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A RECEPÇÃO DE ARISTÓTELES NO MUNDO ISLÂMICO MEDIEVAL: UMA OUTRA HISTÓRIA


Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo


Doutora em Ciências da Religião, Mestre em Filosofia. Pesquisadora do Grupo de Filosofia Medieval Latina e Filosofia Medieval em Árabe Falsafa – PUCSP/CNPq.




Quando pensamos em História da Filosofia Medieval surge-nos à mente, quase instantaneamente, um significado: Filosofia Cristã Ocidental. Em realidade, é exatamente isto que encontramos na maioria das ementas dedicadas à Filosofia Medieval, ao menos no Brasil: uma história linear, seqüencial e encadeada da argumentação racional, destinada a fundamentar o pensamento teológico cristão. Santo Agostinho e, principalmente São Tomas de Aquino são as figuras fundamentais dos dois períodos nos quais tradicionalmente se divide a disciplina. E ao indagarmos a diferença entre estas duas “metades” da disciplina, ouvimos falar da presença marcante das obras de Aristóteles como um todo, sob as quais, ao longe, surgem ecos distantes de um nome alienígena: Averróis, a quem o Aquinate se referia como “O Comentador”. Talvez tenhamos ouvido falar também de um certo Avicena, mas provavelmente acreditemos que tenha sido mais um médico célebre do Oriente distante que propriamente um filósofo; ou talvez também de um judeu de nome Maimônides, que nos parece uma raridade deslocada de uma tradição filosófica.

Em realidade, quando (e se) ouvimos esses nomes durante a graduação, é somente com o intuito de explicar alguma passagem da filosofia cristã que, sem eles, pareceria inexplicável. Tão inexplicável como nos parece a presença de pensadores de orientação neoplatônica no auge da Escolástica, tão dominada pelo Aristotelismo, ou quando apelamos para a influência de um ou dois padres de nomes gregos do Cristianismo Oriental. Mas, em geral, a história nos parece coerente e concatenada, e seguimos reproduzindo esses mesmos modelos. Mas talvez esta história da Filosofia Medieval seja coerente demais, de tão linear que se nos apresenta sua evolução e, por essa razão, bastante suspeita.

Esta linearidade suspeita nos leva a questionar essa história em diferentes sentidos. E o primeiro e mais importante deles surge na definição mesma do conceito de Idade Média. Tradicionalmente associada ao período disposto entre a queda do Império Romano do Ocidente (476) e a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453), notamos que a própria datação já está irremediavelmente atrelada à história do Império Romano e Cristão. Na prática, e com finalidades didáticas, esta primeira data é estendida até os primórdios da especulação racional cristã, por absoluta ausência de um locus histórico apropriado à filosofia Patrística. Nesse sentido, se a periodização mesma não deixa espaço para datas significativas relacionadas a outras culturas e mesmo ao início da Modernidade – consensualmente estipulada na queda da Nova Roma – não pode sequer entender o papel central desempenhado pela Roma do Oriente:

A história tradicional não atribui a Constantinopla um papel central na história da Idade Média, como se o historiador adotasse espontaneamente a respeito dos romanos do Oriente, o ponto de vista dos romanos do Ocidente. (...) Embora a tomada de Constantinopla marque o fim da Idade Média, portanto, da Idade Média Ocidental, a história do Império Romano do Oriente não faz parte da história Ocidental[1] .

Alain de Libera nos chama a atenção para o fato de que, a partir dessas constatações, não nos é possível falar de uma Idade Média, mas sim de diferentes tempos marcados por eventos históricos que, embora não estejam desconectados, são privilegiados por alguns povos em detrimento de outros. Alain de Libera aponta nessa sua introdução uma questão de suprema importância para este estudo, que é precisamente a inexistência, a rigor, de uma única Idade Média: “A primeira coisa que o estudante deve aprender ao abordar Idade Média é que a Idade Média não existe”.[2] Conforme o autor, o que há de fato é a coexistência simultânea de tempos diferenciados. E, quanto à importância destes tempos diferenciados para a História da Filosofia, a recepção das obras de Aristóteles é de extrema relevância, posto que, enquanto textos completos da Lógica de Aristóteles chegam à Europa romana a partir do século XII, já estão sendo utilizados no Oriente islâmico pelos filósofos muçulmanos e judeus desde o século IX e, para os cristãos gregos e armênios, quase podemos dizer que sequer se perderam.

