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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS

ALBERT CAMUS

“O HOMEM REVOLTADO”

ALÉM DO NIILISMO





Existem portanto para o homem uma ação e um pensamento possíveis no nível médio que é o seu. Qualquer empreendimento mais ambicioso revela-se contraditório. O absoluto não é alcançado, nem muito menos criado através da história. A política não é a religião do contrário, não passa de inquisição. Como a sociedade definiria um absoluto? Talvez cada qual busque, por todos, esse absoluto. Mas a sociedade e a política têm apenas o encargo de ordenar os negócios de todos para que cada qual tenha o lazer e a liberdade dessa busca comum. A história não pode mais ser erigida como objeto. Ela não é mais que uma oportunidade, que deve ser tornada profícua por uma revolta vigilante.

«A obsessão pela colheita e a indiferença em relação à história”, escreve admiravelmente René Char, “são as duas extremidades de meu arco.” Se o tempo da história não é feito do tempo da colheita, a história não é mais que uma sombra fugaz e cruel onde o homem não encontra mais seu quinhão. Quem se entrega a essa história não se entrega a nada e, por sua vez, nada é. Mas quem se dedica ao tempo de sua vida, à casa que defende, à dignidade dos seres vivos, entrega-se à terra, dela recebendo a colheita que semeia e nutre novamente. São enfim aqueles que sabem, no momento desejado, revoltar-se também contra a história que a fazem progredir. Isso supõe uma interminável tensão e a serenidade crispada de que nos fala o mesmo poeta. Mas a verdadeira vida está presente no coração dessa dicotomia. Ela é o próprio dilaceramento, o espírito que paira acima dos vulcões de luz, a loucura pela eqüidade, a intransigência extenuante da medida. Para nós, o que ressoa no~ confins dessa longa aventura revoltada não são fórmulas de otimismo, que não têm utilidade no extremo de nossa desgraça, mas sim palavras de coragem e de inteligência, que, junto ao mar, são até mesmo virtude.

Nenhuma sabedoria atualmente pode pretender dar mais. A revolta confronta incansavelmente o mal, do qual só lhe resta tirar um novo ímpeto. O homem pode dominar em si tudo aquilo que deve ser dominado. Deve corrigir na criação tudo aquilo que pode ser corrigido. Em seguida, as crianças continuarão a morrer sempre injustamente, mesmo na sociedade perfeita. Em seu maior esforço, o homem só pode propor-se uma diminuição aritmética do sofrimento do mundo. Mas a injustiça e o sofrimento permanecerão e, por mais limitados que sejam, não deixarão de ser um escândalo. O “por quê?” de Dimitri Karamazov continuará a ecoar; a arte e a revolta só morrerão com a morte do último homem.

Há sem dúvida um mal que os homens acumulam em seu desejo apaixonado de unidade. Mas um outro mal está na origem desse movimento desordenado. Diante desse mal, diante da morte, o homem, no mais profundo de si mesmo, clama por justiça. O cristianismo histórico só respondeu a esse protesto contra o mal pela anunciação do reino e, depois, da vida eterna, que exige a fé. Mas o sofrimento desgasta a esperança e a fé; ele continua então solitário e sem explicação. As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer são multidões sem deus. Nosso lugar, a partir de então, é a seu lado, longe dos antigos e dos novos doutores. O cristianismo histórico adia para além da história a cura do mal e do assassinato, que, no entanto, são sofridos na história. O materialismo contemporâneo julga, da mesma forma, responder a todas as perguntas. Mas, escravo da história, ele aumenta o domínio do assassinato histórico, deixando-o ao mesmo tempo sem justificação, a não ser no futuro, que, ainda uma vez, exige a fé. Em ambos os casos, é preciso esperar, e, enquanto isso, os inocentes não deixam de morrer. Há vinte séculos, a soma total do mal não diminuiu no mundo. Nenhuma parúsia, quer divina ou revolucionária, se realizou. Uma injustiça continua imbricada em todo sofrimento, mesmo o mais merecido aos olhos dos homens. O longo silêncio de Prometeu diante das forças que o oprimem continua a gritar. Mas, nesse ínterim, Prometeu viu os homens se voltarem também contra ele, ridicularizando-o. Espremido entre o mal humano e o destino, o terror e o arbítrio, só lhe resta sua força de revolta para salvar do assassinato aquilo que ainda pode ser salvo, sem ceder ao orgulho da blasfêmia.

Compreende-se então que a revolta não pode prescindir de um estranho amor. Aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história estão condenados a viver para aqueles que, como eles, não conseguem viver: rara os humilhados. O corolário do movimento mais puro da então o grito dilacerante de Karamazov: se não forem salvos todos, de que serve a salvação de um só? Dessa forma, condenados católicos, nas masmorras da Espanha, recusam hoje a comunhão, porque os padres do regime tornaram-na obrigatória em certas prisões. Também eles, únicas testemunhas da inocência crucificada, recusam a salvação, se seu preço é a injustiça e a opressão. Essa louca generosidade é a da revolta, que oferta sem hesitação sua força de amor, e recusa peremptoriamente a injustiça. Sua honra é de não calcular nada, distribuir tudo na vida presente, e aos seus irmãos vivos. Desta forma, ela é pródiga para os homens vindouros. A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente.

