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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS
PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS
O ESTRANGEIRO
Hoje morreu a minha mãe. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo:
Albert Camus
"Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames".
Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Tomo o ônibus das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite.
Pedi dois dias de folga ao meu chefe e, com um pretexto destes, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito.
Cheguei mesmo a dizer-lhe "A culpa não é minha". Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras. A verdade: é que eu não tinha que me desculpar: Ele é que tinha de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto. Por agora é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.
Tomei o ônibus às duas horas. Estava calor. Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena de mim, e o Celeste disse-me "Mãe, há só uma." Quando saí, acompanharam-me à porta. Estava um pouco atordoado e tive que ir a casa do Manuel para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu o tio, há seis de meses.
Tive que correr para não perder o ônibus. Esta pressa, esta correria, e talvez também os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho. Dormi quase todo o tempo. E quando acordei, estava apertado de encontro a um soldado, que me sorriu e me perguntou se eu vinha de longe.
Disse que sim, para não ter que voltar a falar.
O asilo distava dois quilômetros da aldeia. Fui a pé. Quis ver imediatamente a mãe. Mas a porteira disse-me que eu precisava, antes disso, de falar com o Diretor. Como estava com pessoas, esperei ainda um pouco. Durante este tempo, o porteiro não parou de falar. Depois, o Diretor recebeu-me no seu gabinete. Um velhote, que tem a Legião de honra. Fitou-me com uns olhos muito claros. Depois me apertou a mão durante tanto tempo, que já não sabia como havia de tirá-la. Consultou um processo e disse-me: "A Senhora sua mãe entrou aqui há três anos. O Senhor era o seu único amparo."
Julguei que me estava a fazer alguma censura e comecei a explicar-lhe, mas ele interrompeu-me: "Não tem nada que se justificar, meu filho. Estive a ler o processo da sua mãe. O Senhor não lhe podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, no fim de contas, aqui ela era feliz." Disse: "Sim, Senhor Diretor". Acrescentou: "Sabe o Senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade.
Partilhava com eles motivos de interesse que são de outro tempo. O Senhor é novo, e ao seu lado, ela aborrecia-se com certeza."
Era verdade. Quando estava lá em casa a mãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias do asilo, chorava muitas vezes: Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no último ano quase não a fui visitar, E também porque a visita me tomava o domingo todo sem contar o esforço para ir para o ônibus comprar as passagens e fazer duas horas de viagem.
O Diretor disse-me ainda mais coisas. Mas já quase não o ouvia. Em seguida perguntou-me: "Julgo que agora, quer ir ver a sua mãe?"
Levantei-me sem dizer nada e acompanhei-o até a porta.
Nas escadas, explicou-me: "Levamo-la para o nosso necrotério particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil".
Atravessamos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se.
E atrás de nós as conversas recomeçavam. Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. À porta de uma pequena construção, o Diretor deixou-me.
"Deixo-o agora, Senhor Meursault. Estou às ordens, no escritório. Em princípio, o enterro estava marcado para as dez horas da manhã. Pensamos que o Senhor podia assim passar a noite a velar.
Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso. Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.
Agradeci-lhe. Embora sem ser atéia, enquanto viva a mãe nunca pensara em religião: Entrei: Era uma sala muito clara, caiada, e coberta por uma vidraça. Movilavam-la algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão coberto.
Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados, destacando-se da madeira pintada de casca de noz. Perto do caixão estava uma enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na cabeça. Neste momento, o porteiro entrou por detrás de mim. Devia ter corrido: Gaguejou.
"Fecharam-no, mas eu vou desparafusá-lo, para que o Senhor a possa ver". Aproximava-se do caixão, quando eu o detive.
Disse-me: "Não quer?" Respondi: "Não". Calou-se e eu estava embaraçado porque sentia que não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou: "Por quê?", mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse: "Não sei". Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou sem olhar para mim: "Compreendo". O homem tinha uns bonitos olhos azuis claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se para a porta. Neste momento, o porteiro disse-me: "O que ela tem, é um câncer". Não percebi o que ele dizia, até reparar que a enfermeira trazia por debaixo dos olhos uma atadura que dava a volta à cabeça. No sítio do nariz, não se via nenhuma saliência. Apenas a brancura do penso, sobre a cara.
Depois de ela sair, o porteiro falou: "Vou deixá-lo sozinho". Não sei bem que gesto fiz, mas deixou-se ficar em pé, atrás de mim. Esta presença nas minhas costas incomodava-me. A sala estava cheia de uma bonita luz de fim de tarde. Dois besouros zumbiam, de encontro à vidraça. E eu sentia-me invadido pelo sono. Disse ao porteiro, sem me voltar para ele: "Está aqui há muito tempo?" Ele respondeu imediatamente: "Cinco anos", como se estivesse desde sempre à espera da minha pergunta.
Em seguida, pôs-se a falar sem parar. Muito se teria espantado se alguém lhe houvesse dito, no seu tempo, que acabaria como porteiro de um asilo, em Marengo. Tinha sessenta e quatro anos e era parisiense. Neste momento interrompi-o: "Ah, o Senhor não é daqui?" Depois me lembrei de que, antes de me levar ao Diretor, estivera a falar da minha mãe. Dissera-me que era preciso enterrá-la depressa, porque na planície fazia muito calor, sobretudo nesta terra. Fora então que me confiara ser de Paris e que dificilmente o esquecia. Em Paris fica-se com o morto, às vezes três ou quatro dias. Aqui não há tempo, mal nos habituamos à idéia e temos logo que correr atrás do carro funerário. A mulher dele dissera-lhe então: "Cala-te, não são coisas que se digam ao Senhor". O velho corara e desculpara-se. Eu interviera para dizer: "Não, não..." Achava o que ele estava a dizer verdadeiro e interessante.
No pequeno necrotério ele confiou-me que entrara no asilo como indigente. Como se sentia ainda válido, oferecera-se para o lugar de porteiro. Observei que, no fim de contas, era também um pensionista. Disse-me que não. Tinha já reparado na forma como se referia a "eles", aos "outros", e mais raramente aos "velhos", falando de pensionistas, alguns dos quais não eram mais velhos do que ele. Mas não era a mesma coisa, evidentemente. Como era porteiro tinha direitos sobre os outros, em certa medida.
A enfermeira entrou nesta altura. A tarde caíra muito depressa. Muito depressa, a noite escurecera, por detrás da vidraça. O porteiro manejou o interruptor e eu fiquei por momentos cego pelo aparecimento súbito da luz. Convidou-me para ir jantar ao refeitório. Mas eu não tinha fome. Ofereceu-se, então, para me trazer uma xícara de café com leite. Como gosto muito de café com leite, aceitei, e ele voltou alguns instantes depois com uma bandeja. Bebi. Tive então vontade de fumar. Mas hesitei, porque não sabia se o podia fazer diante da mãe. Pensei, e concluí que isso não tinha importância nenhuma. Ofereci um cigarro ao porteiro e fumamos os dois.
A certa altura, disse-me: "Não sei se sabia, mas os amigos da Senhora sua mãe vêm também velar. É o costume. Tenho que ir buscar cadeiras e café." Perguntei-lhe se não se poderia apagar uma das lâmpadas. O reflexo da luz nas paredes brancas cansava-me. Respondeu-me que não era possível. A instalação fora assim montada: ou tudo ou nada. A partir daí, não lhe prestei muita atenção. Saiu, voltou, arrumou as cadeiras nos seus lugares. Numa delas, empilhou as xícaras em volta de uma cafeteira. Depois se sentou em frente de mim, do outro lado da mãe. A enfermeira estava ao fundo, de costas voltadas. Não via o que ela estava a fazer. Mas, pelo movimento dos braços, parecia-me que fazia malha.
A temperatura era agradável, o café confortára-me e pela porta aberta, entrava um cheiro de noite e de flores. Creio que adormeci por alguns instantes.
Acordei, porque alguém roçou por mim. Por ter fechado os olhos, a sala pareceu-me ainda mais branca. Na minha frente não havia uma única sombra e cada objeto, cada ângulo, todas as curvas se desenhavam com uma pureza que me fazia mal aos olhos.
Foi nesse momento que entraram os amigos da minha mãe. Ao todo, eram uns dez, e passavam em silêncio, nesta luz tão crua. Sentaram-se sem que uma só cadeira rangesse. Eu via-os como nunca vira ninguém até então e nem um pormenor das suas caras ou dos seus trajes me escapava. Não os ouvia, no entanto, e custava-me a acreditar que tivessem realidade. Quase todas as mulheres usavam um avental e o cordão que as apertava na cintura, mais lhes realçava a barriga inchada. Nunca havia notado que as barrigas das mulheres velhas eram tão grandes. Os homens eram quase todos muito negros e traziam bengalas. O que me impressionava nas suas fisionomias, era que eu não lhes via os olhos, mas unicamente uma luz sem brilho no meio de um ninho de rugas. Quando se sentaram, a maioria deles olhou-me e abanou a cabeça embaraçadamente, os beiços comidos pelas bocas desdentadas, sem que tivesse percebido ao certo se me estavam a cumprimentar, ou se era apenas um tique. Julgo que me cumprimentavam. Foi nesse momento que reparei que estavam todos em frente de mim, balançando as cabeças, em volta do porteiro. Por instantes tive a impressão de que estavam ali para me julgar.
Pouco depois, uma das mulheres começou a chorar. Estava na segunda fila, escondida pelas outras, e eu não a via muito bem. Chorava dando pequenos gritos, regularmente: parecia-me que nunca mais pararia de chorar. Dava a idéia que os outros não ouviam. Estavam encolhidos, tristes e silenciosos. Olhavam o caixão, a bengala ou qualquer coisa, e não tiravam os olhos desse único objeto. A mulher continuava a chorar. Eu estava muito admirado porque não a conhecia. Gostaria de não a ouvir mais. Não o ousava dizer, porém. O porteiro debruçou-se sobre ela, falou-lhe, mas ela sacudiu a cabeça, disse qualquer coisa, e continuou a chorar com a mesma regularidade. O porteiro veio então para o meu lado. Sentou-se ao pé de mim. Ao fim de um longo momento, informou-me, sem me olhar: "Era muito amiga da Senhora sua mãe. Diz que era a única amiga que tinha e que agora, fica sem ninguém".
