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Giovanna e os poemas sumerios em PDF
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Literária de Jorge Luis Gutiérrez ► |
GIOVANNA E OS POEMAS SUMÉRIOS GIOVANNA E OS POEMAS SUMÉRIOS (Jorge Luis Gutiérrez)
Eu, Diego de Petra, escultor, poeta pós-moderno da era da informática e freqüentador dos espaços cibernéticos, narrarei meu romance com Giovanna Carol, a mulher que mais amei na vida e a mais bela
que meus olhos já viram. Os homens a amavam, porém ela nunca tinha amado. Ela só amaria o homem que a pudesse transformar em poesia. Sim, vou contar sua história, embora não seja o melhor momento, pois é só começar a falar e a emoção enche meu peito. Há seis meses Giovanna sumiu da minha vida. Após permanecer sete anos ao meu lado, desapareceu. E a tristeza foi tanta, que pensava que nunca mais acabaria. Agora que as lágrimas secaram, preciso escrever.
Meu doce Diego:
Respondi:
Querida Giovanna:
No outro dia, cedo, chegou um novo e-mail, trazia uma foto dela anexa:
Meu doce Diego
A minha resposta foi ao entardecer. Chovia muito:
Minha infinita Giovanna
Página Web de Américo Melchor, especialista em informática, assessor sobre mundos binários e espaços cibernéticos, conselheiros para escritas de todos os tempos e de todas as geografias.
Mandei-lhe um e-mail falando da minha busca por uma forma em que os poemas de Giovanna persistissem através dos séculos, e de seu desejo de ser transformada em poesia. Ele respondeu quase de imediato:
Escreva em tabuletas de argila.
Respondi que não sabia o que estava dizendo. E ele escreveu:
Quero começar com uma pergunta, meu caro Diego de Petra. Se por algum motivo —como, por exemplo, uma tormenta de areia dessas que há no Saara— o quarto onde você tem o computador, com todos os poemas para Giovanna armazenados na memória, ficasse submergido nas areia por cinco mil anos, e depois desse tempo algum arqueólogo cavasse neste lugar e encontrasse o computador, será que poderia “ler” esses poemas?
Escrevi que não, pois dificilmente eu poderia ler os disquetes que guardava há quinze anos. A resposta de Américo Melchor chegou na manhã do outro dia:
Escreva em tabuletas de argila. Elas duram cinco mil anos. Você já ouviu falar sobre a biblioteca dos Sumérios?
Num primeiro momento não levei muito a sério as palavras de Américo Melchor. Mas à noite procurei na internet. Encontrei muita informação e até fotos. Então quis tentar. Fui até a sala onde tinha minha oficina de escultura e fiz um pequeno molde de madeira, peguei um pouco de argila e construí uma tabuleta onde escrevi um poema dos que tinha escrito para Giovanna e o levei ao forno. Minha experiência de escultor em barro ajudou-me muito. Logo o mostrei, via webcam, a Américo. Ele disse então que não havia garantia de que nossos alfabetos poderiam ser lidos no futuro, por exemplo, em cinco mil anos. Mas a escrita cuneiforme sim. Pois essa escrita foi decifrada e lida nos tempos modernos, cinco mil anos depois. Acrescentou que não adiantava escrever em tabuletas de argila, tinha que ser também com caracteres cuneiformes. Eu disse que não sabia o que era a escrita cuneiforme. Ele respondeu:
Meu caríssimo Diego, cuneiforme vem da palavra latina cuneum, que significa cunha. Os textos cuneiformes eram principalmente gravados em pequenas tabuletas de argila com um buril. Este tipo de escrita tem cinco mil anos e foi inventado pelos sumérios. Cinco mil anos, meu caro Diego! Se você quer que seus poemas durem cinco mil anos, escreva-os em cuneiforme. A imortalidade não está garantida, mas pelo menos cinco mil anos sim. Hoje é possível ler os textos cuneiformes. O que salvou esses textos é que os Sumérios não tinham computador, nem papel. Eles escreviam em argila. Faça isso Diego, escreva em argila, e quando todos estes livros que conhecemos hoje forem pó, os poemas para Giovanna estarão ainda em boas condições. E poderão ser lidos. Não sabemos se outras escritas podem ser lidas após cinco mil anos. Mas os textos cuneiformes sim. Isto já foi feito. Não é especulação, hoje podemos ler os livros das bibliotecas de Sumer, que ficaram séculos sepultados nas areias dos desertos da Mesopotâmia.
