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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS
O MITO DE SÍSIFO
(Ensaio sobre o Absurdo) Particularmente
neste caso de O mito de Sísifo, livro de terrível beleza com a sua
aguda apreensão do horror nas armadilhas do cotidiano, seu reforço ao
inconformismo e à recusa a todas as fugas, seu empenho intransigente em
valorizar e enriquecer as lutas da lucidez. Camus o escreveu no começo da
Segunda Guerra Mundial. É extremamente curioso — mas de toda coerência com o
seu pensamento — que ele não se detenha no problema da guerra e a rejeite
radicalmente nas entrelinhas, fazendo do “homem absurdo” o último a poder
aceitá-la ou a compactuar com as suas aberrações. Quem coloca em primeiro
plano a revolta, o discernimento, a discussão da morte voluntária, a oposição
às esperas e esperanças infundadas, a realidade física ou a repulsa a
qualquer tipo de servidão está plasmado indiretamente a atitude do
antiautoritarismo e, em conseqüência, propondo uma paz insubmissa, guiada ao
mesmo tempo pela razão e pela paixão amorosa (especialmente em seus “modelos”
do “homem absurdo” — quando trata de Don Juan, dos comediantes e dos
conquistadores). Mesmo neste último caso, mobilizado como todo o mundo, o
filósofo passa a opção pela luta e pela resistência, mas também o desprezo
pela guerra e seus ingredientes: “A grandeza mudou de campo. Ela está no
protesto e no sacrifício sem futuro”. Mais
especificamente, Le mythe de Sisyphe (1942) — que, não vamos esquecer,
o autor publicou aos vinte e nove anos — é a primeira formulação teórica da noção
de absurdidade, isto é, da tomada de consciência, pelo ser humano, da falta
de sentido (ou, portanto, do sentido absurdo) da sua condição. Situando a
questão nos planos da sensibilidade e da inteligência, Camus trabalha com
designações que muitas vezes se confundem, na base de estímulo e resposta
assumidos com o mesmo nome. Assim, o “homem” é o que enfrenta lucidamente a
condição — e a humanidade — absurda. Antecedido intuitiva e literariamente
(como reconhece e aplaude no último ensaio do livro) pelo gênio de Franz
Kafka, Camus é o primeiro a descrever objetivamente as situações e
conseqüências da absurdidade, compreendendo a sua lógica e propondo a sua
moral. De lá
para cá, ao mesmo tempo que o “homem absurdo” se exprimiu em toda a sua
verdade na literatura, no teatro e em outros campos ou vertentes da arte e do
pensamento (de Jorge Luis Borges à dramaturgia de autores como Beckett,
Ionesco, Genet, Pinter, Albee, Arrabal — e tantos escritores contemporâneos),
a absurdidade do humano se estendeu, fez metástases por toda parte,
prosperou. Como, nos seus rumos políticos, o autoritarismo já não anda de
braçadeiras ou suásticas às claras, a humanidade absurda também adotou
disfarces e novos colarinhos para as respectivas coleiras. Os esquemas
burocráticos de falso paternalismo e servidão, a estéril, mas afanosa vaidade
de hierarquias inteiras que superpõem andróides às voltas com obrigações e
incumbências inúteis nos mostram hoje como viu longe a atividade crítica e
criativa de homens em corpo inteiro como Franz Kafka (muitas vezes chamado
“profeta do absurdo”) e Albert Camus — inclusive em suas obras posteriores,
principalmente La peste (1947) e L’homme revolté (1951). Por
todos esses motivos, a atualidade e oportunidade de O mito de Sísifo
são absolutamente exemplares. Estão aqui os antídotos certos, a palavra certa
para uma rara humanidade que ainda merece continuar a se distinguir dos
insetos e dos ratos. Como se depreende do ensaio-título deste livro, pode-se
até rolar a pedra até o alto da montanha, de onde ela desce de novo: desde
que, nos intervalos, se mantenha e se renove a consciência do processo. A
grande maioria, no entanto, já prefere naqueles momentos tão-somente rolar
também de volta, ladeira abaixo. E já consegue chegar um pouco antes da pedra.
Mauro Gama, tradutor “Fui
posto a caminho entre a miséria e o sol”, escreve Albert Camus em O avesso
e o direito. Ele nasceu numa propriedade de vinicultura perto de Mondovi,
no departamento de Constantina, na Argélia. Seu pai foi mortalmente ferido na
batalha do Marne, em 1914. Uma infância miserável em Argel, um preceptor, o
Sr. Germain, depois um professor Jean Grenier, que sabem reconhecer-lhe os
dons, a tuberculose, que se manifesta precocemente e que, com o sentimento
trágico que ele denomina absurdo, lhe dá um desesperado desejo de viver: eis
os dados que irão forjar a sua personalidade. Escreve, torna-se jornalista,
anima grupos teatrais e uma casa da cultura, faz política. Suas campanhas no Alger
Républicain para denunciar a miséria dos muçulmanos o levam a ser
obrigado a deixar a Argélia, onde já não querem lhe arranjar trabalho. Na
França, durante a guerra, se faz um dos sustentáculos do jornal clandestino Combat.