Ficamos assim durante longos instantes. Os suspiros e soluços da mulher iam-se fazendo mais raros. Por fim, calou-se. Eu já não tinha sono, mas estava cansado e doíam-me os rins. Era o silêncio de todas aquelas pessoas, que agora me era penoso. De tempos a tempos, ouvia apenas um ruído estranho e não conseguia compreender de que se tratava. Acabei por adivinhar que alguns dos velhos chupavam o interior das bochechas, deixando escapar estes barulhos esquisitos. Estavam tão absortos nos seus pensamentos, que nem davam por isso. Tinha mesmo a impressão de que esta morta, ali deitada, nada significava para eles. Mas creio agora que se tratava de uma impressão falsa.
Tomamos todo o café, servido pelo porteiro. Em seguida, não sei mais nada. A noite passou. Lembro-me de que, a certa altura, abri os olhos e reparei que os velhos dormiam dobrados sobre si mesmos, com exceção de um único que, de queixo encostado às costas das mãos, e com estas agarradas à bengala, me olhava fixamente, como se estivesse à espera de me ver acordar. Depois, voltei a adormecer. Acordei porque os rins me doíam cada vez mais. O dia surgia pouco a pouco através da vidraça. Logo a seguir, um dos velhos acordou e tossiu muito. Cuspia num grande lenço de quadrados e cada um dos escarros era como que um arranque. Acordou os outros e o porteiro disse-lhes que se deviam ir embora.
Levantaram-se.
Esta vigília incômoda tinha-lhes dado às caras uma cor de cinza. À saída, e com grande espanto meu, vieram-me todos apertar a mão, como se esta noite em que não havíamos trocado uma só palavra, tivesse aumentado a nossa intimidade. Estava cansado. O porteiro levou-me ao quarto dele, e pude lavar-me e pentear-me. Voltei a tomar café com leite, que era ótimo. Quando saí, o dia estava completamente erguido.
Por cima das colinas que separam Marengo do mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a preparar. Há muito tempo que não vinha ao campo e teria tido imenso prazer em passear, se não fosse a mãe. Mas pus-me à espera no pátio, debaixo de uma árvore. Respirava o odor da terra fresca e já não tinha sono. Pensei nos colegas do escritório. A esta hora levantavam-se para ir para o trabalho: para mim, era sempre a hora mais difícil. Pensei um pouco mais nestas coisas, mas um sino que tocava no interior dos edifícios distraiu-me. Houve uma confusão de movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o Diretor estava à minha espera. Fui ao escritório deste.
Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças de fantasia.
Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou-lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone:
"Bigeac, diga aos homens que podem ir".
Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro... Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. Em princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: "Tomás Perez". Aqui, o Diretor sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e sua mãe andavam sempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: "É a sua noiva".
Ele ria. Isto agradava-lhes. E o caso é que a morte da sua mãe afectou-o muito. Achei melhor não lhe recusar a autorização. Mas, a conselho do médico, proibi-lhe o velório de ontem".
Ficamos calados durante bastante tempo. O Diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório.
A certa altura observou: "Já chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me que são precisos pelo menos três quartos de hora para chegar à igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos.
Diante do edifício, estava o padre e dois acólitos.
Um deles segurava um turíbulo de incenso e o padre abaixava-se para regular o comprimento da corrente de prata. Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por "meu filho" e disse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o.
Vi de relance que os parafusos do caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o Diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas orações. A partir da confusão de movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: Começava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o Diretor estava à minha espera. Fui ao escritório deste. Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças estampadas. Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou-lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone: "Figeac, diga aos homens que podem ir".
Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro. Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me de que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. E m princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: Tomás Perez. Aqui, o Diretor sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e a sua mãe andavam sempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: "É a sua noiva". Ele ria. Isto agradava-lhes. E o caso é que a morte da sua mãe afetou-o muito. Achei melhor não lhe recusar a autorização. Mas, a conselho do médico, proibi-lhe o velório de ontem".
Ficamos calados durante bastante tempo. O Diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório. A certa altura observou: "Já chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me que são precisos pelo menos três quartos de hora para chegar à igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos. Diante do edifício, estava o padre e dois acólitos. Um deles segurava um turíbulo de incenso e o padre abaixava-se para regular o comprimento da corrente de prata. Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por "meu filho" e disse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o.
Vi de relance que os parafusos do caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o Diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas orações. A partir deste momento, foi tudo muito rápido. Os homens dirigiram-se para o caixão. O padre, os dois acólitos, o Diretor e eu, saímos. Diante da porta, havia uma Senhora que eu não conhecia: "o Sr. Meursault", disse o Diretor. Não escutei o nome da Senhora e compreendi apenas que era enfermeira delegada. Sem um sorriso, inclinou uma cara ossuda e comprida. Depois, afastámo-nos para deixar passar o corpo. Seguimos os homens e saímos do asilo. Diante da porta, estava um carro comprido e reluzente. Ao pé do carro, estavam o mestre de cerimônias, homenzinho vestido com um traje ridículo, e um velho com um ar embaraçado. Percebi que era o Sr. Perez. Tinha um chapéu mole, de copa arredondada e abas largas (tirou-o da cabeça quando o caixão atravessou a porta), um traje cujas calças caíam sobre os sapatos e uma gravata preta, pequena demais, para a sua camisa com um grande colarinho branco. Os beiços tremiam-lhe, por debaixo de um nariz semeado de pontos negros. Os cabelos brancos, bastante finos, deixavam-lhe passar umas curiosas orelhas balouçantes e mal acabadas, cuja cor de um vermelho sanguíneo nesta cara tão pálida, me impressionou.
O mestre de cerimônias indicou-nos os nossos lugares. O padre ia à frente do carro. Em volta deste, os quatro homens. Atrás, o Diretor e eu; fechando o cortejo, a enfermeira delegada e o Sr. Perez.
O céu estava já cheio de sol. Começava a pesar sobre a terra e o calor aumentava rapidamente: Não sei por que motivo o esperamos tanto tempo antes de principiarmos a andar. Tinha calor, com o meu traje escuro. O velhinho que voltara a cobrir a cabeça, tirou outra vez o chapéu. Voltara-me um pouco para o lado dele e olhava-o, quando o Diretor o trouxe à conversa. Disse-me que, muitas vezes, a minha mãe e o Sr. Perez iam passear à noite até a aldeia, acompanhados por uma enfermeira. Eu olhava os campos em meu redor. Através das linhas de ciprestes que levavam às colinas perto do céu, desta terra ruiva e verde, destas casas raras e bem desenhadas, eu compreendia a minha mãe. A noite, neste sítio, devia ser como que um melancólico período de tréguas.
Hoje, o sol excessivo que fazia estremecer a paisagem, tornava-a deprimente e inumana.
Iniciamos o caminho. Reparei então que o Sr. Perez coxeava ligeiramente. Pouco a pouco, o carro ia mais depressa e o velho perdia terreno: Um dos homens que rodeava o carro também se deixou ultrapassar e seguia agora ao meu nível. Eu estava admirado pela rapidez com que o sol subia no horizonte. Dei por que o ar era há muito cruzado pelo canto dos insetos e pelos estalidos das ervas. O suor caía-me pela cara abaixo. Como não trazia chapéu, limpava-me com um lenço. O empregado da agência disse-me então qualquer coisa que não ouvi. Enquanto, com a mão esquerda, limpava a testa com um lenço, com a mão direita levantava a pala do boné. Disse-lhe: "O quê?" Ele repetiu, apontando para o céu: "Está forte". Eu disse: "Sim". Pouco depois, perguntou-me: "É a sua mãe, quem ali vai?" Voltei a dizer: "Sim". "Era muito velha?" Respondi: "Assim, assim", porque não sabia ao certo quantos anos tinha. O homem calou-se. Voltei-me e vi o velho Perez uns cinqüenta metros atrás de nós. Com o chapéu na mão, apressava-se o mais que podia: Olhei também para o Diretor. Andava com muita dignidade, sem gestos inúteis. Algumas gotas de suor escorriam-lhe pela testa, mas não as enxugava.
Parecia-me que o cortejo ia um pouco mais depressa. Em volta de mim, era sempre a mesma paisagem luminosa, inundada de sol. O brilho do céu era insustentável. Em dado momento, passamos por um trecho de estrada que havia sido reparado há pouco. O sol derretia o alcatrão. Os pés enterravam-se, deixando aberta a carne luzidia do alcatrão. Por cima do carro, o chapéu do cocheiro, de couro escuro, parecia ter sido moldado na mesma lama negra. Sentia-me um pouco perdido entre o céu azul e branco e a monotonia destas cores, negro pegajoso do alcatrão aberto, negro baço dos trajes, negro lacado do carro. Tudo isto, o sol, o cheiro de borracha e de óleo do automóvel, o do verniz e o do incenso, o cansaço de uma noite de insônia, me perturbava o olhar e as idéias. Voltei-me uma vez mais: o velho Perez apareceu-me muito ao longe, perdido numa nuvem de calor, e depois não o tornei a ver. Procurei-o com o olhar e vi que abandonara a estrada e metera pelos campos dentro. Reparei que, na minha frente, a estrada virava para um lado. Compreendi que o Perez, conhecendo a terra, cortava a direito para nos apanhar. Na curva, conseguira juntar-se conosco. Em seguida voltamos a perdê-lo. Tomou ainda vários atalhos através dos campos. Quanto a mim, sentia o sangue latejar-me nas fontes.