Levei alguns meses de estudo e prática até conseguir escrever em cuneiforme. E um dia escrevi meu primeiro poema com um buril, numa tabuleta de argila. E novamente o mostrei a Américo Melchor, via webcam. Ele disse que não adiantava escrever em cuneiforme, tinha que ser também em língua suméria. Em tabuletas de argila, em cuneiforme e em sumério: essa foi a trilogia que preservou os textos de Sumer por cinco mil anos.
Tabuleta de argila, de Américo Melchor, especialista em argila, assessor sobre mundos de buril e espaços de barro, conselheiros para escritas de todos os tempos e de todas as geografias.
Ele achou engraçado e riu da brincadeira. Na outra havia um parágrafo do texto sumério da Epopéia de Gilgamesh, o primeiro livro do qual se tem registro e hoje considerado o mais antigo da historia da humanidade:
Gilgamesh, onde vagas tu? A vida que persegues não acharás. Quando os deuses criaram a humanidade, a morte para a humanidade apartaram, retendo a vida nas próprias mãos. Tu, Gilgamesh, enche teu ventre, goza de dia e de noite. Em cada dia celebra uma festa alegre, dia e noite dança e sê feliz! Que teus vestidos sejam reluzentes, lava tua cabeça, banha-te em água. Atende ao pequeno que toma tua mão. Que tua mulher se deleite em teu braço! Pois essa é a tarefa do homem!
Américo também tinha trazido presentes, para mim deu um buril novo e para Giovanna um pôster muito bem humorado no qual havia uma tabuleta de argila com a frase de Béquer “Poesía... eres tú”, imitando letras cuneiformes. Conversamos muito e jantamos, Giovanna tinha cozinhado. Logo se despediu e voltou para sua casa. Ficamos sozinhos. Comecei a maior obra da minha vida: os poemas sumérios. Giovanna sempre estava por perto. Ela lia sumério perfeitamente e eu me aperfeiçoava cada dia mais nesse idioma.
Nós queremos falar sobre o nosso destino, sobre o futuro trágico que você imaginou para nós. Por que nos imaginou apaixonados se nos separaria no final?
Respondi que eles não podiam me visitar, entretanto podíamos conversar por e-mail. Considerando que na época de Unamuno não havia internet, ninguém poderia me acusar de ter copiado o final de Névoa. Mas não adiantou: no outro dia pela manhã apareceram na minha porta Giovanna e Diego. Ela entrou primeiro, era muito mais bonita do que no conto, eu não conseguia parar de olhar para ela. Diego parecia muito triste. Estava vestindo roupas diferente. Ele falou primeiro:
Por favor, deixe-me ficar com Giovanna. Escreva mais um parágrafo. Faça com que fiquemos juntos. Não quero viver eternamente nesse final no qual ficamos separados.
Giovanna:
Você me separou de Diego no primeiro parágrafo, na décima linha. E nem permitiu que eu me despedisse dele. Você me fez desaparecer e deixou Diego sem notícias. Você sabe o que é isso?
Diego:
Você sabe o que é amar uma desaparecida? faz idéia de como foi a minha noite após a conclusão do conto?
Eu reiterei que não podiam ficar na minha sala, que tinham que ir embora imediatamente, porque eu não podia terminar meu conto como Unamuno tinha terminado Névoa...
Você parece estar só preocupado em não ser igual a Unamuno em seu final, mas por que você não escuta com mais atenção a Unamuno? “Não basta só pensar, é preciso sentir nosso destino”. Por que você não sente nosso destino? O seu e o nosso. Ou será que você não vê que nossos destinos estão unidos? Que estaremos para sempre juntos você, Giovanna e eu? Que seu nome estará sempre após o título e quando lerem nossa história será você que estará sendo lido? E não é só o “destino” do conto que importa, mas também o nosso destino, individual e intransferível. Único e sem repetição.
Giovanna:
De alguma maneira nós somos parte de você. Da sua alma, da melhor parte. Por isso escrever nossa historia foi muito mais do que um simples ato de “escrever”. Não foi só entretenimento, estava envolvido todo seu ser. Sua própria existência. Algo vital.
Uma lágrima caiu dos olhos de Giovanna. Por esses dias eu tinha lido as Meditações do Quixote que o filósofo espanhol José Ortega e Gasset escreveu no Monastério del Escorial, “uma fugaz tarde de primavera”. Pareceu-me adequado recitar para Giovanna um trecho, no qual Ortega fala do realismo poético:
Assim como as silhuetas das rochas e das nuvens encerram alusões a certas formas animais, as coisas todas, em sua inerte materialidade, despendem senhas que nós interpretamos e que estas interpretações se condensam até uma objetividade que vem a ser uma duplicação da primeira, chamada real...