Fixar o pano de fundo da história da Filosofia medieval significa esticar todo o pano de lado a lado do Mediterrâneo: do ocidente ao Oriente e do Oriente ao Ocidente, do Sul ao norte e do Norte ao Sul. A história da Filosofia Medieval não é a história da filosofia cristã. É a história da filosofia pagã e dos três monoteísmos dos quais foi instrumento dócil ou indócil, parceira ou concorrente[ [3]

. Para o mundo Islâmico, as datas que são tão importantes em nossa periodização histórica, nada significam, em absoluto. Os marcos dos importantes adventos são: a data da Hégira[4] (622), obviamente, uma vez que se entende que a partir desse momento tem origem uma nova civilização, e a queda de Granada, a dois de janeiro de 1492, que estabelece um ponto final nas incursões islâmicas ao Ocidente. Desse modo, não é possível crer que a Idade Média tenha significado a mesma coisa para o pensador romano, o bizantino ou o muçulmano. Sua história não era a mesma e, ainda que estes personagens fossem contemporâneos, não compartilharam do mesmo momento, em sua significação sócio-cultural: “Dois contemporâneos não habitam, necessariamente, o mesmo tempo. Para escrever uma história da filosofia medieval, o historiador que deseja assumir a realidade histórica deve partir da existência da pluralidade: pluralidade de culturas, de religiões, de línguas, de centros de estudo e de produção de saberes[5] ”.

Disso concluímos facilmente que “Como é natural, o esquema habitual que divide a história da filosofia, ou a história em geral, nos três períodos denominados Antiguidade, Idade Média e Modernidade, não poderia ser aplicado à periodização da história da Filosofia Islâmica, a não ser por um artifício verbal [6] ”. Corbin defende que o Islam tem seus tipos próprios de pensamento, que persistem desde as suas origens até nossos dias, e aponta para o fato de que, na própria literatura islâmica, existem periodizações que em nada se parecem às que estudamos nos cursos de Filosofia Medieval. Assim, para uma adequada periodização em grandes blocos, do ponto de vista da produção científica e filosófica, o autor propõe uma divisão alternativa em três períodos: 1 – (595 a 1198) das origens até a morte de Ibn Rush (Averróis); 2 – os três séculos que precedem o renascimento safávida no Irã, até 1256; e 3 – o novo florescimento do pensamento iraniano que ocorre no século XVI. O período que abordaremos aqui é o primeiro deles.

Já do ponto de vista político, o advento do Islamismo no século VII e seus avanços militares ameaçavam constantemente a hegemonia cristã em geral e, particularmente a romana, especialmente a partir do momento em que a Península Ibérica, antes governada pelos reis visigodos – os quais tampouco consistiram num grande exemplo de respeito aos dogmas estabelecidos nos Concílios – passa ao domínio islâmico. Ao contrário do que a história oficial contou durante séculos e o senso comum ainda tende a crer, não se tratou de uma mera ameaça de um povo bárbaro. Ao estudarmos a história do Islam medieval, deparamo-nos aqui com uma civilização deslumbrante, com metrópoles extensas e populosas (em contraposição à humilde Lutecia que veio a se tornar posteriormente Paris) e, em certos períodos, contando com administração plural descentralizada, que chegou a ser governada, concomitantemente, por três califados diferentes: o califado de Bagdá, o califado fatímida do Cairo e o califado de Córdoba, com todo seu esplendor; esta civilização exerceu profundo fascínio entre os cristãos medievais, por sua rica cultura e copiosa produção científica e filosófica.

O conseqüente desenvolvimento do conhecimento naqueles locais de dedicação intelectual foi o fator que proporcionou ao Ocidente latino o desenvolvimento da medicina, o acesso aos textos gregos e também à própria produção filosófica islâmica e judaica ocidental e oriental, a qual foi de valia incalculável para uma Europa cientificamente atrasada e mergulhada em suas próprias desavenças religiosas e político-militares. A história da transmissão do pensamento grego ao Ocidente Medieval, na qual os monges sírios, na sua maioria Nestorianos e Monofisitas e, portanto, heréticos, os árabes e os judeus foram os principais atores, tampouco é estudada em nossos cursos.