Depois tudo se passou com tanta rapidez, tanta certeza, tanta naturalidade, que já não me lembro de nada. Uma coisa, apenas: à entrada da aldeia, a enfermeira delegada falou-me. Possuía uma voz singular, que não acertava com a cara, uma voz trêmula e melodiosa. Disse-me: "Se vamos muito devagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas se vamos muito depressa, transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio". Tinha razão. Era um beco sem saída. Conservei ainda algumas imagens deste dia: por exemplo, a cara do Perez quando, pela última vez, se juntou conosco próximo da aldeia. Grossas lágrimas de enervamento e de tristeza corriam-lhe pela cara abaixo. Mas, por causa das rugas, não caíam. Dividiam-se, juntavam-se e formavam uma máscara de água nessa cara arruinada. Houve ainda a igreja e os aldeões nos passeios, os gerânios vermelhos nos jazigos do cemitério, o desmaio do Perez (dir-se-ia um boneco quebrado), a terra cor de sangue que atiravam para cima do caixão da mãe, a carne branca das raízes que se lhes juntavam, ainda mais gente, vozes, a aldeia, a espera diante de um café, o incessante roncar do motor, e a minha alegria quando o ônibus entrou no ninho de luzes de Argel e que pensei que me ia deitar e dormir durante doze horas.
II
Ao acordar, compreendi por que motivo o meu chefe mostrara um ar aborrecido quando lhe pedi os dois dias de licença: hoje era sábado. Tinha-o, por assim dizer, esquecido, mas ao levantar-me, esta idéia viera-me à cabeça. O chefe, muito naturalmente, pensou que eu disporia assim de quatro dias de feriado contando com o domingo, e isso não lhe podia dar prazer de espécie nenhuma. Mas por um lado não é culpa minha, se o enterro foi ontem em vez de ser hoje, e por outro lado, teria tido de qualquer maneira o sábado e o domingo livres. Isto não me impede, é claro, de compreender.
Custou-me a levantar, pois estava cansado do dia de ontem. Enquanto fazia a barba, perguntei a mim mesmo o que iria fazer e decidi ir tomar um banho de mar. Tomei um bonde e dirigi-me para o estabelecimento de banhos do porto. Uma vez aí, mergulhei para a água. Havia muitos rapazes e moças. Encontrei na água a MarieCardona, uma antiga datilógrafa do escritório, que eu desejara em tempos. Ela também, julgo eu. Mas despediu-se pouco depois e não tivemos tempo.
Ajudei-a a subir para uma bóia e, neste movimento, toquei-lhe nos seios. Estava eu ainda na água, e já ela se estendia na bóia de barriga para o ar.
Voltou-se para mim. Tinha os cabelos a caírem-lhe para os olhos e sorria. Subi para o lado dela.
Estava um dia ótimo e, como de brincadeira, deixei cair a cabeça para trás, e descancei-a em cima dela. Não disse nada e eu deixei-me ficar assim: Tinha o céu inteiro nos olhos, e o céu estava azul e dourado. Debaixo da cabeça, sentia o corpo de Marielatejar suavemente. Ficamos muito tempo na bóia, meio adormecidos. Quando o sol se tornou forte de mais, ela mergulhou e eu também. Agarrei-a, passei-lhe um braço em volta da cintura e nadamos os dois juntos. Ela ria muito. No cais, enquanto nos secávamos, disse-me: "Estou mais queimada do que você". Perguntei-lhe se queria vir comigo à noite ao cinema. Voltou a rir e disse que tinha vontade de ver um filme com o Fernandel. Depois de vestidos, ficou admirada de me ver com uma gravata preta e perguntou-me se eu estava de luto. Disse-lhe que a minha mãe tinha morrido. Como queria saber há quanto tempo, respondi-lhe: "Morreu ontem". Esboçou um movimento de recuo, mas não fez nenhuma observação. Tive vontade de lhe dizer que a culpa não fora minha, mas detive-me porque me pareceu já ter dito isso mesmo ao meu chefe. Isto nada queria dizer. De qualquer modo, fica-se sempre com um ar um pouco culpado.
À noite, Marieesquecera-se de tudo. O filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. Encostava a minha perna à dela. Acariciava-lhe os seios. Para o fim do espetáculo beijei-a, mas mal. À saída, veio a minha casa.
Quando acordei fora-se já embora. Explicara-me que tinha de ir visitar uma tia. Pensei que era domingo, o que me aborreceu: não gosto dos Domingos. Então me voltei na cama, procurei na almofada o cheiro de sal que os cabelos de Marieali tinham deixado e dormi até às dez horas: Fumei depois alguns cigarros, sem me levantar, até ao meio-dia. Não queria ir como de costume almoçar ao Celeste porque me fariam com certeza perguntas e eu detesto que me façam perguntas. Cozi eu próprio uns ovos e comi-os assim mesmo, sem pão porque já não havia nenhum e porque não queria descer para i-lo comprar.
Depois do almoço aborreci-me um pouco, e vagueei pela casa. Quando a mãe cá estava, era cômoda. Agora é grande demais para mim e tive que transportar a mesa da sala de jantar para o quarto.
Vivo apenas nesta divisão, rodeado pelas cadeiras de palha um pouco gastas, pelo armário cujo espelho está amarelecido, pela cômoda e pela cama encerada. Mais tarde, para fazer alguma coisa, peguei num velho jornal e pus-me a ler.
Recortei um anúncio de sais de Kruschen e colei-o num velho caderno onde guardo as coisas que me divertem nos jornais. Lavei também as mãos e, por fim, fui para a varanda.
O meu quarto dá para a rua principal do bairro. A tarde estava bonita. No entanto, o pavimento estava pastoso, as pessoas eram poucas e, para mais, iam com pressa. Passavam primeiro famílias de passeio, dois miúdos de traje à marinheiro, com calças até ao joelho, um pouco embaraçados nos seus trajes de ver-a-Deus, uma mocinha com um grande laçarote cor-de-rosa e sapatos pretos envernizados. Atrás deles, uma mãe enorme, com um vestido de seda castanho, e o pai, um homenzinho franzino que eu conheço de vista. Trazia um chapéu de palha, um lacinho e uma bengala na mão. Vendo-o com a mulher, percebi porque é que, no bairro, se dizia que era uma pessoa distinta. Um pouco mais tarde, passaram rapazes do bairro, cabelos penteados com fixador, gravata vermelha, casaco muito cintado, com uma algibeira bordada e sapatos de ponta quadrada. Pensei que iam a um dos cinemas da baixa.
Por isso é que partiam tão cedo, rindo tanto e correndo para o bonde.
Depois deles, a rua ficou pouco a pouco deserta.
Os espetáculos, julgo eu, tinham principiado em toda a parte. Só se viam na rua os comerciantes e os gatos. O céu estava puro, mas sem brilho, por cima das árvores ao longo da rua. No passeio da frente, o vendedor de tabaco tirou uma cadeira, instalou-a diante da porta e pôs-se a cavalo nela, com os dois braços nas costas. Os bondes, há pouco cheios, iam quase vazios. No pequeno café "Pierrot" ao lado da tabacaria, o criado varria a serradura na sala deserta. Era realmente domingo. Peguei na minha cadeira e coloquei-a como a do vendedor de tabaco porque me pareceu muito mais cômodo. Fumei dois cigarros, entrei para ir buscar um bocado de chocolate e voltei para o comer na janela. Pouco depois o céu escureceu e julguei que íamos ter uma chuva de Verão. Pouco a pouco, no entanto, o céu foi-se descobrindo. Mas a passagem das nuvens deixara na rua como que uma promessa de chuva que a tornara mais sombria. Fiquei ali muito tempo, a olhar para o céu.
Às cinco horas, os bondes chegaram ruidosamente. Traziam do estádio cachos de espectadores pendurados nos degraus e nas pegas das portas.
Os bondes seguintes transportavam os jogadores, que reconheci pelas malinhas que traziam na mão. Gritavam e cantavam aos berros que o seu clube era o melhor. Muitos deles fizeram-me sinais. Um deles, gritou-me mesmo: "Demos cabo deles!" E, sacudindo a cabeça, eu disse: "Sim, sim". A partir deste momento, os automóveis começaram a afluir. O dia mudou ainda um pouco. Por cima dos tetos, o céu tornou-se avermelhado e, com o nascer da noite, as ruas ganharam animação. Os mesmos transeuntes foram voltando pouco a pouco. Reconheci o Senhor distinto no meio dos outros. As crianças choravam ou deixavam-se arrastar: Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram para a rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes de há pouco tinham gestos mais decididos do que o costume e eu calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam dos cinemas da cidade chegaram um pouco mais tarde. Pareciam mais sérios. Ainda riam, mas de tempos a tempos. Tinham um ar cansado e pensativo. Deixaram-se ficar na rua, dando de um lado para o outro no passeio do lado de lá. As moças do bairro, de cabelos soltos, passeavam de braço dado. Os rapazes passavam por elas e dirigiam-lhes gracejos, elas riam-se e voltavam a cabeça para o lado. Algumas, minhas conhecidas, acenaram-me com a mão.
As lâmpadas da rua acenderam-se bruscamente e empalideceram as primeiras estrelas que subiam na noite. Senti os olhos fatigados, de tanto olhar os passeios, com o seu carregamento de homens e de luzes. As lâmpadas tornaram os pavimentos luzidios, e os bondes, a intervalos regulares, lançaram os seus reflexos sobre uns cabelos brilhantes, um sorriso ou uma pulseira de prata. Pouco depois, os bondes fizeram-se mais raros, a noite escureceu por sobre as árvores e as lâmpadas, e o bairro esvaziou-se insensivelmente, até à altura em que o primeiro gato atravessou lentamente a rua outra vez deserta. Pensei então que era preciso jantar. Doía-me um bocadinho o pescoço por ter ficado tanto tempo apoiado sobre as costas da cadeira. Fui à rua comprar pão e pastéis, cozinhei eu mesmo o que tinha em casa e comi em pé. Quis fumar outro cigarro à janela, mas o ar tinha refrescado e eu estava com um pouco de frio. Fechei os vidros e, à volta, vi no espelho uma parte da mesa onde a lâmpada de álcool estava junto a uns pedaços de pão. Pensei que passara mais um domingo, que a mãe já fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho e que, no fim de contas, continuava tudo na mesma.