Giovanna:
Porém, nada disso impede que você altere nosso destino. Escrevendo mais um parágrafo, pode mudar esse estado no qual nos deixou. Sua palavra pode criar um novo mundo para nós. Uma nova ordem. Ou você não sente neste instante, que eu sou tão real como suas nuvens? Parece que você não entendeu o capítulo XXXI de Névoa. Lembra que Augusto pergunta para Unamuno: “Vamos ver, não foi o senhor mesmo quem várias vezes disse que Dom Quixote e Sancho já não são tão reais, mas até mais reais que Cervantes?”.
Sua palavra pode criar um paraíso para nós. Como no Gênesis, quando a Palavra ordenou o caos, preencheu o vazio, esvaziou as trevas e suavizou os abismos. E Deus criou um jardim para seus personagens, um Éden. O escritor é como um pequeno Deus. Ou será que você também esqueceu os poemas de Huidobro?
Eu nunca poderia esquecer Vicente Huidobro.
Giovanna:
Então, faça com que sua palavra engendre um novo mundo, um novo espaço. Um novo cosmo. Recrie-nos em sua imaginação, nos imagine felizes e seremos felizes. O escritor não precisa ficar preso ao real, pode imaginar universos, criar paraísos e pode parar de narrar só no momento em que seus personagens forem felizes. Não há finais, só há o momento em que o autor para de narrar. Seja um bom escritor e imagine o real, pois o que imaginamos também pode formar parte da realidade. E seja generoso e imagine um reencontro entre Diego e eu. Você não é um historiador, não precisa escrever sobre o que de fato aconteceu. Você pode escrever sobre o que poderia ter acontecido ou sobre o que imagina que aconteceu ou acontecerá. Você pode imaginar o que nunca existiu, o que nunca aconteceu nem acontecerá. Você não precisa ficar amarrado aos fatos, nem à materialidade do real, você é um criador, um escritor de contos.
Eu:
No entanto, mesmo que o escritor crie mundos, esses continuam sendo mundos imaginários. E um conto é só um conto, não muda nada da materialidade do mundo. E mesmo que escrevesse um outro final, seria “outro final” pois aquele primeiro permaneceria sendo “o primeiro final”. Esse final é inextinguível e nesse final vocês já ficaram separados. Ninguém pode mudar isso. Ninguém pode mudar o passado. Ninguém pode mudar o que já aconteceu. Aquele final já foi. Agora está fora do tempo. Não é possível mudar nada dele. Porque não podemos retroceder. Nesse sentido é eterno. Outro final sempre será “outro final” e o “primeiro” estará sempre ali, lembrando cada momento que o tempo transcorre e que é irreversível. Ninguém pode mudar o que aconteceu.
Giovanna:
Mas a vida de seus personagens também é eterna, porque ninguém pode mudar o que você criou. O imaginário não esta sujeito à corrupção da matéria. A Beatriz da Comédia de Dante será sempre jovem e a Laura do Cancioneiro de Petrarca nunca envelhecerá.
Diego:
O que criamos com a imaginação faz parte da cultura e os seres literários podem ser tão reais como os seres materiais. Qual é a Beatriz real? a da Vita Nuova? a da Divina Comédia? ou Beatriz Portinari, que se casou com o banqueiro Simone de Bardi e que morreu antes de completar 25 anos? Qual é a Laura real de Francesco Petrarca? a do Canzoniere e do Trionfi? ou a Laura que estava morta apodrecendo no túmulo? O que imaginamos pode ser indiferente para o Real, entretanto não para cultura.
Essas palavras de Diego me permitiram sair da problemática do tempo e ir para o da cultura. E prossegui recitando mais um texto de Ortega:
Envolvendo a cultura —como estalagem ao retábulo da fantasia, — jaz a bárbara, muda, brutal e insignificante realidade das coisas. É muito triste mostrar isto, mas o que se vai fazer? É real, está aí, bastando-se terrivelmente a si mesmo. Sua força e significado único radicam em sua presença. Lembrança e promessa é a cultura, passado irreversível, futuro sonhado. Mas a realidade é um simples e pavoroso estar aí. Presença, jacência, inércia. Materialidade...