Curiosamente, o início da migração dos textos gregos para o mundo islâmico está fortemente entrelaçado com a própria datação da Idade Média e com a história do Império Romano Cristão. Conforme Pereira, “Em 391, após o édito que proibia os sacrifícios, promulgado por Teodósio I, monges cristãos destruíram os templos pagãos e muitos filósofos e sábios fugiram para a Síria e para a Mesopotâmia”.[7] Em 529, com a expulsão das escolas pagãs por Justiniano, a filosofia migra, com os pensadores da Escola de Atenas, em direção à Pérsia sassânida. Paralelamente, a influência grega, em especial das escolas neoplatônicas, sobre a religião cristã já estava irremediavelmente arraigada, principalmente devida à adesão da Escola de Alexandria ao Cristianismo. Ainda conforme Pereira, apesar de, naquela região serem falados diversos idiomas, o siríaco parece ter sido a opção para o ensino, compartilhada pelos sábios que migraram das terras cristãs, tanto os pagãos quanto os Nestorianos e Monofisitas, perseguidos após o concílio da Calcedônia. Isso que indica que não há como garantir que as primeiras traduções e comentários tenham sido elaborados exclusivamente por mãos cristãs. Mas, com certeza, as primeiras traduções foram realizadas do grego ao siríaco, e, entre aqueles cristãos, o interesse teológico dos monges vinha sempre acompanhado de uma especial atenção às obras de lógica. Podemos citar como exemplo, “Severo Sebokt (m. 667 d.C.) que viveu no monastério monofisita de Qinasrīn e escreveu comentários sobre o Tratado da Interpretação e sobre a Retórica de Aristóteles e escreveu um tratado sobre os Silogismos dos primeiros analíticos. Seu discípulo, Jacques de Edessa deixou como legado uma versão siríaca das Categorias [8] ”.

Após o advento do Islam e o início de sua expansão, o interesse nas obras filosóficas gregas foi despertado, já com o auxílio dos governantes:

Quando o Islam tomou posse daquele território, uma das conseqüências mais imediatas foi a tradução em Árabe daquela extensa obra presente em grego ou em siríaco. Foram os próprios califas que favoreceram um gigantesco esforço de tradução Estes, com o fim de encontrar o manuscrito grego da obra de Aristóteles, enviavam ‘missões oficiais’ ao Império Bizantino ~[9] .

O processo de tradução tem seu início a partir das obras científicas, em especial, as referentes à matemática e à astronomia, durante os reinados de Harun al-Rashid e Al-Mansur. Consta que foram traduzidos os elementos de Euclides e o Almagesto de Ptolomeu. Dessa época datam também a primeira tradução do Timeu e de muitos textos apócrifos, bem como diversas obras de Aristóteles, mas principalmente as mais científicas. O apogeu deste processo é atingido pelas traduções do grupo de Hunayn Ibn Ishaq (809-873), cristão Nestoriano que conduziu a “Casa da Sabedoria” (Bait al-Hikhmat, fundada em 806), o qual se voltou mais para o lado filosófico propriamente dito, e seu filho Ishaq Ibn Hunayn (m. 911), ao qual são atribuídas traduções das Categorias, da Física, Da geração e corrupção, e partes da Metafísica. Da mesma época são as traduções dos Tópicos, da Ética a Nicômaco, parte da Física, uma versão da Isagoge de Porfírio e tratados de Alexandre de Afrodísia, atribuídas estas a Abū Uthmān al-Dimashqī. A Abū Mattā, atribui-se comentários às Categorias, Tratados da Interpretação, Primeiros Analíticos e Segundos Analíticos, à Isagoge de Porfírio. Estes e muitos outros autores, além de traduções e comentários, escreveram também suas próprias obras.