III
Hoje trabalhei muito, no escritório. O chefe foi amável. Perguntou-me se eu não estava cansado e quis saber a idade da mãe. Para não me enganar, respondi "Uns sessenta e tal", e, não sei por que, ficou com um ar aliviado, um ar de "assunto arrumado". Havia imensas cartas a responder, amontoadas sobre a minha secretária e tive que lhes dar seguimento. Antes de deixar o escritório para ir almoçar, lavei as mãos. Ao meio-dia, gosto sempre de fazê-lo, à tarde, não tanto, porque a toalha rolante já está muito úmida: serviu durante todo o dia.
Uma vez fiz esta mesma observação ao chefe. Respondeu-me que era aborrecido, mas que se tratava de um pormenor sem importância. Saí um pouco mais tarde, ao meio-dia e meia hora, com o Manuel, que trabalha na expedição. O escritório dá para o mar e perdemos alguns instantes a olhar para os barcos de carga, no porto ardente de sol. Neste momento passou um caminhão, fazendo um enorme barulho de correntes e de explosões. O Manuel perguntou-me "se aproveitávamos" e eu comecei a correr. O caminhão ultrapassou-nos e lançamo-nos a toda a velocidade atrás dele. Sentia-me inundado de poeira e de ruído. Não via nada e sentia apenas este impulso desordenado da corrida, no meio de guindastes e de máquinas, de mastros que dançavam no horizonte e de cascos de navios. Fui o primeiro a agarrar-me e atirei-me num salto. Depois, ajudei o Manuel a sentar-se. Estávamos sem fôlego, o caminhão ia aos saltos no pavimento irregular do cais, por entre a poeira e o sol. O Manuel ria-se a bandeiras despregadas.
Chegamos todos suados ao restaurante do Celeste, que lá estava como sempre, com a sua barriga gorda, o seu avental e os seus bigodes brancos. Perguntou-me "se eu me sentia bem". Disse-lhe que sim e que estava com fome. Comi muito depressa e tomei um café. Depois voltei para casa, dormi um bocado porque bebera vinho demais e, ao acordar, tive vontade de fumar. Fazia-se tarde e corri para apanhar um bonde. Trabalhei toda a tarde. Fazia muito calor no escritório e à tarde, à saída, gostei de passear lentamente ao longo do cais. O céu estava verde e eu sentia-me contente. Mas apesar disso fui diretamente para casa, pois queria cozer umas batatas.
Ao subir, na escada escura, choquei com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Ia com o cão. Há oito anos que não se largam. O rafeiro tem uma doença de pele que lhe fez cair todo o pêlo e que o cobre de manchas e de crostas. À força de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por ficar parecido com o cão. Quanto ao cão, tomou do dono uma espécie de ar curvado, focinho para frente e pescoço estendido. Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se. Duas vezes por dia, às onze e às seis horas, o velho leva o cão a passear. Fazem há oito anos o mesmo itinerário. Seguem ao longo da Rua de Lyon, o cão a puxar pelo homem até o fazer tropeçar. Põe-se então a bater no bicho e a insultá-lo. O cão roja-se cheio de medo e deixa-se arrastar. Nesse momento é o velho quem tem que puxar. Quando o cão se esquece, põe-se outra vez a puxar e é outra vez espancado e insultado. Ficam então os dois no passeio e olham-se, o cão com terror, o homem com ódio. É assim todos os dias. Quando o cão quer fazer as suas necessidades, o velho não lhe dá tempo e arrasta-o: Se por acaso o cão "faz" no quarto, também lhe bate. Isto dura há oito anos. O Celeste diz que "é uma pena", mas no fundo ninguém pode saber. Quando encontrei o Salamano nas escadas, ia a insultar o cão: "Bandido! Cão nojento!" Eu disse: "Boas noites", mas o velho continuava a insultá-lo: Perguntei-lhe o que é que o cão tinha feito. Não me respondeu. Dizia apenas: "Bandido! Cão nojento!". Percebi que, debruçado sobre o animal, estava a arranjar qualquer coisa na coleira. Falei mais alto. Então, sem se voltar para trás, respondeu-me com uma espécie de raiva reprimida: "Está sempre aqui!". Depois foi-se embora puxando pelo cão, que chorava e se deixava arrastar.
Neste instante preciso, entrou o meu segundo vizinho de andar. No bairro, corre o boato que vive à custa das mulheres. Mas quando lhe perguntam qual é o emprego que tem, responde que é "lojista". Em geral, não gostam dele. Mas fala muitas vezes comigo e às vezes entra em minha casa, porque sou dos poucos que o escutam. Acho que diz coisas com muito interesse. Aliás, não tenho nenhum motivo para não lhe falar. Chama-se Raimundo Sintès. É baixo, com uns ombros largos e um nariz de pugilista. Anda sempre vestido muito corretamente. Também ele diz, ao falar do Salamano: "uma pena!" Perguntou-me se aquilo não me incomodava e eu respondi-lhe que não.
Subimos e eu ia deixá-lo, quando me disse: "Tenho lá em casa vinho e chouriço. Não quer vir petiscá-lo comigo?" Pensei que isso me evitaria ter que fazer o jantar e aceitei. A casa dele compõe-se apenas de um quarto e de uma cozinha sem janela. Por cima da cama, vêem-se um anjo de estuque, branco e cor-de-rosa, retratos de campeões e duas ou três fotografias de mulheres nuas. O quarto estava sujo. e a cama por fazer. Primeiro, acendeu a lâmpada a querosene, depois colocou na mão direita uma atadura pouco limpa. Perguntei-lhe o que é que tinha na mão. Respondeu-me que andara à pancada na rua com um tipo que se metera com ele.
"Não sei se sabe, Senhor Meursault, disse, não é que eu seja mau, o que sou é nervoso. O outro me disse: "Se és homem, desce do bonde". Respondi-lhe: "Vá, sossega, tem calma". Disse-me que eu não era um homem. Então desci e disse-lhe: "É melhor que te cales, ou parto-te a cara". Respondeu-me: "Sempre queria ver". Então lhe dei um soco. Caiu. Quando eu o ia a ajudar a levantar, começou do chão a dar-me pontapés. Então lhe dei uma joelhada e dois pontapés. Tinha a cara cheia de sangue. Perguntei-lhe se queria mais. Disse que não."
Entretanto, Sintès ia enrolando a atadura. Eu estava sentado na cama. Disse-me: "Como vê, não fui eu que comecei. Ele é que quis". Reconheci que era verdade. Declarou-me então que, justamente, queria pedir-me um conselho a propósito deste assunto, que eu sim, era um homem, que conhecia a vida, que podia ajudá-lo e que, em seguida, ficaria meu amigo. Não respondi e ele perguntou-me se eu queria ser amigo dele. Repliquei que tanto me fazia: ele ficou com um ar contente. Tirou o chouriço de um armário, assou-o no fogão, e pôs em cima da mesa copos, pratos, talheres e duas garrafas de vinho. Tudo isto sem dizer uma palavra. Depois instalamo-nos. Enquanto comia, começou a contar-me a história toda. Ao princípio, hesitava um pouco. "Conheci uma Senhora... Essa Senhora... era minha... amante, por assim dizer..." O homem com quem lutara era irmão dessa mulher. Disse-me que a tivera por sua conta. Não respondi nada, mas ele sentiu-se na necessidade de acrescentar imediatamente que sabia muito bem os boatos que corriam no bairro, mas que só respondia perante a sua consciência, e que tinha a profissão de lojista.
"Voltando ao assunto, disse ele, a certa altura percebi que qualquer coisa não jogava certo". Dava-lhe dinheiro suficiente para viver. Pagava-lhe mesmo o quarto e ainda vinte francos por dia para alimentação. "Trezentos francos para o quarto, seiscentos francos para a comida, um par de meias de vez em quando, eram bem uns mil francos por mês." E Sua Excelência não trabalhava! Mas dizia-me que era pouco, que o que eu lhe dava não era suficiente. E no entanto, eu dizia-lhe: "Porque é que não arranjas um trabalho, nem que seja por meio dia? Já me aliviavas um bocado. Este mês comprei-te um vestido, dou-te vinte francos por dia, te pago a renda e tu, passas as tardes a tomar café com as amigas. Dás-lhes o café e o açúcar. Portei-me bem contigo e tu não me pagas na mesma moeda". Mas ela não trabalhava, dizia que não era capaz e foi assim que percebi que me andava a enganar.
Contou-me que lhe encontrara dentro da carteira um bilhete de lotaria e que ela não soubera explicar como arranjara dinheiro para comprá-lo. Mais tarde, encontrara-lhe uma senha de casa de penhores, provando que penhorara duas pulseiras. Até aí, ignorara a existência dessas pulseiras. Percebi perfeitamente que aqui andava gato. Então a abandonei. Mas primeiro cheguei-lhe, e disse-lhe meia dúzia de verdades. Disse-lhe que o que ela queria, era divertir-se. E disse-lhe também, Sr. Meursault:v
"Não vês que todos têm inveja da felicidade que te dou? Ainda acabarás por ter saudades da felicidade que tinhas..."