Então Giovanna olhando para mim com um olhar intensamente triste murmurou:
Não seria outro final, seria só a continuidade da narração. É só escrever mais um pouco. Não há finais, só há o momento em que o autor para de narrar. De alguma maneira você finaliza o conto cada vez que faz um pausa. E isto aconteceu muitas vezes durante os dias em que você escrevia o conto. Acontecia cada vez que você desligava o computador. Você acha que minhas lágrimas não são reais? Você pensa que a minha dor não é real? Ou nem sequer isso você concederá a seus personagens? Você não pode dizer que a angústia de perder Diego não é verdadeira. Não pode negar a realidade das minhas lágrimas. Nem dizer que a minha dor é ficção, que meu amor é ficção, que eu sou ficção.
Eu:
Ninguém pode mudar o dia de ontem. Ainda que escrevesse outro final, seria “outro final”. Giovanna, no meu conto vocês ficaram para sempre separados, desde ontem, e nem eu posso mudar isso. Ninguém pode mudar o que já foi escrito. Um “novo texto” será sempre “um novo texto” que por sua vez também nunca poderá mudar. Mesmo mudando um texto o texto mudado sempre será o texto que foi mudado e sempre estará no passado. Todo texto que lemos sempre é texto presente e só tem existência material no presente, por isso o passado é irreversível. Aliás, você não é real, você é um ente metafísico. Você nasceu na minha fantasia. Giovanna, você não tem materialidade, nem extensão, nem categorias, nem...
Um silêncio abismal tomou conta de mim e senti que meu coração estava congelando. Agora as lágrimas de Giovanna eram muitas e caiam suavemente por seu rosto. Olhando para mim disse:
Porém, você está falando comigo, meu doce Jorge, está-me olhando, está na minha frente.
E levando sua mão aos olhos, com o dedo pegou uma lágrima e mostrou-me dizendo:
Veja se esta lágrima não é real, sinta sua umidade, toque na materialidade dela.
Sim, nesse momento Giovanna e sua lágrima eram tão reais como a luz que entrava pela janela. Não fazia sentido continuar argumentando. Não era mais assunto de lógica e de razão, porém de vida e do coração. Giovanna tinha atingido a minha alma. Ela me chamou meu doce Jorge, palavras que no conto ela só usava para Diego de Petra. Sua mão estendida mostrando-me sua lágrima me comoveu profundamente.
Você me fez amar Giovanna, por todas as páginas de seu conto, então prossiga a narração por mais um parágrafo. Só mais algumas linhas... escreva que eu a reencontro.
Enquanto escutava atentamente as palavras de Diego o silêncio nas profundezas de meu ser era cada vez maior. Ele prosseguiu:
Você não sabe a intensidade desta dor, não sabe... Sua imaginação ficou pequena. Toda sua fantasia não conseguiu pensar uma vida feliz para nós. Você se rendeu à tristeza do mundo. Você não vê que a felicidade é uma invenção humana. Algo que se constrói com o pensamento. Que não há felicidade na natureza, nem na materialidade. Que não há pedras felizes. Você não entende que a felicidade é algo da literatura, do pensamento, da filosofia. Se for para ficar na gélida realidade da natureza, então nos mate de uma vez, nós transforme em pó. Ou você não consegue entender que a única maneira de nós não estarmos hoje diante de você, seria nunca nos ter criado, que nós não fossemos suas personagens? Ou simplesmente que você nunca houvesse nascido: que não houvesse autor deste conto...
Eu:
Por isso vocês são chamados de personagens e eu de autor. E só me interessa uma visão lúcida do mundo, da vida humana e do amor. Quero ser lúcido no que concerne a realidade. Só a lucidez é capaz de nos redimir...
Giovanna:
Mas não há amores lúcidos. O amor é ilusão. Ilusão sobre a vida, sobre a realidade, sobre uma outra pessoa, sobre você próprio.
Eu:
Más é a lucidez que nos permite ser livres. Sem utopias, nem esperanças, nem ilusões... Um conto é ficção.
Giovanna:
Você não vê que na literatura é a ilusão que faz viver e que a lucidez mata. O Quixote morre quando recobra a lucidez. Era sua loucura o que o fazia viver. Ter ilusões e estar apaixonado são o mesmo. A lucidez é triste, porque a realidade é triste. Alguns chamam o Quixote o “cavaleiro da triste figura”.