Talvez a contribuição mais importante à formação do viés específico apresentado pela apropriação islâmica e judaica medieval do pensamento grego, e tão importante quanto curiosa, tenha sido de Ibn Nā’īma al-Himsī, uma vez que acredita-se ter sido ele o responsável pela atribuição a Aristóteles da Teologia. Esta obra, erroneamente associada ao Estagirita, consistia na verdade de extratos das Enéadas de Plotino (que viria a ser conhecido posteriormente como Al-Shaikh al-Yūnānī, “o mestre grego”) especificamente das Enéadas IV, V e VI. Esta Teologia, associada ao Livro do Puro Bem, que viria a ser passado ao Latim como o famoso Liber de Causis[10] teve papel fundamental na modelagem do pensamento da Falsafa, ou seja, do pensamento filosófico árabe, persa e judaico desenvolvido sob os auspícios dos governantes islâmicos ao menos até Ibn Rushd (Averróis). Além disso,

Ainda que os muçulmanos tenham podido ler quase tudo de Aristóteles em língua árabe, não foi este Aristóteles que determinou a orientação geral da filosofia elaborada no mundo islâmico. Porque herdeiros, como já disse, da tradição helenística de Atenas e Alexandria, os árabes também receberam como legado a tendência à conciliação entre as filosofias de Platão e Aristóteles, que remonta a Antíoco de Ascalon, no século I a.C. (...) Ao incluírem-se os muçulmanos nesta tradição, o Aristóteles que receberam, foi o Aristóteles das escolas neoplatônicas... [11]

Esta tendência é extremamente visível naqueles que passaram para a história como os grandes mestres, Al-Kindī, Al-Fārābī e Ibn Sīnā (Avicena), e prosseguirá ao menos até o esforço de “correção” das idéias de Aristóteles empreendido por Ibn Rushd (Averróis).

Al-Kindī (ca. 796-873?) seria considerado ainda, também de certa forma, um precursor da filosofia em língua árabe, uma vez que não se aprofundou muito nas reflexões, mas manteve-se próximo aos tradutores, ocupando-se de revisões. Por outro lado, foi uma figura de extrema importância para a criação e adaptação dos termos filosóficos, que eram antes inexistentes no idioma árabe, ou ao menos, muito imprecisos.

Foi, na verdade, o primeiro a se confrontar com a necessidade de situar a corrente de pensamento procedente da Grécia frente a outras opções e alternativas de seu entorno cultural, em especial com a própria sabedoria derivada do Corão. A ponte que estabeleceu entre a atitude intelectual de seus contemporâneos e a rigorosa disciplina da filosofia foi o que realmente lhe valeu o nome de “filósofo”, muito mais do que soluções propriamente filosóficas que pôde aportar. Encontrou-se diante de duas formas de pensamento distintas entre si e tratou de uni-las, abrindo uma nova via para que a filosofia se desenvolvesse no Islam e atingisse os níveis de originalidade que alcançou e que lhe valeram o mérito de exercer uma profunda, inovadora e fundamental influência na História da Filosofia [12] .

Não há como esquecer Al-Razi (o Rhazes dos latinos, m. ca. 925). Médico de formação e grande admirador dos filósofos gregos, defendeu um racionalismo radical, conforme o qual todo homem nasce com a mesma disposição para o conhecimento, ainda que uns se distingam de outros pelo grau de atividade da faculdade racional. Assim, critica a religião revelada e as idéias sobre a Profecia, e advoga que a filosofia é um caminho aberto a todos e também o caminho único para a salvação.

Entre os judeus destacou-se Isaac ben Solomon Israeli (ca. 855-955). Também médico de formação, atuando junto à corte do califado do Egito, segue muitas das idéias presentes nos escritos de Al-Kindī. Considerado o primeiro filósofo judeu medieval, entende o mundo composto de matéria e de forma, no que será precursor de S. Ibn Gabirol. Sua obra traduzida ao Latim como Liber Definitionibus, irá influenciar muitos dos autores cristãos medievais.

Na seqüência dos mais célebres filósofos do medievo islâmico, vemos o Aristotelismo claudicante de Al-Kindī tomar corpo e forma através da obra mais completa de Abū Nasr Al-Fārābī (870/5?-950). Ficou conhecido entre os filósofos islâmicos como o “segundo mestre”, ou seja, o mestre que veio depois do primeiro, que era Aristóteles.[13] Sua compatibilização entre as teorias de Platão e Aristóteles moldou o pensamento islâmico, tornando-se a marca registrada de um neoplatonismo diferenciado – que, muito mais do que um neoplatonismo islamizado, talvez devesse ser compreendido como uma nova síntese, um neoplatonismo genuinamente islâmico, de características próprias, constituído por uma mescla original.