Espancara-a até a deixar cheia de sangue. Antes disso, não lhe batia. Ou batia-lhe, mas ternamente, por assim dizer. Chorava um bocadinho. Eu fechava as persianas e o caso terminava como sempre. Mas agora, foi a sério. E quanto a mim, ainda não a castiguei bastante.v
Explicou-me nesta altura que era por isto que precisava de um conselho. Calou-se para regular a torcida do candeeiro. Eu, continuava a ouvi-lo. Bebera quase um litro de vinho e sentia muito calor nas fontes. Como os meus se haviam acabado, fumava os cigarros do Raimundo. Passavam na rua os últimos bondes, levando com eles os ruídos agora longínquos do bairro. Raimundo continuou a falar. O que o aborrecia, "era ainda sentir necessidade física dela". Mas queria castigá-la. Primeiro pensara levá-la para um hotel e chamar a polícia de costumes para provocar um escândalo e ser-lhe passada uma carta de profissional. Depois, dirigira-se a uns amigos que pertenciam a um meio duvidoso. Estes não tinham tido nenhuma idéia. E, como me sublinhava Raimundo, valia realmente a pena serem desse meio, para nem idéias terem! Dissera-lhes isso mesmo e eles tinham-lhe então proposto "marcá-la". Mas não era ainda o que ele queria. Precisava de pensar muito. Mas antes, queria perguntar-me uma coisa. De resto, antes de mo perguntar, queria saber o que eu pensava desta história toda. Respondi que não pensava nada, mas que era muito interessante. Perguntou-me se eu achava que ela o tinha enganado. A mim, parecia-me bem que sim. Achava-se que ele a devia castigar e o que faria eu, se estivesse no seu lugar. Disse-lhe que nunca se podia saber, mas compreendia que ele a quisesse castigar. Bebi ainda um pouco de vinho. Ele acendeu um cigarro e contou-me a idéia que tinha em mente. Queria escrever-lhe uma carta "dando uma no cravo e outra na ferradura". Depois, quando ela voltasse, teria relações com ela, como habitualmente e, "mesmo no fim", cuspir-lhe-ia na cara, e pô-la-ia na rua. Achei que, efetivamente, seria um bom castigo. Em seguida disse-me que não se sentia capaz de escrever a carta e que pensara em mim para redigi-la. Como eu não dizia nada, perguntou-me se me importava de fazê-lo agora mesmo e eu respondi que não.
Depois de beber um copo de vinho, Raimundo levantou-se. Afastou os pratos e os restos de chouriço frio que tínhamos deixado. Limpou cuidadosamente a toalha encerada da mesa. Tirou de uma gaveta da mesa de cabeceira uma folha de papel quadriculado, um sobrescrito amarelo, uma pequena caneta vermelha e um tinteiro quadrado de tinta roxa. Quando me disse o nome da mulher, percebi que era moura. Escrevi a carta. Escrevi-há um pouco ao acaso, mas apliquei-me o mais possível para contentar Raimundo, pois não tinha razão nenhuma para não o contentar. Depois li a carta em voz alta.
Escutou-me a fumar, acenando com a cabeça, e em seguida pediu-me para relê-la. Disse: "Já calculava que tu conhecias bem a vida". Não percebi a princípio que me estava a tratar por tu. Só dei por isso, quando me declarou: "Agora, ficas meu amigo". Repetiu a frase e eu respondi: "Está bem".
Era-me indiferente ser ou não amigo dele e, como isso parecia dar-lhe gosto... Fechou o sobrescrito e acabamos o vinho que ainda havia. Depois ficamos uns momentos a fumar, sem dizer uma palavra. Lá fora tudo estava calmo e ouvimos o ruído de um automóvel que passava. Eu disse: "É tarde".
Raimundo era da mesma opinião. Observou que o tempo passava depressa e, em certo sentido, era verdade. Estava com sono, mas custava-me levantar-me. Devia estar com um ar cansado, porque o Raimundo me disse que devia ter mão em mim. Ao princípio, não compreendi. Explicou-me então que soubera da morte da minha mãe, mas que era uma coisa que, mais dia menos dia, tinha que acontecer. Era essa, também, a minha opinião.
Levantei-me e Raimundo deu-me um forte aperto de mão, dizendo que entre homens, compreendíamo-nos sempre. Ao sair de casa dele fechei a porta e fiquei uns instantes às escuras, no patamar. A casa estava calma e das profundezas da gaiola das escadas, subia um sopro úmido e obscuro. Ouvia apenas o sangue latejando-me nos ouvidos e deixei-me ali ficar, imóvel. Mas no quarto do velho Salamano, o cão gemeu surdamente. No coração desta casa cheia de sonos, o queixume subiu lentamente, como uma flor nascida do silêncio.
IV
Trabalhei muito, durante toda a semana.
Raimundo veio visitar-me, dizendo que mandara a carta. Fui duas vezes ao cinema com o Manuel, que nem sempre compreende lá muito bem o que se passa na tela. Preciso de lhe ir explicando o filme. Ontem foi sábado e, como ficara combinado, a Marieveio a minha casa. Desejei-a intensamente, porque trazia um vestido às riscas brancas e encarnadas e sandálias de couro. Adivinhavam-se-lhe os seios duros e o queimado do sol dava-lhe uma cara de flor. Tomamos um ônibus e fomos para uma praia cercada de rochedos e com canteiros de rosas do lado da terra, a alguns quilômetros de Argel. O sol às quatro horas não estava quente demais, mas a água estava morna, com pequenas ondas longas e preguiçosas. Marieensinou-me um jogo. Era preciso, nadando, beber à cresta das ondas, acumular toda a espuma na boca e, pondo-nos em seguida de costas, projetá-la para o céu. Isto fazia uma espécie de renda espumosa que desaparecia no ar ou, como uma chuva quente, nos caía na cara. Mas ao fim de algum tempo, tinha a boca a arder devido ao sal. Marieveio então estar comigo e colou-se a mim, na água. Beijamo-nos. A língua dela refrescava-me os lábios e rolamos durante alguns momentos nas ondas.
Quando nos vestimos na praia, Maria olhava-me com olhos brilhantes. Voltei a beijá-la. A partir daí, não falamos mais. Apertei-a contra mim e só queríamos apanhar depressa um ônibus, ir para minha casa e deitarmo-nos na minha cama. Deixei a janela aberta, e era bom, sentir aquela noite de verão escorregar ao longo dos nossos corpos morenos.
Esta manhã, Marieficou comigo e combinamos almoçar juntos. Desci à rua para ir comprar carne. Ao voltar, ouvi uma voz de mulher no quarto de Raimundo. Pouco depois, o velho Salamano ralhou com o cão, ouvimos um barulho de botas e de patas nos degraus de madeira da escada e depois: "Bandido, cão nojento", saiu para a rua. Contei-lhe a história do velho e ela riu-se. Vestira um dos meus pijamas e estava de mangas arregaçadas. Quando se riu, voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não: Ficou com um ar triste. Mas, ao preparar o almoço, e sem que viesse a propósito, voltou a rir-se de tal forma, que a beijei outra vez. Foi neste momento que rebentou a discussão em casa do Raimundo.
Ouviu-se primeiro uma voz estridente de mulher e depois a de Raimundo, dizendo: "Enganaste-me, enganaste-me. Agora é que eu te vou ensinar..."
Uns ruídos surdos e a mulher pôs-se a berrar, mas de uma maneira tão feia, que o átrio se encheu de gente. A mulher continuava a gritar e Raimundo continuava a bater-lhe. Mariedisse-me que era terrível e eu não respondi. Pediu-me para ir chamar um polícia, mas eu respondi-lhe que não gostava dos policiais. Mas o meu vizinho do segundo andar, que é encanador, encarregou-se de ir buscar um. Este bateu à porta de Raimundo e não se ouviu mais nada. Bateu com mais força e, ao fim de alguns instantes, a mulher chorou e Raimundo abriu. Tinha um cigarro na boca e um ar melífluo. A mulher precipitou-se para a porta e declarou ao polícia que Raimundo lhe tinha batido. "O teu nome", disse o polícia. Raimundo respondeu-lhe. "Tira o cigarro da boca enquanto me estás a falar", disse o policial. Raimundo hesitou, olhou para mim e ficou com o cigarro na boca. Neste momento, o policial deu-lhe uma bofetada com toda a força, em plena cara. O cigarro foi cair alguns metros mais adiante. Raimundo mudou de expressão, mas não disse nada, até que perguntou com uma voz humilde se podia ir apanhar o cigarro. O agente declarou que sim e acrescentou: "Mas fica sabendo que um policial, não é nenhum fantoche". Entretanto a mulher chorava, repetindo: "Ele bateu-me, é um malandro". "Senhor Guarda, perguntou, Raimundo então, é da lei, chamar malandro a um homem?"
Mas o policial mandou que "calasse o bico".
Raimundo voltou-se para a mulher e disse: "Não perdes pela demora, garota, está descansada." O policial disse-lhe que se calasse, que a mulher tinha que se ir embora e que ele ficasse no quarto até receber convocação do comissariado. Acrescentou que Raimundo devia ter vergonha de estar bêbedo ao ponto de todo ele tremer. Raimundo explicou: "Não estou bêbedo, Senhor Guarda. Mas diante de si, não posso deixar de tremer". Fechou a porta e todos se foram embora. Mariee eu acabamos de preparar o nosso almoço. Como ela não estava com fome, comi quase tudo. Saiu à uma hora e ainda dormi um bocado.
Pelas três horas bateram à porta e Raimundo entrou. Deixei-me ficar deitado. Sentou-se na borda da cama. Ficou uns instantes sem falar e eu perguntei-lhe como é que o caso se tinha passado. Contou-me que fizera o que fora planejado, mas que ela lhe dera uma bofetada e que então começara a bater-lhe. Quanto ao resto, eu tinha-o visto com os meus próprios olhos. Disse-lhe que me parecia que, agora que ela estava castigada, já podia estar contente. Era também a opinião dele, e observou ainda que, por mais que a polícia fizesse, já ninguém lhe tirava a pancada que recebera. Acrescentou que conhecia os policiais e sabia perfeitamente como se deve lidar com eles. Perguntou-me então se eu julgara que ele ia responder à bofetada do policial. Respondi-lhe que não julgava absolutamente nada e que, aliás, não gostava dos policiais. Raimundo pareceu ficar muito contente. Perguntou-me se queria sair com ele. Levantei-me e comecei a me pentear. Disse que era preciso que eu servisse de testemunha. A mim, tanto se me dava, mas não sabia o que havia de dizer. Na opinião de Raimundo, bastava declarar que a mulher o enganara. Aceitei ser testemunha.
Saímos e Raimundo ofereceu-me um copo de aguardente. Depois quis jogar uma partida de bilhar e ganhou-me por pouco. A seguir, queria ir a um bordel, mas eu disse que não, porque não tinha vontade. Então voltamos lentamente para casa e ele voltou a dizer até que ponto se sentia contente por ter conseguido castigar a amante. Achei-o muito simpático comigo e pensei que era um momento bem agradável.
