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Revista Pandora Brasil Nº 37 Dezembro de 2011
ISSN 2175-3318

"SUBJETIVIDADE E TRAGÉDIA: A construção do indivíduo na literatura trágica e alhures"


O presente volume da Revista Pandora Brasil abordará o elemento trágico na construção da subjetividade. A tragédia, enquanto gênero literário, pode ser circunscrita através de dois aspectos bem objetivos: a Grécia do século V a.C. e a Europa dos tempos modernos. Ambos os períodos se encontram unidos através da crise das respectivas crenças religiosas. Na Grécia, enquanto acompanhamos o desaparecimento gradual do mundo (religioso-mítico) de Homero, vemos florescer a nova cosmologia (filosófico-científica) de Platão e Aristóteles. Na Europa, a crise da religiosidade medieval cede lugar à compreensão científico-naturalista do mundo, da natureza e do homem. Na literatura trágica, o elemento trágico desaparece à medida que a subjetividade do herói tende a se tornar autônoma, despida de qualquer caráter substancial e ligada ao transcendente.
A definição de Aristóteles não deixa dúvida quanto ao aspecto central da tragédia. Para ele, a tragédia “[...] é a imitação de uma ação séria, completa, que possui certa extensão, numa linguagem tornada agradável mediante cada uma de suas formas entre as partes, imitação realizada por personagem em cena, e não por meio de uma narração e visa, por meio da compaixão e do temor, realizar a catarse de tais emoções” (Poética, 1449b, p. 24-6). Essa definição apresenta três palavras importantes que devem ser retidas no seu sentido original: compaixão (éleos), temor (phóbos) e catarse (kathársis). O elemento humano-divino, expresso na ação dos personagens, é o elemento essencial da tragédia.
O abandono, de certa forma, desse gênero literário, na era moderna, pode ser entrevisto no excessivo valor dado à subjetividade, sobretudo, quando considerada em seu aspecto religioso-moral. Na história das ideias do ocidente, cristianismo e subjetivismo não se identificam muito, embora o cristianismo adentre, na sua prática, no subjetivismo moderno. Esta preeminência da vida interior presta um desserviço à literatura trágica, bem como à ação trágica. Se o cristianismo não é compatível com a tragédia, isso se mostra, às avessas, no processo de subjetivação da sua prática, enquanto religião. O herói trágico, na modernidade, é subjetivamente refletido em si mesmo.
O processo de subjetivação de si, fruto mais visível da cultura moderna, é o resultado do excesso de reflexão e esquecimento da ação: quanto mais o indivíduo se torna reflexivo e racional, mais ele tende a se dobrar sobre si próprio e enfraquecer a experiência trágica. Uma espécie de retorno do trágico se verifica: por mais original que seja cada reflexão sobre si mesmo, o indivíduo continua circunscrito às estruturas arcaicas: filho de Deus, determinado pelo tempo, membro de uma nação, parte de uma família, etc. Em boa medida, o indivíduo é conhecido através das relações que mantém com referidas estruturas. Relativizar tais papéis estruturantes da subjetividade e querer torna-se si mesmo, uma segunda vez, se apresenta como tarefa impossível. Afinal, relativizar todas essas mediações e aspirar ao absoluto é, para a época atual, o mesmo que tornar-se ridículo. Aquilo que se passava na ação espontânea, na época trágica dos gregos, tornou-se um problema da reflexão dos modernos. Existe um ponto de contato entre o subjetivismo atual e o sentido objetivo do transcendente?
Na nossa época, a experiência trágica fundamental foi transferida da esfera humana – a hybris do herói trágico – para a busca do sentido último da realidade. Resultado: o indivíduo hodierno está condenado a decidir entre duas alternativas: ou se lança, tenazmente, a uma busca pela objetividade ontológica descrita com caracteres humanos ou assume a tarefa de esvaziar o sentido do trágico, dando-lhe novos contornos, transvalorando a si mesmo. O escândalo do mundo moral, apresentado, sobretudo, na literatura do último século (Dostoiévski, Kafka) e o absurdo da existência (Sartre, Camus, Cioran) mostram essa inversão trágica da imanência: o trágico deixa de ser uma ameaça à ordem cósmica e se instala na mundividência do indivíduo sem nenhuma ordem, pois arbitrário, gratuita, amorfa e, o pior, indiferente à ação dramática. A situação trágica da época presente pode ser caracterizada como mera nostalgia saudosista de que habitamos o melhor dos mundos possíveis e o mito está morto? O fato é que essa interrogação, nostálgica ou saudosista, é o resultado do próprio fenômeno trágico. O reconhecimento e a aceitação da inevitabilidade e imutabilidade do destino que, outrora, regeu a concepção cosmológica dos gregos, atinge o homem de hoje de um jeito inescapável: cada indivíduo carrega, dentro de si, um Édipo rei e tenta fugir, sem sucesso, pelas vias da cristalina razão, consciente de que a fuga é o prenúncio daquilo que sucede: a realização da trágica existência ou, ao menos, do seu trágico sentido.
Como falar do elemento trágico hoje em dia? Dois aspectos poderiam, aqui, ser elencados: o elemento trágico não suporta a transmissão oral, pois deve ser vivido por alguém, ou seja, é preciso ressuscitar no indivíduo o poder de ação do homem trágico. Um segundo elemento, fundamental, diz respeito à ordem dentro da qual se inscreve o herói trágico: será possível explicar o trágico a partir da subjetividade do homem moderno sem os conflitos que caracterizam toda ação trágica, para além do tempo-espaço histórico? O trágico vive e vigora nessa contínua tensão entre esses dois pressupostos, muito embora o mais importante seja o resultado do conflito: a reconciliação dos polos através da morte.

Boa leitura!


Jasson da Silva Martins
Coordenador Revista Pandora Brasil Nº 37
Contato: jassonfilos@gmail.com



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