Pouco se sabe da primeira formação de Al-Fārābī, mas com certeza o árabe não era sua língua materna. Profundo estudioso da lógica, conduzido inicialmente pelo nestoriano Yūhannā Ibn Haylān, escreveu obras importantíssimas, como o famoso Kitāb al Hurūf (o Livro das Letras), o célebre tratado político “a cidade virtuosa”, comentários à Filosofia de Platão e à filosofia de Aristóteles, entre outros. Al-Fārābī propõe a superioridade da filosofia sobre a religião e afirma que: “O discurso filosófico denomina-se demonstrativo; aspira a ensinar e tornar clara a verdade naquelas coisas cuja natureza consiste em chegar ao conhecimento certo”.[14] A obra de Al-Fārābī foi tão importante que Ibn Sīnā (Avicena) narra em sua autobiografia que só chegou a compreender a Metafísica de Aristóteles após a leitura do comentário de Al-Fārābī, ainda que já tivesse lido a obra 40 vezes e soubesse o texto de memória.

Nascido em Afsana, próxima a Bukhara, cerca de 980, Ibn Sīnā, latinizado Avicena, foi médico e filósofo, ao qual são atribuídas cerca de 250 obras. Sem sombra de dúvidas, o maior dos filósofos islâmicos. Estudioso incansável e escritor produtivo, Avicena nos legou obras de fôlego impressionante como o monumental Kitab al-Shifa’ (O Livro da Cura) em dezoito volumes e o Kitab al-Qanun fi-al-Tib (Cânon de Medicina) em cinco volumes. De especial importância na obra de Avicena é também sua teoria da Profecia na qual busca formular uma teoria filosófica em conformidade com o Corão e ao mesmo tempo, consistente com sua própria visão de mundo.[15] Nela, identifica o Intelecto ativo com o anjo Gabriel – o Anjo da Revelação. Se antes, para os muçulmanos, encontramos a idéia de que um Profeta é um homem comum que não necessita aperfeiçoar sua condição para receber a Profecia, que é uma Graça, em Avicena, “a profecia passa a ser resultante de certas condições físicas e psíquicas determinadas pelo fluxo necessário das emanações das inteligências supralunares”.[16] Os chamados escritos esotéricos[17] de Avicena têm chamado a atenção de estudiosos ocidentais desde o século passado. Na tentativa de compreensão do significado destas epístolas, diversos estudiosos discutiram e confrontaram suas posições na busca de classificar o autor enquanto místico ou como filósofo racional. Com Avicena, termina o movimento de recolher assimilar e desenvolver o pensamento grego no Oriente muçulmano. A Falsafa migraria então para o Ocidente.

Com a entrada dos árabes no Ocidente, ou seja, especialmente para a Espanha islâmica (Al-Andalus) e também o norte da África, observa-se a migração também da Falsafa, e a partir daí será percebida uma mudança de orientação no próprio conteúdo filosófico. Todos os autores citados e muitos mais, já que, pela pouca extensão do artigo não tivemos oportunidade de citar mais do que os principais, entendiam a filosofia aristotélica como um prosseguimento da filosofia platônica, não enxergando entre elas quaisquer contradições. Isso se deve, conforme já foi apontado, à leitura que lhes chegou das obras de Aristóteles, à atribuição arbitrária de textos neoplatônicos e também à própria tendência dos filósofos que viam, no Neoplatonismo, uma via mais fácil de compatibilização entre a filosofia grega e a religião.

Esta tendência neoplatônica prosseguirá na Espanha islâmica com o filósofo poeta judeu Ibn Gabirol, latinizado Avicebron ou Avencebrol (1120-1158?), o qual, em sua obra de metafísica traduzida ao latim como Fons Vitae, revivificará as Idéias de Isaac Israeli, desenvolvendo-as e formando uma composição original de elementos provenientes da idéia criacionista judaica, do modelo neoplatônico de emanações (Inteligência-Alma e Natureza) e de uma linguagem fortemente aristotélica. Para este autor, tudo aquilo que existe, tanto nos sensíveis quanto nos inteligíveis, são substâncias compostas de Matéria e de Forma. Em Al-Andalus destacar-se-ão também os muçulmanos Ibn Badjja (Avempace) e Ibn Tufail.