Com a libertação, o Combat, de que ele é o redator-chefe, é um diário
que, pelo que reclama e por sei tom, faz época na história da imprensa. Mas é
o escritor que já se impõe como um dos cabeças da sua geração. Em Argel,
tinha publicado Núpcias e O Avesso e o Direito. Erroneamente
vinculado ao movimento existencialista, que atinge o apogeu no pós-guerra,
Albert Camus escreve, na verdade, uma obra articulada em torno do absurdo e
da revolta. Talvez tenha sido Faulkner quem melhor resumiu o seu sentido
geral : “Camus dizia que o único verdadeiro papel do homem, nascido em um
mundo absurdo, era viver, ter consciência de sua vida, de sua revolta, de sua
liberdade.” E o próprio Camus explicou como havia concebido o conjunto de sua
obra : “No início eu queria exprimir a negação. Em três formas: romanesca —
foi O estrangeiro; dramática — Calígula. O equívoco; ideológica
— O mito de Sísifo. E previa o positivo em três formas também :
romanesca — A peste; dramática — O estado de sítio e Os
justos; ideológica — O homem revoltado. Já entrevia uma terceira
categoria, em torno do tema do amor.” A
peste, assim, iniciado em 1941, em Oran, cidade que servirá de
cenário para o romance, simboliza o mal, um tanto como Moby Dick, cujo
mito impressiona Camus. Contra a peste, os homens adotarão diversas atitudes
e mostrarão que o homem não fica numa completa impotência diante da sorte que
lhe cabe. Esse romance da separação, da infelicidade e da esperança,
lembrando de maneira simbólica aos homens de seu tempo o que acabavam de
viver, desfrutou de um enorme sucesso. O
homem revoltado, em 1951, não afirma outra coisa. “Quis dizer a
verdade sem deixar de ser generoso”, escreve Camus, que diz também deste
ensaio que lhe trouxe muitas inimizades e o indispôs principalmente com os
surrealistas e com Sartre: “No dia em que o crime se ornamenta com os
despojos da inocência, por uma curiosa deformação que é própria do nosso
tempo, é a inocência que se vê intimada a apresentar suas justificativas. A
ambição deste ensaio seria a de aceitar e examinar este estranho desafio”. Cindo
anos mais tarde, A queda parece o fruto amargo do tempo das
desilusões, do retiro, da solidão. A queda já não desenvolve o
processo do mundo absurdo em que os homens morrem e não são felizes. Desta
vez, é a natureza humana que é culpada. “Onde começa a confissão, onde a
acusação?”, escreve o próprio Camus a propósito dessa narrativa única em sua
obra. “em todo o caso, uma única verdade nesse jogo de espelhos calculado: a
dor e o que ela promete.” Um ano
depois, em 1957, o Prêmio Nobel é concedido a Camus pelos seus livros e
também, sem dúvida, por esse combate que ele nunca parou de travar contra
tudo o que pretende esmagar o homem. Esperava-se um novo desenvolvimento de
sua obra quando, a 4 de janeiro de 1960, ele morreu num acidente de carro. As
páginas que se seguem tratam de uma sensibilidade absurda que se pode
encontrar esparsa em nosso século — e não de uma filosofia absurda que o
nosso tempo, para sermos claros, não conheceu. É, portanto, de uma
honestidade primordial assinalar, logo de início, o que elas devem a certos
espíritos contemporâneos. Minha intenção de ocultá-los é tão pequena, que
eles se verão todos citados e comentados ao longo da obra. Mas é proveitoso
observar, ao mesmo tempo, que o absurdo, tomado até aqui como conclusão, é
considerado neste ensaio como um ponto de partida. Nesse sentido, pode-se
dizer o quanto há de provisório na minha ponderação: nada se saberia conjeturar
na posição a que ela obriga. Aqui somente se encontrará a descrição, em
estado puro, de uma doença do espírito.[1]
Nenhuma metafísica, nenhuma crença estão misturadas com isso, no momento. São
os limites e o compromisso único deste livro. Só
existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida
vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia.
O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze
categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo,
responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser
confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa
resposta, já que ela vai preceder o gesto definitivo. Estão aí as evidências
que são sensíveis para o coração, mas que é preciso aprofundar para torná-las
claras à inteligência. Se me
pergunto em que julgar se uma questão é mais urgente do que outra, respondo
que é com as ações a que ela induz. Eu nunca vi ninguém morrer pelo argumento
ontológico. Galileu, que detinha uma verdade científica importante, abjurou-a
com a maior facilidade desse mundo quando ela lhe pôs a vida em perigo. Em um
certo sentido, ele fez bem. Essa verdade valia a fogueira. Se for a Terra ou
o Sol que gira em torno um do outro é algo profundamente irrelevante.