Eu:
A única felicidade que me interessa é a que vem da lucidez, da verdade, da realidade. Não estou interessado em felicidades ilusórias. Não me parece que a loucura do Quixote era uma loucura feliz. O Quixote era triste porque sua loucura era lúcida e os poucos momentos de felicidade eram aqueles em que a realidade aflorava. Não foi a lucidez que o matou, foi a realidade, ele não suportou a realidade... Cervantes não suportou a realidade, por isso matou o Quixote. Somos incapazes de pensar num Quixote lúcido e feliz, porque Cervantes era incapaz disso. Foi Cervantes quem matou o Quixote.
Giovanna:
Mas ele morreu para viver. Foi morrendo que ele encontrou a vida. Fazendo sua personagem mortal, Cervantes o fez perene...
Eu:
Sim, porque só se corrompe e morre o que tem matéria, por isso o que não existe é imortal, como os seres literários.
Giovanna:
Sua lucidez faz de você um homem triste...
Eu:
Prefiro uma tristeza real e verdadeira a uma felicidade ilusória... a única felicidade autentica é a que nasce da verdade.
Giovanna:
Será que não é possível uma ilusão lúcida? Você não gosta dos paradoxos? Por que não cria uma ilusãolúcida, uma lucidailusão, uma lucilusão ou uma ilúcida?
Diego:
São só alguns homens que conseguem ser felizes na lucidez, a maioria precisa de ilusão para poder viver. Nem todos conseguem olhar de frente a crua e fria realidade e a fraternal indiferença da natureza. Nem todos conseguem olhar de frente os abismos...
Giovanna:
O amor é ilusão, encanto, alegria. Não há amor sem ilusão, é ela que o possibilita, pois é antecipação, expectativa, projeção. A própria idéia de que existe um amor que só acaba com a morte é na maioria dos casos ilusória, no entanto faz viver, é uma ilusão carregada de vida... uma ilusão bonita, que nos dá força e nos traz felicidade. A lucidez é inimiga do amor.
Eu:
A única verdade do amor é a verdade do desejo. Amamos o que desejamos.
Giovanna:
Mas, o que você escreveu foi um conto, não um tratado sobre a lucidez humana. Um pequeno conto. Gostaria tanto que terminasse nossa história como uma historinha pra crianças. Por que não é generoso e nos dá o que nos fará felizes? Esqueça por um momento a lucidez e pronuncie as palavras mágicas: e foram felizes para sempre.
A voz de Giovanna ficou terna e seu olhar meigo.
Lembre-se de como era bom dormir depois que sua mãe pronunciava essas palavras “e foram felizes para sempre”. Sem elas teria sido impossível fechar os olhos. As crianças são felizes porque suas historinhas têm finais felizes. Pense um pouco como seria terrível a noite de uma criança se a Chapeuzinho ficasse sempre nas mãos do lobo, ou a Bela Adormecida sempre dormindo, ou a Cinderela sempre na casa da cruel madrasta. A ilusão de um final feliz ajuda a dormir... nos traz um sonho doce. Esse “foram felizes para sempre” não muda o real, porém nos faz adormecer com placidez, nos ajuda a passar a noite, faz com que esqueçamos das trevas...
Giovanna, fazendo uma cara como se tivesse medo, acrescentou:
A lucidez me produz insônia.
Eu: (Silêncio)
Por que não imagina uma infância para mim? Você já pensou como eu era quando criança? Quero que você escreva uma historinha na qual eu sou uma linda e graciosa menina. Quero ser a personagem principal de uma romântica e bela historinha... com animais que falam...
Diego sorriu e disse:
E eu serei o príncipe e quero beijar a princesa.
Giovanna e Diego intercambiaram sorrisos. Giovanna se moveu como se fosse uma criança. Logo, olhando para mim, ficou fazendo beicinhos. Eu sorri.
Escreva mais um parágrafo e vença a fatalidade dos finais tristes e a crua realidade da natureza. Pense num final feliz, num reencontro. Você viu como é fácil sorrir. Reflita sobre você e seus leitores, mergulhe na inesgotável criatividade da literatura e sua infinita capacidade de cogitar relacionamentos felizes. Que importa que no dia-a-dia do mundo as pessoas briguem, os relacionamentos terminem e o amor morra. Os escritores podem imaginar os amores imortais e finais felizes. A literatura pode criar miragens sobre os casais e sobre o amor. Pode situar-se fora da fria realidade das coisas, do mundo, dos fatos. Imaginar a vida e a felicidade. Seu poder de criar ilusão é infinito e sua capacidade de pensar em alternativas para o sofrimento é ilimitada. Lembre-se que Dante, em sua Comédia, reencontrou Beatriz no purgatório, para logo entrar com ela no próprio Paraíso e Boécio, enquanto esperava a execução de sua sentença de morte, imaginou que em sua cela aparecia a Filosofia, na forma de uma mulher, para consolá-lo. Isto lhe permitiu morrer em paz.
