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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS

A PESTE

Albert Camus

(fragmento livro II. Religião)





No entanto, onde uns viam a abstração, outros viam a verdade. De fato, o fim do primeiro mês de peste foi obscurecido por uma recrudescência acentuada da epidemia e um sermão veemente do padre Paneloux, o jesuíta que assistira o velho Michel no princípio da doença. O padre Paneloux já se havia distinguido por colaborações freqüentes no boletim da Sociedade de Geografia de Oran, onde suas reconstituições epigráficas constituíam autoridade. Mas conquistara um auditório mais vasto que o de um especialista ao fazer uma série de conferências sobre o individualismo moderno. Mostrara-se, então, defensor ardoroso de um cristianismo exigente, igualmente distanciado da libertinagem moderna e do obscurantismo dos séculos passados. Nessa ocasião não poupara duras verdades ao seu auditório. Daí a sua reputação.

Ora, por volta do fim do mês, as autoridades eclesiásticas da nossa cidade decidiram lutar contra a peste pelos seus próprios meios, organizando uma semana de preces coletivas. Estas manifestações da piedade pública deviam terminar no domingo com uma missa solene, sob a invocação de S. Roque, o santo atacado pela peste. Nessa ocasião, tinham dado a palavra ao padre Paneloux. Há uns quinze dias que este se arrancara aos seus trabalhos sobre Santo Agostinho e a Igreja africana que lhe haviam granjeado um lugar à parte na sua ordem. De temperamento fogoso e apaixonado, aceitara com determinação a missão de que o encarregavam. Muito antes desse sermão, já se falava dele na cidade e marcou, à sua maneira, uma data importante na história deste período.

A semana de preces foi seguida por um público numeroso. Não é que em tempos normais os habitantes de Oran sejam particularmente piedosos. No domingo de manhã, por exemplo os banhos de mar fazem séria concorrência à missa. Não era também que uma súbita conversão os tivesse iluminado. Mas, por um lado, com a cidade fechada e o porto interditado, os banhos não eram possíveis e por outro lado, encontravam-se num estado de espírito bem singular em que sem terem admitido no fundo de si próprios os acontecimentos surpreendentes que os atingiam, sentiam efetivamente que algo, é óbvio, mudara No entanto, muitos continuavam a esperar que a epidemia parasse e que eles fossem poupados, com as suas famílias. Por conseqüência não se sentiam ainda obrigados a nada. A peste nada mais era para eles do que uma visita desagradável que havia de partir um dia, já que tinha vindo.

Assustados, mas não desesperados, não chegara ainda o momento em que a peste lhes surgiria como a própria forma da sua vida e em que esqueceriam a existência que até agora tinham podido levar. Em suma, estavam na expectativa. No que se refere à religião, como a muitos outros problemas, a peste tinha-lhes dado uma singular atitude de espírito, tão afastada da indiferença como da paixão que bem podia definir-se pela palavra “objetividade”. A maior parte dos que seguiram a semana de preces poderia ter feito sua a frase que um dos fiéis havia proferido diante do doutor Rieux: “De qualquer maneira, mal não pode fazer.” O próprio Tarrou, depois de ter anotado nos seus cadernos que os chineses, em casos semelhantes, vão tocar tambor diante do gênio da peste, observava que era absolutamente impossível saber se, na realidade, o instrumento se mostrava mais eficaz que as medidas profiláticas. Acrescentava, apenas, que para decidir a questão, seria preciso estar informado sobre a existência de um gênio da peste e que a nossa ignorância sobre este ponto tornava estéreis todas as opiniões que se pudesse ter.

De qualquer modo, a catedral da nossa cidade esteve quase cheia de fiéis durante toda a semana. Nos primeiros dias, muitos habitantes ficavam ainda nos jardins de palmeiras e romãzeiras que se estendem, diante do pórtico, para ouvirem a maré de invocações e de preces que refluíam até às ruas. Pouco a pouco, com o auxílio do exemplo, os mesmos ouvintes decidiram-se a entrar e a mesclar uma voz tímida aos responsos da assistência. E, no domingo, uma multidão considerável invadiu a nave, transbordando até a& adro e aos últimos degraus da escadaria. Desde a véspera, o céu tinha-se toldado, a chuva cala pesada-mente. Os que estavam do lado de fora tinham aberto os guarda-chuvas. Um cheiro de incenso e de molhado flutuava na catedral quando o padre Paneloux subiu ao púlpito.

