em tudo o bem.
Mas ele vive na poesia,
enquanto estou preso ao dia-a-dia.
E esse fato, confesso que me doeu;
saber que o eu lírico, jamais serei eu.
CONTRIÇÃO
Acordei sem querer acordar
e como um soldado
que se prepara para a última batalha,
contrariado, calcei os sapatos.
Tomei os primeiros minutos do dia
como quem toma um café sem açúcar,
pra poder entrar no ringue
já cansado da vindoura luta.
Arrastado, fui cumprir a obrigação
e, precipitando-se aos raios de sol,
as flores no canteiro
vieram me cumprimentar.
Ah, seu eu soubesse
que havia flores no canteiro aquele dia,
teria calçado os sapatos
com muito mais alegria…
CANTIGA DOS FRACASSADOS
Era de se esperar
que nesse mundo tão baixo,
eu, homem de sonhos altos,
vivesse de fracassos.
Realmente,
esse esperar se fez fato
e não houve nada
que eu não tenha falhado.
O sucesso me fugiu
no amor,
na carreira,
na fé…
Talvez o sucesso venha,
enquanto espero sentado
que eu também fracasse
em ser um fracassado.
OLHOS
Tomei os olhos de Homero,
pra ver a beleza de Penélope ou Helena,
mas vi a inveja de deuses
e naus naufragarem, apenas.
Emprestei depois os olhos de Dante,
querendo ver de Beatriz a divina feição,
mas vi as retorcidas almas
que gemiam a eterna danação.
Quis ter a luz de outros olhares,
na intenção de reduzir da vida o breu.
Hoje sonho com os olhos de criança
que um dia foram os meus.
Quero de volta meus olhos
que na escuridão esverdeava,
dando pouso em meu coração
à esperança cansada.
Quero de volta meus olhos,
que ao brilhar do Sol eram azuis,
enxergando a terra banhada
por do Céu a divina luz.
Quero de volta meus olhos,
castanhos e opacos na neblina,
cientes, ainda que simples,
que viver sempre fascina.
EPOPEIA DOS NÉSCIOS
Há tênue linha
- a qual nunca vi -
entre a tolice
e o heroísmo.
Assim, posso ser um tolo
montado em um cavalo branco
com capa vermelha a julgar ser forte,
enquanto luto contra moinhos
na síndrome do Quixote.
Por outro lado,
talvez seja eu um herói!
Ao terminar o mais ordináriov
dos dias de trabalho.
Não sei distinguir
se sou um tolo que pensa ser herói
ou se sou um herói por saber
que não sou mais que um tolo.
NUA E CRUA
Esqueça a espinha congelada
ou a libertação das borboletas
do casulo estomacal.
O amor é muito mais simples,
que de tão simples,
é inevitavelmente fatal!
NÚPCIAS
A primeira vez que você me olhou,
meu olhar covarde
fugiu para a escrivaninha
denunciando o meu amor.
Anos depois, a escrivaninha me soltou
deixando-nos a sós,
vi, então, o primeiro olhar,
ladeado de grinalda e me matando
para dar a luz a nós!
COTAÇÃO
Minha opinião não tem valor;
a multidão não se extasia
com minhas débeis palavras.
Minha fé não tem valor;
não é engajada o suficiente,
tem pálida e ignorante cor de céu.
Minha política não tem valor;
se guarda dos falsos discursos
em câmaras vazias.
Meus valores não têm valor;
medievais e ultrapassados,
nada mais são que um quadro desbotado.
Minha letra não tem valor;
sem métrica e rima
nem a inspiradora dor.
Eu não tenho valor,
ou melhor, tenho o valor do nada,
até que eu também seja vendido
por trinta moedas de prata.
CA-ÓPTICA
Arrumei a mesa de trabalho
na manhã de segunda-feira
e antes de chegar a quarta,
já virara um cenário de guerra.
Meu amigo Caos,
caso bagunçasse apenas a minha mesa,
não teríamos tamanha rivalidade
e partilharíamos uma cerveja.
Entretanto, bagunçastes tanto
que já não encontro
a distinção da mesa
com o chão ou com a vida.
Vendo o teu escárnio
de tão perto,
chego a pensar que a ordem
é apenas um caos que deu certo.
E eu que comecei a segunda
julgando-me tão esperto,
vejo-me preso ao caos,
bagunçando versos.
E ainda não chegou a quarta…
MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM
Pedrinho foi mal na prova,
logo culpou o professor.
O professor, por sua vez,
culpou a escola por seu método.
A escola culpou a Prefeitura,
que culpou o Estado,
que culpou o Governo Federal
e o próprio presidente.
O polido homem de faixa
culpou o embargo, o mercado
e não deixou impune
a gestão anterior.
O ex-presidente culpou
Joaquim Ferreira,
seu ilustre opositor.
Joaquim deu um salto
e enfim culpou Adão.
E Adão culpou Eva
e Eva a serpente
e a serpente a alguém.
Foi assim, meu filho,
que tudo começou:
num erro justificando o outro,
ninguém jamais acertou.
CARNEVALE DI VENEZA
Queria ser o que pensam que sou…
Saber de tudo
que não interessa a ninguém.
Mover as montanhas
com as orações que me pedem.
Tratar as ofensas
com carinho ou desdém.
Ter rasgado no rosto
um perpétuo sorriso para alguém.
Queria me ver como os outros me veem.
Todavia, vejo no espelho embaçado
nada mais que um retrato
de um homem descuidado.
Que definha à sombra de sonhos
que, sem sombra de dúvidas,
não sei se existem.
Cada fio de barba a cobrir a cara,
cada ruga nova que desata,
entalham no madeiro do meu rosto
a máscara dos que me veem.
Ah, como queria ver…
Além do homem que definha,
além das rugas e das barbas,
além do poema eternamente inacabado
sobre a escrivaninha…
Além! Amém!
Então chorei e o generoso espelho
retribui-me a lágrima,
logo saí de mim e fui correndo
chamar o meu vizinho para ver.
Quão bela era aquela fraqueza,
a despontar humana e mortal.
“Corre, Moisés! Vinde ver!”
Mas ao chegarmos a mim,
não havia mais lágrima.
Findara-se o transcendente espetáculo,
restou a sorridente máscara no palco.
Entristeci-me.
Pois ninguém viu
que eu não era o que viam
e eu não pude ver
aquilo que me viam.
Passei o tempo a desejar
ser o que pensam que sou.
Houve uma tarde e uma manhã,
sexto dia.
PRIMEIRO AMOR
Quando os dias puxaram o freio
e vi o brilho do Sol escurecer,
recebia a rotineira visita
do meu amigo Sofrer.
Em dias queria morrer,
noutros a vida era normal,
mas um dia, em minha janela,
pousou um pardal.
A criaturinha deu dois assobios,
antes de abrir as asas e partir
e essa fração de tempo
me valeu o existir.
Quis também assobiar,
esperando que o mundo ouviria,
mas de tão feio que era meu sopro
só ganhei a zombaria.
Quando quis, então, desistir,
feliz me lembrei que um dia
em minha janela, pousou um pardal
que me valeu o existir!
ÂMBAR
Era o nascer
e o pôr do sol.
Era a doce polpa dos frutos
e o sinal da chama
que acendeu aos poucos
e meu mundo inflama.
Eram os raios de luz
a cortar as matas
e atingir o céu
eterno e azul.
Eram seus olhos,
que refletiram doces,
incendiários e luminosos,
nos pobres olhos meus.