Giovanna abraçou Diego e os dois ficaram olhando para mim em silêncio. Eu olhava a luz que iluminava as coisas e o pedaço de céu azul que podia ser visto pela janela. Não sei por quanto tempo fiquei assim, mas finalmente disse:
Vou escrever um parágrafo a mais, vocês ficarão juntos... Eternamente um ao lado do outro. E nunca ninguém poderá mudar este novo final do meu conto. Vocês ficarão apaixonados. Amanhã vocês serão novamente felizes.
E caminhei até o computador e escrevi:
No dia seguinte, cedo, quando o sol começava a aparecer, Diego acordou e sentiu que estavam batendo em sua porta. Abriu e ali estava Giovanna... na luz da manhã... com toda a beleza que um escritor pode imaginar. Com o cabelo caindo sobre os ombros e um olhar infinitamente amoroso. Ela não falou nada, só abraçou Diego e entraram na casa. E viveram felizes para sempre.
Imprimi o texto e o entreguei a Giovanna. Estava um pouco incomodado por ter terminado o meu conto de uma maneira tão clichê e tão pouco original. Pensei em tirar a frase “E viveram felizes para sempre”, porém não o fiz porque nesse momento me importava mais a felicidade de Giovanna e Diego. Não era hora de ficar pensando na crítica literária.
- Obrigada, Jorge.
Giovanna e Diego foram embora. Eu fiquei olhando o fragmento de mundo que se estendia fora da minha janela. Lembrei-me que a palavra cosmos, em grego significa “ordem”. E fiquei pensando em como o trabalho do escritor, desde as origens da escrita, é simplesmente criar novos cosmos, que prevaleçam sobre a infelicidade do mundo e sobre o caos, sobre os abismos e a voragem, sobre a escuridão, sobre o acaso e a imprevisibilidade. Lembrei-me que para os antigos filósofos, no começo só havia o ilimitado, o infinito, as trevas e o vazio obscuro e sem limites, e que foi o Logos que ordenou e limitou o mundo. Pensei em São João que escreveu em seu Evangelho que o Logos se fez carne para redimir-nos, para divinizar-nos . Pensei nas palavras de Hesíodo: “Antes de tudo surgiu o caos, depois a Terra de amplo seio, para sempre firme alicerce de todas as coisas”. Pensei no texto Sumério de Gilgamesh e sua epopéia tentando vencer a fragilidade da existência humana e sua procura pela imortalidade. Pensei em Petrarca se alçando triunfante sobre a morte e imortalizando Laura só com uma pena. Em Dante atravessando os infernos para reencontrar Beatriz. Pensei no apaixonado Augusto discutindo com Unamuno em Névoa, para tentar viver e ter de volta Eugenia. Então resolvi que Diego e Giovanna mereciam mais um parágrafo de meu conto e voltei para o computador:
Cinco mil anos depois, um jovem arqueólogo que realizava escavações encontrou no meio das ruínas uma estante com tabuletas de argila escritas em língua suméria, em caracteres cuneiformes. Ele conseguiu ler imediatamente o texto, pois tinha estudado sumério na graduação. O título da primeira tabuleta era: “Poemas de Amor para Giovanna”. Foi uma descoberta grandiosa.
E aqui termino meu relato. No equinócio da primavera, no último dia do Inverno e as minhas palavras finais são para Giovanna:
Minha doce Giovanna, você finalmente é poesia e vive nos poemas de amor de Diego. E nessa poesia será para sempre amada. E esse amor ensinará a amar e fortalecerá o amor dos que amam. Giovanna, você levou meu relato cinco mil anos atrás até os Sumérios, e cinco mil anos na frente até um arqueólogo do futuro. São dez mil anos de você, Giovanna. E só quero lhe dar um derradeiro presente, uma imagem final, uma última cena:
“Vislumbro um casal de namorados lendo os poemas que Diego fez para você, sentados diante do mar, no cais de um porto, numa tarde de outono, com uma leve brisa no rosto, enquanto o pôr-do-sol derrama sobre o horizonte as suaves cores do ocaso e as folhas caem longe num parque distante”.
Conto de Jorge Luis Gutiérrez (Chile)
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