Era de estatura mediana, mas robusto. Quando se apoiou ao rebordo do púlpito, apertando a madeira entre as mãos grandes, não se via nele senão uma forma espessa e negra, encimada pelas manchas de duas faces rubicundas sob os óculos de aço. Tinha uma voz forte, apaixonada, que alcançava longe, e quando atacou a assistência com uma única frase veemente e martelada: « Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes, a assistência se tumultuou.

Logicamente, o que se seguiu não parecia estar de acordo com este exórdio patético. Só a seqüência do discurso fez compreender aos nossos concidadãos que, por um hábil processo oratório, o padre tinha dado de uma só vez, como um golpe que se desfecha, o tema de todo o seu sermão. Logo depois

desta frase, Paneloux citou o texto do êxodo relativo à peste do Egito e disse: «A primeira vez que este flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos e a peste o faz então cair de joelhos. Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditais sobre isto e caí de joelhos.”

A chuva redobrava lá fora e esta última frase pronunciada no meio de um silêncio absoluto, que se tornou ainda mais profundo pelo crepitar da tempestade sobre os vitrais, ressoou com tal inflexão que alguns ouvintes, depois de um segundo de hesitação, deixaram-se deslizar da cadeira para o genuflexório. Outros julgaram que era necessário seguir o exemplo, de tal modo que, de vizinho a vizinho, sem outro ruído que não fosse o ranger de alguma cadeira, todo o auditório se encontrou logo ajoelhado. Paneloux endireitou-se então, respirou profundamente e continuou, num tom mais veemente: “Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem temê-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja ~do universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que o joio se separe do grão. Haverá mais joio que grão, mais chamados que eleitos e es:a desgraça não foi desejada por Deus. Por longo tempo, este mundo compactuou com o mal, repousou na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem, todos se sentiam fortes. Che-. gado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar se levar, a misericórdia divina faria o resto. ~Pois bem! Isto não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na sua eterna esperança, acaba de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste!»

Na sala, alguém soprou como um cavalo impaciente. Depois de um a curta pausa, o padre continuou, num tom mais baixo:

“Lê-se na Lenda Aurea que no tempo do rei Humberto, na Lombardia, a Itália foi devastada por uma peste tão violenta que os vivos mal chegavam para enterrar os mortos. Esta peste castigava sobretudo Roma e Pavia. E um anjo bom apareceu visivelmente, dando ordens ao anjo mau, que trazia uma lança de caça, ordenando-lhe que batesse nas casas. E tantas vezes quantas uma casa recebia pancadas, tantos mortos havia que dela saiam.

Paneloux estendeu aqui os dois braços curtos na direção do adro, como se mostrasse alguma coisa por detrás da cortina móvel da chuva. “Meus irmãos”, disse com força, “é a mesma caçada mortal que hoje prossegue nas nossas ruas. Vede-o, esse anjo da peste, belo .como Lúcifer e brilhante como o próprio mal, erguido acima dos vossos telhados, empunhando a lança vermelha à altura da cabeça, designando com a mão esquerda uma das vossas casas. Neste mesmo instante, talvez, o seu dedo estende-se para a vossa porta, a lança ressoa sobre a madeira:

mais um instante e a peste entra em vossa casa, senta~se no vosso quarto e espera o vosso regresso. Ela está lá, paciente e atenta, segura como a própria ordem do mundo. Essa mão que ela vos estenderá, nenhum poder humano, nem sequer, sabei-o bem, a vã ciência humana, pode fazer com que a eviteis. E, bati¬dos na eira sangrenta da dor, sereis repelidos como a palha.”

Aqui, o padre retomou, com mais amplidão ainda, a imagem patética do flagelo. Evocou a imensa lança volteando por cima da cidade, atacando ao acaso e erguendo-se de novo, ensangüentada; espalhando, enfim, o sangue e a dor humana pøra as sementeiras que preparariam as searas da verdade.”

