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Eu Kant
Vinicius dos Snatos Xavier
05:30h...
Tomarei meu cafezinho a priori, com minha bolachinha pura, e irei cumprir meu dever.
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“Hoje, logo após sair de casa, assim como todos os dias, às 06:30h, como sempre o pé direito é o apriorístico na calçada ao sair na rua, exatamente como faço ao acordar. Olho o céu e sinto respeito pelo imperativo que a razão me impõe. Logo passou aquele menino de bicicleta e me jogou o jornal Esclarecimento, e presenteou-me com o velho bom dia: “Bom dia, Senhor Kant!” – disse o bom rapaz. “Um bom dia a priori pra ti.” – respondi-o. Caminhei até a Universidade, como sempre, pelo lado direito da rua: mil, trezentos e doze passos até a sala de aula. Mais que isso seria contrário à razão!
- Bom dia a priori para os senhores.
- Bom dia a posteriori professor.
Comecei minha aula, com meu velho manual Ilustrado e Ideal, lustrado todas as noites durante quinze minutos e dezesseis segundos... Iniciei com um comentário pertinente à aula: “Meus bons rapazes, veja como qualquer parvo sabe o que fazer assim que acorda. Logo pela manhã todos já sabem seu dever... O mais ridículo camponês sabe exatamente assim como eu o que a razão o impõe...”. Logo após, ficamos falando de moralidade, de entendimento, razão pura prática e etc..
Voltei ao meu velho lar, onde, como todos os dias, ao meio-dia estava sentado almoçando: trinta e sete garfadas ao todo, com porções sempre iguais da mais pura “comida-em-si”; cinqüenta e três mastigadas, a priori, só para degustação; dezessete, a posteriori, para deglutição do alimento. Em seguida do almoço, tirei minha velha pestana, conforme ao dever, para relaxar às inclinações. Como aquela cama é um fenômeno para minha Bela Alma! – Penso eu todos os dias, após acordar, por exatos quinze segundos...
Às 13:30h, acordo de meu sono dogmático. Escrevo aquela velha carta convidando três de meus amigos para jantarem aqui em casa, em minha bela companhia. Aos três escrevi o seguinte, além de outras coisas: “amigos, tenho já um assunto para nossas conversas pós-jantar. Caso tenham algum tema interessante, escrevam-me com antecedência para me informar. Lembro-lhes que são apenas três assuntos por noite”.
Li, após isso, uma de minhas anotações para o projeto sobre a Moral que estou para escrever. Fiz, também, mais algumas anotações, a priori, para esse meu livro sobre Costumes.
Às 15h, como de costume, fui à minha caminhada pelo bosque. Mil e duzentos passos. A cada passo, duas aspirações, duas expirações. Sinto as batidas de meu coração: nunca passam de sessenta e sete por minuto: o Ideal! Um princípio racional para meu passeio pelo bosque ao ar livre. Olho-o – o bosque – com todo vigor que a boa vontade me proporciona. Vejo como na natureza tudo obedece a uma lei de causalidades infindáveis e universais. Olhando para o céu, penso como o ser racional, neste mundo, e até também fora dele, pode ser livre, pode se libertar dessa causalidade efetivando sua liberdade, apenas seguindo o seu dever, pela sua boa vontade... Sinto respeito.
Mil e duzentos passos! Dou a volta e retorno. Chego a meu saudoso lar às 16:30h. Leio algumas coisas de meu interesse geral, faço algumas anotações sobre a metafísica e, às 18h estou à mesa: janto virtuosamente, cumprimento meu dever a priori.
19:35h: Estas são as anotações de hoje, cumpri o mandamento auto-imposto pela razão. Irei dormir, assim como sempre, às 20h. Antes disso, faltando dez minutos para as 20h, arrumo meus cobertores, meus 17 cobertores, para que eu possa dormir tranqüilo, como sempre, para que não me mexa e não me sinta, pela manhã, com milhares de inclinações sensíveis prejudiciais à minha razão pura. Pois bem, amanhã cumprirei novamente meu querido dever”. [Diário de Immanuel Kant, 09 de maio de 1782].
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06:30h...
- Bom dia senhor Kant. – Diz o bom menino jornaleiro.
- Bom dia, a priori, meu bom rapaz. – e pensei: “Ele sabe o seu dever!”.
Mas, hoje, ele parou e me fez uma afirmação a posteriori, pois, logo após de ter lido a manchete do jornal:
- O senhor viu? Esta manchete diz que encontraram a coisa-em-si, lá no Brasil.
Olhei por um instante, li a matéria, e afirmei:
- Parece-me que não, meu bom rapaz. Apenas mais um fenômeno, ligado à causalidade da natureza. Aparência. Pensam eles que apreendem a coisa-em-si, só por que a educação agora se diz laica, depois que o velho Pombal expulsou os Jesuítas. Mas é tudo superficialidade. Seguem apenas as inclinações, não estão agindo por dever, tão pouco a priori, puramente racional.
- Tudo bem, senhor Kant, a Bela Alma puramente racional aqui é o senhor. O senhor é quem sabe.
- Sim, meu bom rapaz. Sabemos a priori que eles estão agindo a posteriori.
Ele se foi e continuei. Como sempre: Universidade, aulas, de volta ao lar, almoço, soneca, caminhada, contagem de passos a priori daqui, respiração a posteriori dali, e etc.. Volto para casa, leio um pouco. Relato o grandioso dia cumprido por dever em meu queridíssimo Diário e vou dormir.
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06:30h...
Saí, como sempre, com o pé direito a priori para a rua, e, para minha surpresa, vejo o garoto parado em frente ao portão de minha casa, com uma cara meio de espanto, meio de falta de fôlego, com um sorriso maroto na face. Pergunto-lhe:
- Que houve meu bom rapaz?
- Não foi nada, senhor Kant, nada de muito especial. Aliás, um bom dia para o senhor.
- Um bom dia a priori para ti, garoto. O que te traz tão mais cedo à minha casa? Que houve? Tua razão, através da tua boa vontade te impôs este dever a priori?
- Não sei se isso ocorreu, não, senhor Kant. Aliás, não entendi muito disso aí que o senhor disse. Mas, venho mais cedo por ter uma encomenda especial para o senhor. ... Pegue, está aqui.
Abro o embrulho, lacrado com um selo Real, nele impresso: França.
- Sabes a priori do que se trata, meu bom rapaz?
- Não sei, senhor. Sei que veio da França para o senhor.
Termino de abrir... Sim! Sim! Era o novo livro de Rousseau, “O Contrato Social”...
Voltei-me. Não saí mais de casa nesse dia...