Mas, com Ibn Rushd, latinizado Averróis (1126-1198) a situação se modifica. Referido pela Escolástica Latina como “O Comentador” Averróis acusa Avicena de Neoplatonizar Aristóteles, e busca corrigir os erros de seus predecessores. Mantinha em relação a Aristóteles, o qual considerava superior a todos os demais filósofos, a mais profunda admiração. Sua adesão ao sistema aristotélico parece ter-se tornado ainda mais profunda, frente às críticas proferidas por Al-Ghazzali, das quais teve que defender a filosofia. Portanto, dedicou-se a mostrar que, na Filosofia, nada havia que ameaçasse as crenças religiosas e mais, que filosofia e religião coincidiam em seu fundamento, que é a busca da verdade e da sabedoria. Posto que ambas clamam pela verdade, e como não é possível haver duas verdades, a verdade não pode ser contrária à verdade, uma vez que deve estar de acordo consigo mesma. Desse modo, filosofia e religião coincidem no objetivo e fundamento, mas divergem quanto ao caminho. Para Averróis, a filosofia consiste na investigação racional sobre o ser e sobre o universo, através da demonstração, e este filósofo via em Aristóteles o grande mestre que, em termos de lógica, deveria ser continuamente seguido.

Lido e estudado em três línguas: árabe, hebraico e latim, seu pensamento foi o germe que depois fez frutificar importantes movimentos e correntes de reflexão dentro das culturas judaica e cristã, pelo que é certo que deva ser considerado um dos pais da Europa, posto que foi um dos pilares sobre os quais se assentou a modernidade. As histórias da Filosofia e da medicina têm uma dívida muito importante com o filósofo andaluz [18] .

O último nome do qual vamos nos ocupar aqui é o de Maimônides (1135-1204). Moshe Ben Maimon, filósofo judeu profundamente versado em jurisprudência judaica e Talmud, utilizou a filosofia aristotélica, pela qual nutria imensa admiração, principalmente no que diz respeito ao conhecimento das coisas terrenas. Ainda que não encontrasse oposição frontal entre a especulação filosófica e a verdade revelada, não acreditava na possibilidade de aplicar o método racional demonstrativo às realidades superiores, e isto inclui até mesmo a Astronomia. Na sua principal obra, o “Guia para os Perplexos”, Maimônides aponta uma série de paralelos entre o que dizem as escrituras e a Filosofia, mas quanto à questão da Criação do Mundo, sua posição torna-se fortemente religiosa.[19] Sua obra suscitou diversos debates, tanto no mundo judeu quanto cristão.

Por esta brevíssima explanação, podemos ter uma vaga idéia de quão ampla, rica e diversificada é a produção filosófica sob o domínio islâmico naquele período histórico. E também, ao levarmos em consideração que a Escolástica Latina tomou contato com as obras de Aristóteles pelas mãos destes filósofos e simultaneamente com as próprias obras daqueles árabes e judeus, podemos notar quão importantes estes se tornam para a compreensão da própria História da Filosofia Medieval Cristã. Para o senso comum, esta história que contamos aqui pode parecer própria de um outro povo, carregada de tintas Orientais, e tão distante de nós que não valeria a pena dedicarmo-nos a ela. Mas estes nomes estão muito mais próximos de nós do que imaginamos.

Certamente poucos estudantes de Filosofia saberão ainda na graduação que aquele pensador ao qual São Tomás de Aquino tanto cita como “O Comentador” de Aristóteles, por excelência, conhecido por Averróis, chamava-se Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Rushd, e menos ainda que foi um espanhol da cidade de Córdoba. Isso significa que, do ponto de vista geográfico strictu sensu Averróis era um ocidental, um europeu, um ibérico, tão próximo a nossas origens. Do mesmo modo, as críticas dirigidas a um certo Avicebron que professava uma odiosa doutrina de que os inteligíveis eram dotados de matéria, e que tanto fomentou a defesa tomasiana das substâncias separadas, jamais despertaram o interesse de um grande número de estudiosos. O filósofo judeu Maimônides que, por ventura, talvez os estudantes possam ter ouvido falar vagamente, talvez através do próprio Tomás de Aquino, era também espanhol, ainda que posteriormente tenha emigrado ao Egito. Contudo, apesar de histórica e geograficamente tão próximos às nossas origens, esses nomes evocam realidades que parecem muito novas e distantes a nossos ouvidos, posto que a História que nos ensinam nos bancos escolares é ainda aquela mesma que assim foi ensinada pelos mestres cristãos da Europa desde o final da Idade Média. Mas, os próprios grandes pensadores do medievo cristão sabiam que não era assim e que o conhecimento da filosofia desenvolvida em outras culturas não ameaçava a religião, nem as bases do modelo, ainda incipiente, daquilo que se tornaria o que chamamos de “pensamento Ocidental”. Prova disso é a quantidade imensa de vezes que Tomás menciona os nomes e as doutrinas desses árabes e judeus, ao longo de sua extensa obra.