Ao fim deste longo período, o padre Paneloux parou, com os cabelos caídos sobre a fonte, o corpo agitado por um tremor que as mãos comunicavam ao púlpito, e prosseguiu, mais surda-mente mas em tom acusador: “Sim, chegou a hora de refletir. Pensastes que vos bastaria visitar Deus aos domingos para ficardes com vossos dias livres. Pensastes que algumas genuflexões pagariam suficientemente o vosso desleixo criminoso. Mas Deus não é fraco. Essas atenções espaçadas não bastavam à sua ternura devoradora. Ele queria ver-vos mais tempo, é a sua maneira de vos amar que é, a bem dizer, a única maneira de amar. Eis por que, cansado de esperar a vossa vinda, deixou que o flagelo vos visitasse, como visitou todas as cidades do pecado desde que os homens têm história. Sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, Faraó e Job e também todos os malditos. E, como esses o fizeram, é um olhar novo que lançais sobre os seres e as coisas, desde o dia em que esta cidade fechou os seus muros em torno de vós e do flagelo. Sabeis agora, finalmente, que é preciso chegar ao essencial.”

Um vento úmido infiltrava-se agora na nave e as chamas dos círios curvavam-se, crepitando. Um cheiro espesso de cera, tosses, um espirro chegaram até ao padre Paneloux que, voltando à sua exposição com uma sutileza que foi muito aprecia da, prosseguiu com a voz calma: “Muitos dentre vós, bem o sei, perguntaram a si próprios aonde quero chegar. Quero fazer-vos chegar à verdade e ensinar-vos a vos regozijar, apesar de tudo o que vos disse. Passou o tempo em que os conselhos, uma mão fraterna eram os meios de vos guiar para o bem. Hoje, a verdade é uma ordem. E o caminho da salvação é uma lança vermelha que vos aponta e vos conduz. Ë aqui, meus irmãos, que se manifesta, enfim, a misericórdia divina que colocou em todas as coisas o bem e o mal, a cólera e a piedade, a peste e a salvação. Este mesmo flagelo que vos aflige, vos eleva e vos mostra o caminho. Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, para alcançar a Eternidade. Os que não eram atingidos, enrolavam-se nas roupa contaminadas para terem a certeza de morrer. Sem duvida, esta fúria de salvação não é recomendável. Ela revela uma precipitação lamentável, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais apressado que Deus, e tudo o que pretende acelerar a ordem imutável que Ele estabeleceu de uma vez para sempre conduz à heresia. Mas, ao menos, este exemplo comporta uma lição. Para os nossos espíritos mais clarividentes, ele faz apenas valer esse clarão sublime de eternidade que jaz no fundo de todo sofrimento. Ele ilumina esse clarão, os caminhos crepusculares que conduzem à libertação. Ele manifesta a vontade divina que, sem fraquejar, transforma o mal em bem. Hoje ainda, através desta caminhada de morte, de angústias e de clamores, Ele guia-nos para o silêncio essencial e para o princípio de toda a vida. Eis, meus irmãos, o imenso consolo que queria vos trazer para que não leveis apenas daqui as palavras que castigam, mas também um verbo de paz” .

Sentia-se que o padre Paneloux terminara. Lá fora a chuva havia cessado. Um céu mesclado de água e de sol derramava sobre a praça uma luz mais brilhante. Da rua, chegavam ruídos de vozes, o deslizar de veículos, toda a linguagem de uma cidade que desperta. Os ouvintes juntavam discretamente os seus pertences, com um sussurro surdo. Entretanto, o padre retomou £ palavra e disse que, depois de ter mostrado a origem divina da peste e o caráter punitivo deste flagelo, tinha terminado e não faria apelo, para concluir, a uma eloqüência que seria inoportuna em matéria tão trágica. Parecia-lhe que tudo devia ser claro para todos. Lembrou apenas que, por ocasião da grande peste de Marselha, o cronista Mathieu Marais se queixara de estar mergulhado no Inferno, vivendo assim sem socorro e sem esperança. Pois bem! Mathieu Marais era cego! Nunca, mais que hoje, pelo contrário, o padre Paneloux tinha sentido o socorro divino e a esperança cristã que eram oferecidos a todos. Ele esperava, contra toda a esperança, que a despeito do horror destes dias e dos gritos dos agonizantes, os nossos concidadãos ao Céu a única palavra que era cristã e que era de amor. Deus faria o resto.









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