Com isso, a revolta prova que ela é o próprio movimento da vida e que não se pode negá-la sem renunciar à vida. Seu grito mais puro, a cada vez, faz com que um ser se revolte. Portanto, ela é amor e fecundidade ou então não é nada. A revolução sem honra, a revolução do cálculo, que, ao preferir o homem abstrato ao homem de carne e osso, nega a existência tantas vezes quanto necessário, coloca o ressentimento no lugar do amor. Tão logo a revolta, esquecida de suas origens generosas, deixa-se contaminar pelo ressentimento, ela nega a vida, correndo para a destruição, fazendo sublevar-se a turba zombeteira de pequenos rebeldes, embriões de escravos, que acabam se oferecendo hoje, em todos os mercados da Europa, a qualquer servidão. Ela não é mais revolta nem revolução, mas rancor e tirania. Então, quando a revolução, em nome do poder e da história, torna-se esta mecânica assassina e desmedida, uma nova revolta é consagrada, em nome da moderação e da vida. Estamos neste extremo. No fim destas trevas, é inevitável, no entanto, uma luz, que já se adivinha — basta lutar para que ela exista. Para além do niilismo, todos nós, em meio aos escombros, preparamos um renascimento. Mas poucos sa em isso.

E já a revolta, na verdade, sem pretender tudo resolver, pode pelo menos tudo enfrentar. A partir deste instante, a luz jorra sobre o próprio movimento da história. Em torno dessa fogueira devoradora, combates de sombras agitam-se por um momento, depois desaparecem, e cegos, tocando suas pálpebras, exclamam que isto é a história. Os homens da Europa, abandonados às sombras, desviaram-se do ponto fixo e reluzente. Eles trocam o presente pelo futuro, a humanidade pela ilusão do poder, a miséria dos subúrbios por uma cidade fulgurante, a justiça cotidiana por uma verdadeira terra prometida. Perdem a esperança na liberdade das pessoas e sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam de imortalidade uma prodigiosa agonia coletiva. Não acreditam mais naquilo que existe, no mundo e no homem vivo; o segredo da Europa é que ela não ama mais a vida. Os seus cegos acreditaram de modo pueril que amar um único dia da vida equivalia a justificar séculos inteiros de opressão. Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo, adiando-a para mais tarde. A impaciência dos limites, a recusa da vida na duplicidade, o desespero de ser homem levaram-nos, finalmente, a uma desmedida desumana. Ao negarem a justa grandeza da vida, precisaram apostar na sua própria excelência. Na falta de coisa melhor, eles se divinizaram e sua desgraça começou: estes deuses têm os olhos vazados. Kaliayev e seus irmãos do mundo inteiro recusam elo contrário, a divindade, já que rejeitam o poder ilimitado de matar. Eles escolhem, e nos dão como exemplo, a única regra original em nossos dias: aprender a viver e a morrer e, para ser homem, recusar-se a ser deus.

No meio-dia do pensamento, a revolta recusa a divindade para compartilhar as lutas e o destino comuns. Nós escolheremos Itaca, a terra fiel, o pensamento audacioso e frugal, a ação lúcida, a generosidade do homem que compreende. Na luz, o mundo continua a ser nosso primeiro e último amor. Nossos irmãos respiram sob o mesmo céu que nós, a justiça está viva. Nasce então a estranha alegria que nos ajuda a viver e a morrer e que, de agora em diante, não recusamos a adiar para mais tarde. Na terra dolorosa, ela é o joio inesgotável, o amargo alimento, o vento forte que vem dos mares, a antiga e a nova aurora. Com ela, ao longo dos combates, iremos refazer a alma deste tempo e uma Europa que nada excluir¬á. Nem esse fantasma, Nietzsche, que, durante doze anos após sua derrocada, o Ocidente ia evocar como a imagem arruinada de sua mais elevada consciência e de seu niilismo; nem esse profeta da justiça sem ternura, que descansa, por um erro, na quadra dos incréus no cemitério de Highgate; nem a múmia deificada do homem de ação em seu caixão de vidro; nem nada do que a inteligência e a energia da Europa forneceram incessantemente ao orgulho de uma época desprezível. Todos, na verdade, podem reviver junto aos mártires de 1905, mas com a condição de compreender que eles se corrigem uns aos outros e que, sob o sol, um limite refreia todos. Um diz ao outro que não é Deus; aqui se encerra o romantismo. Nessa hora em que cada um de nós deve retesar o arco para competir novamente e reconquistar, na e contra a história, aquilo que já possui, a magra colheita de seus campos, o breve amor desta terra, no momento em que, finalmente, nasce um homem, é preciso renunciar à época e aos seus furores adolescentes. O arco se verga, a madeira geme. No auge da tensão, alçará vôo, em linha reta, uma flecha mais inflexível e mais livre.









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