Distingüi ao longe, na soleira da porta, o velho Salamano com um ar agitado. Quando nos aproximámos, reparei que não estava com o cão. Olhava para todos os lados, dava voltas sobre si mesmo, tentava penetrar com os olhos na escuridão do corredor, resmungava palavras sem nexo e recomeçava a observar a rua com os seus pequenos olhos avermelhados. Quando Raimundo lhe perguntou o que se passava, não respondeu logo a seguir. Ouvi-o vagamente murmurar: "Bandido, cão nojento", e continuou a agitar-se. Perguntei-lhe onde estava o cão. Respondeu-me bruscamente que se fora embora. E depois, de repente, pôs-se a falar muito: "Levei-o como de costume ao Campo das Manobras. Em volta das barracas da feira, havia muita gente. Parei um pouco para olhar o "Rei da Evasão". E quando me quis ir embora, não o vi. Há muito tempo que lhe queria comprar uma coleira menor. Mas nunca pensei que esse cão nojento fugisse desta maneira".
Raimundo explicou-lhe então que o cão possivelmente se perdera e que havia de voltar. Citou-lhe vários exemplos de cães que tinham percorrido dezenas de quilômetros para encontrar os donos. Apesar disso, o velho estava cada vez mais agitado.
"Vão apanhá-lo, com certeza. Ainda, se alguém o recolhesse... Mas não! Com aquelas feridas, enoja toda a gente. A carroça leva-o, tenho a certeza". Eu disse-lhe então que se dirigisse à Câmara e que lhe devolviam caso pagasse o imposto. Perguntou-me se este imposto era muito caro: Eu não sabia. Neste momento, encolerizou-se: "Dar dinheiro por aquele cão nojento?! Ele que rebente para aí!" E pôs-se a insultá-lo. Raimundo riu e entrou em casa. Segui-o, e despedimo-nos à porta dos nossos quartos. Pouco depois ouvi os passos do velho e bateram à porta. Fui abrir e ele ficou uns instantes a olhar para mim. Disse:
"Desculpe, desculpe". Convidei-o a entrar, mas ele não quis. Olhava para as pontas dos pés e tremiam-lhe as mãos. Olhando para o lado, perguntou: "Não o vão apanhar, pois não, Sr. Meursault? Vão devolvê-lo outra vez, não vão? O que vai ser de mim?! O que vai ser de mim?!" Disse-lhe que os cães ficavam durante três dias na câmara à disposição dos donos e que, depois disso, lhes davam o destino que melhor lhes parecia. Olhou para mim sem dizer uma palavra. Depois, disse: "Boa noite". Fechou a porta e ouvi-o andar de um lado para o outro. A cama dele rangeu. E, pelo estranho barulho que me chegava através da parede, compreendi que estava a chorar. Não sei por que, pensei na minha mãe. Mas no dia seguinte, precisava de me levantar cedo. Não tinha fome e deitei-me sem jantar.
V
Raimundo telefonou-me para o escritório. Disse-me que um amigo dele, a quem falara de mim, me convidava para passar o domingo numa casa que tinha perto de Argel. Respondi que gostaria de ir, mas que já combinara passar o domingo com uma amiga. Raimundo declarou imediatamente que também a convidava. A mulher do amigo ficaria, até, muito contente por não ser a única no meio de um grupo de homens.
Quis desligar imediatamente, pois sei que o chefe não gosta que estejamos ao telefone. Mas Raimundo pediu-me para esperar e disse que me poderia ter transmitido o convite à noite, mas me queria avisar de outra coisa. Fora seguido durante todo o dia por um grupo de Árabes entre os quais estava o irmão da sua antiga amante. "Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me". Respondi que estava combinado.
Pouco depois o chefe mandou-me chamar e fiquei aborrecido porque pensei que me ia dizer para telefonar menos e trabalhar mais. Não era nada disso. Declarou que me ia falar num projeto ainda muito vago. Queria apenas saber a minha opinião sobre o assunto. Tencionava instalar um escritório em Paris, para tratar diretamente com as grandes companhias e perguntou-me se eu estava disposto a ir. Poderia assim viver em Paris e viajar durante parte do ano. "Você ainda é novo e creio que essa vida lhe agradaria". Disse que sim, mas que no fundo me era indiferente. Perguntou-me depois se eu não gostava de uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida, que em todos os casos, todas as vidas se equivaliam e que a minha, aqui, não me desagradava. Mostrou um ar descontente, disse que eu respondia sempre à margem das questões, e que não tinha ambição, o que para os negócios era desastroso. Voltei para o meu trabalho. Teria preferido não o descontentar, mas não via razão nenhuma para modificar a minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante, alimentara muitas ambições desse gênero. Mas quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância.
Marieveio buscar-me à noite e perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas que se ela de fato queria casar, estava bem. Quis então saber se eu gostava dela. Respondi, como aliás respondera já uma vez, que isso nada queria dizer, mas que julgava não a amar. "Nesse caso, por que casar comigo?", disse ela. Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, nos podíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu contentava-me em dizer que sim. Marieobservou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi: "Não". Mariecalou-se durante uns instantes e olhou-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, vinda de outra mulher com a qual estivesse relacionado do mesmo modo, eu teria aceite uma proposta semelhante. Respondi: "Possivelmente". Perguntou então de si para si se gostaria de mim, mas, sobre esse ponto, como poderia eu saber alguma coisa? Depois de mais uns instantes de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que gostava de mim se calhar por isso mesmo, mas que um dia, pelos mesmos motivos, era capaz de passar aos sentimentos contrários. Como eu me calasse, por não ter nada a acrescentar, tomou-me o braço a sorrir e declarou que queria casar comigo. Respondi que sim, logo que ela quisesse. Falei-lhe então na proposta do chefe e Mariedisse-me que gostaria de conhecer Paris. Contei-lhe que lá vivera durante algum tempo e ela perguntou-me como era a cidade. Respondi: "Suja. Há pombas e pátios escuros. As pessoas têm a pele muito branca".
Depois passeamos, escolhendo as grandes ruas. As mulheres eram bonitas e perguntei a Mariese ela achava o mesmo. Disse que sim, e que me compreendia. Depois calamo-nos. Queria no entanto que ela ficasse comigo e disse-lhe que poderíamos jantar juntos no Celeste. Maria replicou que gostaria muito, mas tinha que fazer. Estávamos ao pé da minha casa e eu disse-lhe adeus. Ela olhou para mim: "Não queres saber o que é que tenho que fazer?" Eu queria, mas não me lembrara de lho perguntar e era por isso que estava com um ar de censura. Diante do meu ar embaraçado, voltou então a rir e, para me oferecer a boca, juntou seu cormo ao meu.
Jantei no restaurante do Celeste. Começara já a comer, quando entrou uma mulherzinha esquisita e veio perguntar se podia sentar-se à minha mesa. Porque não havia de poder? Fazia gestos bruscos e tinha uns olhos brilhantes, inseridos numa pequena cara de maçã. Tirou o casaco, sentou-se e consultou febrilmente a lista. Chamou o Celeste e pediu imediatamente os pratos que queria, com uma voz ao mesmo tempo precisa e precipitada. Enquanto esperava os acepipes, abriu a carteira, tirou um pequeno quadrado de papel e um lápis, fez a conta ao que tinha que pagar, e depois tirou do porta-moeda, acrescentando-lhe a gorjeta, a quantia exata. Colocou-a diante dela. Nesse momento levaram-lhe a entrada, que devorou a toda a velocidade. Enquanto esperava o prato seguinte tirou ainda da carteira um lápis azul e uma revista que dava os programas radiofônicos da semana.
Com o maior cuidado, sublinhou um a um quase todos os programas. Como a revista tinha umas doze páginas, continuou este trabalho metodicamente durante toda a refeição. Já eu acabara de comer, e ainda ela estava a sublinhar, sempre com a mesma aplicação. Depois se levantou, vestiu o casaco com os mesmos gestos precisos de autômato e saiu. Como não tinha nada que fazer, também saí e segui-a durante uns momentos. Colocou-se à beira do passeio e, com uma segurança e uma rapidez incríveis, seguia o seu caminho sem se desviar e sem olhar para os lados. Acabei por perdê-la de vista e por voltar para trás. Achei que era uma mulher estranha, mas depressa a esqueci.
À porta de casa, encontrei o velho Salamano. Disse-lhe para entrar e ele informou-me que o cão se perdera, pois não estava na Câmara. Os empregados haviam-lhe dito que fora, talvez, atropelado. Perguntara se não era possível sabê-lo nos comissariados da polícia. Tinham-lhe respondido que eles não tomavam nota de coisas como essas, pois aconteciam todos os dias. Disse ao velho Salamano que podia arranjar outro cão, mas ele respondeu-me com toda a razão aliás, que estava habituado àquele.
Eu estava estendido na cama e Salamano sentara-se numa cadeira em frente da mesa. Estava voltado para mim e tinha as mãos em cima dos joelhos. Conservara o velho chapéu na cabeça: Sob o bigode amarelecido, mastigava frases que depois não acabava. Aborrecia-me um bocado, mas como não tinha nada que fazer e não estava com sono, não me importei. Para dizer alguma coisa, fiz-lhe perguntas sobre o cão. Disse-me que o arranjara depois da morte da mulher. Casara-se bastante tarde. Na sua mocidade, tivera vontade de entrar para o teatro: no quartel, representara em várias récitas militares. Mas acabara por entrar para a ferroviária e não estava arrependido, pois agora lhe davam uma pequena aposentadoria. Não fora feliz com a mulher mas, por fim, habituara-se a ela. Quando esta morrera, sentira-se muito só: Pedira então a um colega do escritório para lhe dar um cão, e fora-lhe oferecido este, quase recém-nascido. Tivera que o alimentar a mamadeira. Mas como o cão vive menos do que o homem, tinham acabado por envelhecer juntos.