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NOTAS

[1]DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998. p. 11.
[2]DE LIBERA, op. cit., p. 7.
[3]DE LIBERA, op. cit. , p. 9.
[4]Migração do Profeta Muhammad (Maomé) e início do calendário islâmico.
[5]DE LIBERA, op. cit. , p. 8.
[6]CORBIN, Henry. Historia de La Filosofía Islámica, Madrid, Trotta, 2000, p. 14. [7]PEREIRA, Rosalie H. S. “Do Ocidente para o Oriente: Harran, último reduto pagão e centro de transmissão do pensamento grego para o mundo islâmico”. In DE BONI, L. A, PICH, R. H. A recepção do pensamento Greco-romano, árabe e judaico pelo Ocidente Medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 73.
[8]ATTIÉ, Miguel, Falsafa, a filosofia entre os árabes. São Paulo, palas Athena, 2002. p. 132-3.
[9]DONINELLI, Antonella, “La tradizione semitico-latina del De generatione et corruptione di Aristotele e la sua ricezione nell’Occidente Medievale”. In DE BONI, PICH, op. cit., p. 56.
[10]O Liber De Causis já conta com uma tradução para o português, com comentário inicial. Ver TER REEGEN, Jan Gerard Joseph. O Livro das Causas. (Liber de Causis). Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
[11]GUERRERO, Rafael Ramón, La recepción árabe del De Anima de Aristóteles. Madrid: CSIC, 1992, p. 88.
[12]GUERRERO, Rafael R., Filosofías árabe y judía. Madrid: Editorial Síntesis, 2001, p. 83-4.
[13]“Um dos maiores filósofos do mundo islâmico, nascido no Turquestão, ainda que sua família tivesse, de acordo com as fontes, origens persas, estudou em Bagdá e viajou por diversos locais conhecidos pelo desenvolvimento cultural, como o Egito, Harran, Damasco e Alepo. Corbin aponta que, ao que tudo indica, Al-Farabi era xiita. “Efetivamente, em 941, vemo-lo deixando Bagdá e dirigindo-se a Alepo, onde goza da proteção da dinastia xiita dos hamdanidas; Sayfodawleh Hamdani, em particular sempre teve por ele uma singular veneração. Essa especial proteção xiita não é mero azar. Assume seu sentido pleno se levarmos em consideração tudo o que a “filosofia profética” de Al-Farabi tem em comum com aquela que, baseada nos ensinamentos dos imames do xiismo, foi exposta anteriormente”. CORBIN, H, op. cit. pp. 151-2.
[14] Al-Fārābī, apud GUERRERO, R. Filosofías árabe y judía. Madrid: Editorial Síntesis, 2001, p. 113.
[15]NASR, S. H. Three Muslim Sages: Avicenna-Suhrawardi-Ibn Arabi. Delmar, N.Y.: Caravan Books, 1976, p. 42.
[16]PEREIRA, R. “A concepção de profecia em Avicena”, In PEREIRA, R. O Islã Clássico, Itinerários de uma cultura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2007. p. 334
[17]Publicada nesta mesma revista, uma introdução sobre o tema: CAVALEIRO DE MACEDO, C. “Avicena e a Filosofia Oriental”. Pandora, n. 8 julho 2009.
[18] GUERRERO, Filosofías árabe y judía. Madrid: Editorial Síntesis, 2001, p. 216.
[19]Sobre o tema, ver neste mesmo número da revista Pandora: CAVALEIRO DE MACEDO, C. Um órfão na ilha deserta: A Crítica de Maimônides a Aristóteles quanto à eternidade do mundo.