"Tinha mau gênio, Disse Salamano. De tempos a tempos zangávamo-nos. Mas apesar disso, era um bom cão". Disse que o cão devia ser de boa raça, e Salamano ficou com um ar contente. "E para mais, acrescentou, não o conheceu antes da doença. Não havia pêlo mais bonito do que o dele". Todas as noites e todas as manhãs, desde que o cão aparecera com aquela doença de pele, Salamano punha-lhe pomada. Mas em sua opinião, a verdadeira doença que o cão tinha era a velhice, e a velhice não cura.
Nesse momento bocejei, e o velho anunciou que se ia embora. Disse-lhe que podia ficar e que estava aborrecido com o que lhe acontecera ao cão: agradeceu-me. Disse-me que a minha mãe gostara muito do cão. Ao falar dela, chamava-a "a sua pobre mãe". Emitiu a suposição que eu devia sentir-me bem infeliz desde que a minha mãe morrera. Não respondi. Disse-me então, muito depressa e com um ar embaraçado, que no bairro me tinham criticado por tê-la mandado para o asilo, mas ele conhecia-me e sabia que eu gostava muito da minha mãe. Respondi, não sei ainda por que, que ignorava até agora que fosse criticado por causa disso, mas que o asilo se me afigurara uma coisa muito natural, pois não tinha recursos para mantê-la comigo. "Além disso, acrescentei ainda, há muito tempo que não tínhamos nada que dizer um ao outro e que ela se aborrecia sozinha."
"Sim, disse-me ele, e no asilo, ao menos, arranjam-se amigos". Depois, despediu-se. Queria dormir. A sua vida agora mudara completamente, e não sabia muito bem o que havia de fazer. Pela primeira vez desde que nos conhecíamos, estendeu-me a mão num gesto envergonhado e eu senti-lhe as escamas da pele. Teve um sorriso breve e, antes de sair, disse: "Espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu".
VI
No domingo, custou-me tanto a acordar, que foi preciso a Mariechamar-me e sacudir-me. Não comemos, porque queríamos tomar cedo o banho de mar. Sentia-me completamente vazio e doía-me um pouco a cabeça. O meu cigarro tinha um gosto amargo. Mariefez troça de mim porque dizia que eu estava com uma "cara de enterro". Pusera um vestido branco e soltara os cabelos. Disse-lhe que estava bonita e ela riu de contentamento.
Ao sair, batemos à porta do Raimundo. Respondeu-nos que já vinha. Na rua, porque estava cansado e também porque não tínhamos aberto as persianas, o dia, já cheio de sol, bateu-me como uma verdadeira bofetada. Mariesaltava de prazer e não parava de repetir que estava ótimo. Senti-me melhor e reparei que estava com fome. Disse-o a Maria, que me mostrou o seu saco de praia, onde pusera os nossos dois trajes de banho e uma toalha. Não havia nada a fazer, senão esperar, e ouvimos Raimundo fechar a porta. Trazia umas calças azuis e uma camisa branca, de mangas curtas. Mas pusera na cabeça um chapéu de palha, de que Mariese riu muito, e sob os pêlos negros, tinha os braços muito brancos. Isto me enojava um pouco. Ao descer, assobiava e tinha um ar muito contente. Disse-me: "Olá!", e tratou Mariepor "Senhorita".
Na véspera tínhamos ido a delegacia e eu testemunhara que a mulher o "enganara". Saiu-se com um aviso e uma reprimenda. Não verificaram a minha informação. Diante da porta, falamos com Raimundo deste caso, e depois decidimo-nos a tomar o ônibus. A praia não era longe, mas assim iríamos mais depressa. Raimundo achava que o amigo ficaria contente por chegarmos tão cedo. Íamos partir quando Raimundo, de súbito , me fez um sinal para olhar em frente de mim.
Reparei num grupo de Árabes encostados a um quiosque de tabacos. Olhavam-nos em silêncio, mas à maneira deles, como se fôssemos árvores mortas ou simplesmente pedras. Raimundo disse-me que "o tipo" era o segundo a contar da esquerda, e fez um ar preocupado. Acrescentou que, no entanto, o caso era agora história antiga. Marienão compreendia muito bem, e perguntou-nos o que se passava. Disse-lhe que eram uns Árabes, ressentidos contra Raimundo. Mariequis que nos fôssemos embora imediatamente. Raimundo endireitou-se e riu, dizendo para nos despacharmos.
Fomos para o ponto dos ônibus, que ficava um pouco mais longe, e Raimundo anunciou que os Árabes não nos haviam seguido. Voltei-me. Continuavam no mesmo lugar e olhavam com a mesma indiferença o sítio que acabávamos de deixar. Tomamos o ônibus. Raimundo, que parecia aliviado, não parava de gracejar em intenção de Maria. Senti que esta lhe agradava, mas vi que ela não lhe respondia quase nunca. De tempos a tempos, Marieolhava-me e ria.
Descemos num ponto dos arredores de Argel. A praia não ficava longe. Mas foi preciso atravessar um pequeno planalto que domina o mar e que desce em seguida para a praia. Estava coberto de pedras amareladas e de abróteas brancas, sob o azul já duro do céu. Maria divertia-se a espalhar as pétalas destas flores, batendo-lhes com o saco de praia. Marchamos entre filas de pequenas vivendas com cercas verdes ou brancas, algumas escondidas, com as suas varandas, entre os tamarizes, e outras, nuas e despojadas, no meio das pedras. Antes de chegar à borda do planalto, podia-se já ver o mar imóvel e, mais longo, um cabo maciço e sonolento na água clara. Subiu até nós, no ar calmo, um ligeiro barulho de motor. E vimos, muito longe, uma pequena canoa que avançava imperceptivelmente no mar brilhante. Marieagarrou em alguns pedaços de rocha. Da encosta que descia para o mar, vimos que já estavam vários banhistas na praia.
O amigo de Raimundo morava numa casita de madeira, no extremo da praia. A casa encostava-se à rocha e as traves que a sustinham à frente, mergulhavam já na água. Raimundo apresentou-nos. O amigo chamava-se Masson. Era um tipo alto, entroncado, com ombros largos, e a mulher dele era baixa, gorda e simpática, com um sotaque parisiense. Disse imediatamente para nos pormos à vontade e que tinha para o almoço uns peixes fritos que ele mesmo pescara de manhã. Disse-lhe que achava a casa muito bonita, e ele informou-me que passava ali o sábado, o domingo, e todos os feriados. "Com a minha mulher, é claro", acrescentou. Justamente, esta e Marieriam-se de qualquer coisa. Pela primeira vez, pensei seriamente que me ia casar.
Masson queria tomar banho, mas a mulher e Raimundo não queriam ir. Descemos os três e Marieatirou-se logo à água. Masson e eu, esperamos ainda um pouco. Masson falava muito devagar e notei que tinha o costume de completar tudo quanto dizia por um "e direi mesmo mais", mesmo quando, no fundo, nada acrescentava ao sentido da frase. A propósito de Maria, disse: "estupenda e, direi mesmo mais, encantadora". Depois, deixei de prestar atenção a este tique, pois ocupava-me agora em sentir que o sol me fazia bem. A areia começava-me á aquecer, sob os pés: Retardei mais um pouco a vontade que tinha de ir para a água, mas acabei por dizer a Masson: "Vamos?" Mergulhei. Ele, entrou lentamente na água, e só mergulhou quando perdeu o pé. Nadava de bruços, bastante mal, de modo que o deixei para trás para ir encontrar Maria. A água estava fria e era bom nadar. Afastei-me com Mariee sentíamo-nos os dois de acordo nos nossos gestos e no nosso contentamento.
Ao largo, pusemo-nos a boiar de costas e, na minha cara voltada para o céu, o sol afastava os últimos véus de água que me escorriam para a boca. Vimos que Masson regressara à praia e se estendera ao sol. De longe, parecia enorme. Mariequis que nadássemos juntos. Coloquei-me por detrás dela, segurando-a pela cintura e ela avançava à força de braços, enquanto eu a ajudava batendo os pés. O pequeno barulho da água batida seguiu-nos ao longo da manhã, até que me senti cansado. Deixei então Mariee voltei para a praia, nadando compassadamente e respirando bem. Uma vez na praia, estendi-me de barriga para baixo ao pé de Masson e descansei a cara na areia. Disse-lhe que "era bom" e ele tinha a mesma opinião. Depois, Marieveio estar conosco, Voltei-me para vê-la. Estava viscosa da água salgada e tinha os cabelos caídos para trás. Estendeu-se encostada a mim e os dois calores, o do corpo dela e o do sol, adormeceram-me um pouco.
Mariesacudiu-me e disse-me que Masson já fora para casa e era preciso ir almoçar. Levantei-me imediatamente porque tinha fome, mas Mariedisse-me que não voltara a beijá-la desde manhã. Era verdade, e também eu tinha vontade de beijá-la. "Vem para a água", disse-me ela. Corremos e deixamo-nos cair nas primeiras ondas, Fizemos algumas braçadas e ela encostou-se a mim. Senti as pernas dela em volta das minhas e desejei-a.
Quando voltamos, já Masson nos chamava. Disse que estava cheio de fome e o dono da casa declarou logo à mulher que eu lhe agradava: O pão era bom e devorei a minha porção de peixe. Depois, havia carne e batatas fritas. Comíamos sem falar. Masson bebia muito vinho e servia-me sem parar. Ao café, tinha a cabeça um pouco pesada e fumei muito. Masson, Raimundo e eu, encaramos a hipótese de passar o mês de Agosto na praia, dividindo as despesas: Marieperguntou de repente: "Sabem que horas são? São onze e meia". Estávamos todos admirados, mas Masson disse que se tinha comido muito cedo, o que era natural, pois a hora do almoço era a hora em que se tinha fome. Não sei por que motivo Mariese riu tanto com isto. Julgo que bebera demais. Masson perguntou-me então se queria ir dar com ele um passeio pela praia. "A minha mulher dorme sempre a sesta depois de almoço. Eu, não gosto disso. Preciso de andar. Digo-lhe sempre que é melhor para a saúde. Mas no fim de contas, está no seu direito". Mariedeclarou que ficava, para ajudar a dona da casa a lavar a louçã. Esta disse que, para isso, era preciso pôr os homens na rua. Descemos os três.
O sol caía quase a pique sobre a praia e o seu brilho no mar era insustentável. Já não estava ninguém na praia. Nas casas ao longo do planalto e que olhavam para o mar, ouvia-se o barulho de pratos e de talheres. Mal se respirava, neste calor de pedra que subia do chão. Para principiar, Raimundo e Masson falaram de coisas e pessoas que eu ignorava. Percebi que se conheciam há muito tempo e que, a certa altura, tinham mesmo vivido juntos. Dirigimo-nos para a água e andamos à beira do mar. Às vezes, uma onda mais comprida do que as outras, vinha molhar-nos os sapatos de borracha. Não pensava em nada, porque estava meio adormecido com todo este sol na minha cabeça descoberta.. A certa altura, Raimundo disse a Masson qualquer coisa que não consegui ouvir muito bem. Mas distingui ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de nós, dois Árabes vestidos de azul, que vinham na nossa direção. Olhei para Raimundo, que me disse: "É ele". Continuamos a andar. Masson perguntou como é que eles nos podiam ter seguido até aqui. Pensei que nos tinham visto tomar o ônibus com um saco de praia, mas não disse nada.
Os Árabes avançavam lentamente e estavam já muito mais perto. Não mudamos nosso passo, mas Raimundo disse: "Se houver pancada, tu, Masson, ficas com o segundo. Eu, encarrego-me do meu tipo. Tu, Meursault, se vier outro Árabe, é para ti". Respondi: "Está bem", e Masson meteu as mãos nos bolsos. A areia a ferver parecia-me agora vermelha. Avançamos no mesmo passo para os Árabes. A distância entre nós foi diminuindo pouco a pouco: Quando não estávamos senão a alguns passos uns dos outros, os Árabes detiveram-se. Masson e eu começamos a andar mais devagar. Raimundo foi direito ao "seu tipo". Não percebi muito bem o que lhe disse, mas o outro fez menção de lhe dar uma cabeçada. Raimundo deu então o primeiro soco e logo a seguir chamou Masson. Masson dirigiu-se ao que lhe fora destinado e deu-lhe dois socos com toda a força. O outro caiu no mar, de barriga para baixo, a cara dentro de água e ficou assim alguns segundos, perto da cabeça dele, rebentavam à superfície bolhas de ar. Durante este tempo, Raimundo continuou a lutar e o outro tinha a cara cheia de sangue. Raimundo voltou-se para mim e disse: "Vais ver o que ele vai apanhar!" Gritei-lhe: "Atenção, o tipo tem uma navalha!" mas Raimundo tinha já o braço aberto e um golpe na boca.
Masson deu um salto para frente. Mas o outro Árabe levantara-se e colocara-se atrás do que estava armado. Não ousamos mexer-nos. Os Árabes recuaram lentamente, sem deixar de nos falar e de nos ameaçar com a navalha. Quando viram que a distância era suficiente, fugiam muito depressa, enquanto nós ficávamos ali pregados, ao sol, e Raimundo agarrava no braço a escorrer sangue.
Masson disse imediatamente que conhecia um médico que passava os domingos no pequeno planalto. Raimundo quis ir sem demora tratar das feridas. Mas, cada vez que falava, o sangue borbulhava-lhe na boca. Ajudando-o a andar, voltamos para casa o mais depressa possível. Aí, Raimundo disse que afinal as feridas eram superficiais e que podia ir já ao médico. Saiu com Masson e eu fiquei, para explicar às mulheres o que se tinha passado. A mulher de Masson chorava e Marieestava muito pálida. Era aborrecido, ter de lhes explicar. Por fim, calei-me e pus-me a fumar, olhando para a paisagem do mar.
Pela uma e meia, Raimundo e Masson voltaram. Raimundo trazia o braço ligado e adesivo no canto da boca. O médico dissera-lhe que não fora nada de importante, mas estava com um ar sombrio. Masson tentou fazê-lo rir. Mas ele não dizia nada. A certa altura, disse que queria descer à praia, e eu perguntei-lhe onde ia. Respondeu que lhe apetecia apanhar ar. Masson e eu dissemos que o acompanhávamos. Então, encolerizou-se e insultou-nos. Masson declarou que não devíamos contrariá-lo. Apesar disso, fui com ele.
Andamos muito tempo, ao longo da praia. O sol estava agora esmagador. Estilhaçava-se na praia e no mar. Tive a impressão de que Raimundo sabia onde ia, mas talvez estivesse enganado. Mesmo no fim da praia, chegamos a uma pequena fonte que corria para a areia, em direção ao mar, por detrás de um grande rochedo. Aí, encontramos os dois Árabes. Estavam deitados, com os seus trajes azuis e sujos. Tinham um ar calmo e quase beatífico. A nossa chegada não os incomodou. O que ferira Raimundo, olhava-o sem dizer uma palavra. O outro soprava numa flauta feita à mão e repetia interminavelmente, olhando-nos de viés, as três notas que conseguia obter do instrumento.
Durante todo este tempo, havia só o sol e este silêncio, com o leve ruído da nascente e das três notas musicais. Depois Raimundo levou a mão ao bolso de trás das calças, mas o outro não se moveu. Continuavam a fitar-se. Reparei que o que tocava flauta tinha os dedos dos pés muito afastados. Sem tirar os olhos do adversário, Raimundo perguntou-me: "Dou cabo dele?" Pensei que, se dissesse que não, ficaria excitado e dispararia com certeza. Disse unicamente: "O tipo ainda não disse nada. Disparar assim sem mais nem menos, não seria bonito". Ouviu-se ainda o leve ruído da água e da flauta, no coração do silêncio e do calor. Depois, Raimundo disse: "Então vou xingá-lo e quando ele responder, eu o mato". Respondi: "Isso mesmo. Mas se o tipo não puxar da navalha, não podes atirar". Raimundo começou a enervar-se. O outro continuava a tocar e os dois observavam atentamente os gestos de Raimundo. "Não, disse eu a Raimundo. Vai-te a ele, homem a homem e dá-me o revólver. Se o outro intervém ou se puxa a navalha, mato-o".
Quando Raimundo me deu o revólver, o sol refletiu-se na arma. Ficamos imóveis, como se tudo se houvesse fechado em nossa volta. Olhávamo-nos sem baixar os olhos e tudo aqui se detinha entre o mar, a areia, o sol, e o duplo silêncio da flauta e da água.
Pensei neste instante que disparar ou não disparar, era tudo o mesmo. Mas bruscamente, os Árabes começaram a recuar e desapareceram por detrás do rochedo. Raimundo e eu voltamos então para casa. Raimundo parecia estar melhor e falou no ônibus da volta.
Acompanhei-o até casa e, enquanto ele subia a escada de madeira, eu fiquei no primeiro degrau, a cabeça cheia de sol, sem coragem para o esforço que era preciso fazer para subir as escadas de madeira e voltar a abordar as mulheres. Mas o calor era tão grande que me era igualmente penoso ficar assim imóvel, sob a chuva de luz que caía do céu. Ficar aqui ou partir, vinha a dar no mesmo. Ao fim de alguns instantes, voltei para a praia e comecei a andar.
Era o mesmo brilho avermelhado. Na areia, o mar ofegava com a respiração rápida e abafada das pequenas ondas que se sucediam umas às outras. Dirigia-me lentamente para os rochedos e sentia que a testa me inchava, sob o peso do sol. Todo este calor se apoiava contra mim, opondo-se ao meu avanço. E cada vez que sentia o sopro quente deste calor enorme na minha cara, cerrava os dentes, apertava os punhos nos bolsos das calças, retesava-me todo para triunfar do sol e da embriaguês opaca que caía sobre mim. A cada espada de luz surgida da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um vidro partido, meus maxilares se crispavam. Andei assim durante muito tempo.
Distinguia, de longe, a pequena massa sombria do rochedo, rodeado de uma auréola formada pela luz e pela poeira do mar. Pensava na nascente fresca que havia por detrás do rochedo. Desejava reencontrar o murmúrio da água que dela brotava, desejava fugir ao sol, ao esforço, às lágrimas da mulher, desejava enfim, reencontrar a sombra e o repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o Árabe de Raimundo voltara ali.
Estava só. Descansava de costas, as mãos debaixo da nuca, a cabeça nas sombras do rochedo e o resto do corpo ao sol. O seu traje azul fumegava de calor. Fiquei um pouco admirado. Para mim, era história antiga, e viera para aqui sem pensar no caso. Logo que me viu, levantou-se e meteu a mão no bolso. Eu, muito naturalmente, agarrei no revólver de Raimundo, dentro do casaco. Então, o Árabe deixou-se cair outra vez para trás, mas sem tirar a mão da algibeira. Eu estava bastante longe dele, a uns dez metros de distância. Adivinhava-lhe por instantes o olhar, entre as pálpebras semicerradas. Mas a maioria das vezes, a imagem dele dançava diante dos meus olhos, na atmosfera inflamada. O barulho das vagas era ainda mais preguiçoso do que ao meio-dia. Eram o mesmo sol e a mesma luz, que se prolongavam até este momento. Há já duas horas que o dia deitara a sua âncora neste oceano de metal fervente. No horizonte, passou um pequeno vapor. Adivinhei-lhe a mancha negra com o canto do olho, pois não cessava de fitar o Árabe.
Pensei que me bastava voltar para trás e tudo ficaria resolvido. Mas atrás de mim, comprimia-se uma imensa praia vibrante de sol. Dei alguns passos para a nascente. O Árabe não se moveu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras que se lhe projetavam na cara. Esperei. A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se nas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar e, como então, doía-me a testa, sobretudo a testa e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele. Por causa desta queimadura que já não podia suportar mais, fiz um movimento para frente. Sabia que era estúpido, que não me iria desembaraçar do sol, simplesmente por dar um passo em frente. Mas dei um passo, um só passo em frente. E desta vez, sem se levantar, o Árabe tirou a navalha da algibeira e mostrou-a ao sol. A luz refletiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que me atingisse a testa. No mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo e cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça.
Fim da primeira parte
|O ESTRANGEIRO - Segunda Parte |
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