Resumindo as coisas, é um problema fútil. Em compensação, vejo que muitas
pessoas morrem por achar que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outras
que paradoxalmente se fazem matar pelas idéias ou as ilusões que lhes
proporcionam uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é, ao
mesmo tempo, uma excelente razão de morrer). Julgo, portanto, que o sentido
da vida é a questão mais decisiva de todas. E como responder a isso? A
respeito de todos os problemas essenciais, o que entendo como sendo os que
levam ao risco de fazer morrer ou os que multiplicam por dez toda a paixão de
viver, provavelmente só há dois métodos para o pensamento: o de La Palisse e
o de Don Quixote. É o equilíbrio da evidência e do lirismo o único que pode
nos permitir aquiescer ao mesmo tempo à emoção e à clareza. Em um assunto
simultaneamente tão modesto e tão carregado de patético a dialética clássica
e mais sábia deve, pois dar lugar — convenhamos — a uma atitude intelectual
mais humilde e que opera tanto o bom senso como a simpatia. O
suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno social. Ao invés disso,
aqui se trata, para começar, da relação entre o pensamento individual e o
suicídio. Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma
forma que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma tarde, ele dá um
tiro ou um mergulho. De um administrador de imóveis que tinha se matado, me
disseram um dia que ele perdera a filha há cinco anos, que ele mudara muito
com isso e que essa história “o havia minado”. Não se pode desejar palavra
mais exata. Começar a pensar é começar a ser minado. A sociedade não tem
muito a ver com esses começos. O verme se acha no coração do homem. É ali que
é preciso procurá-lo. É preciso seguir e compreender esse jogo mortal que
arrasta a lucidez em face da existência à evasão para fora da luz. Há
muitas causas para um suicídio e, de um modo geral, as mais aparentes não tem
sido as mais eficazes. Raramente alguém se suicida por reflexão (embora a
hipótese não se exclua). O que desencadeia a crise é quase sempre
incontrolável. Os jornais falam freqüentemente de “profundos desgostos” ou de
“doença incurável”. Essas explicações são válidas. Mas seria preciso saber se
no mesmo dia um amigo do desesperado não lhe falou em tom indiferente. Este é
o culpado. Pois isso pode ser o suficiente para precipitar todos os rancores
e todos os aborrecimentos ainda em suspensão.[2] Mas,
se é difícil fixar o instante preciso, o procedimento sutil em que o espírito
se decidiu pela morte, é mais fácil extrair do próprio gesto as conseqüências
que pressupõe. Matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar.
Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como
compreende-la. Mas não nos deixemos levar tanto por essas analogias e
voltemos à linguagem corrente. É somente confessar que isso “não vale a
pena”. Naturalmente, nunca é fácil viver. Continua-se a fazer os gestos que a
existência determina por uma serie de razões entre as quais à primeira é o
habito. Morrer voluntariamente pressupõe que se reconheceu, ainda que
instintivamente, o caráter irrisório deste habito, a ausência de qualquer
razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a
inutilidade do sofrimento. Qual
é, portanto, esse sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário
à vida? Um mundo que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo
familiar. Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou
ilusões, o homem se sente um estrangeiro. Esse auxilio não tem saída, pois é
destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra
prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu
cenário, é que é propriamente o sentido da absurdidade. Como já passou pela
cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, se poderá reconhecer,
sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a
atração pelo nada. O
assunto deste ensaio é precisamente essa relação entre o absurdo e o
suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo.
Pode-se tomar por princípio que, para um homem que não trapaceia, o que ele
acredita verdadeiro deve lhe pautar a ação. A crença na absurdidade da
existência deve, pois, lhe dirigir o comportamento. É uma curiosidade
legítima se indagar claramente, e sem falso pateticismo, se uma conclusão de
tal ordem exige que se abandone o mais que depressa uma condição
incompreensível. Refiro-me aqui, é claro, a homens dispostos a estarem de
acordo consigo mesmos. Apresentado
em termos claros, esse problema pode parecer ao mesmo tempo simples e
insolúvel. Mas se supõe erroneamente que problemas simples suscitam respostas
que não o são menos e que a evidência implica evidência. A priori, e
invertendo os termos da questão, assim como se alguém se mata ou não se mata,
parece só haver duas soluções filosóficas, a do sim e a do não. Isso seria
belo demais. Mas é preciso incluir a parte daqueles que, sem consumar,
interrogam sempre. Mas chego, aqui, a ironizar: trata-se de maioria. De igual
modo, vejo que os que respondem não podem agir como se pensassem sim. Com
efeito, se concordo com o critério nietzschiano, eles pensam sim de um modo
ou de outro. Ao contrario, acontece muitas vezes que aquele que se suicidam
estavam convencidos do sentido da vida. Tais contradições são constantes.
Pode-se mesmo dizer que elas nunca foram tão vivas quanto neste ponto em que
a lógica, inversamente, parece tão desejável. É um lugar-comum comparar as
teorias filosóficas com o comportamento daqueles que as professam. Mas é
preciso ressaltar que, entre os pensadores que não admitiram um sentido de
vida, com exceção de Kirílov, que pertence à literatura, de Peregrinos, que
se origina da lenda, [3] e de
Jules Lequier, que aventa a hipótese, nenhum conciliou sua lógica a ponto de
recusar sua vida. Por zombaria, menciona-se muito Schopenhauer ao fazer o
elogio do suicídio ante uma mesa bem fornida. Aí não há nenhum motivo para
brincadeira. Esse modo de não levar à sério o trágico não é tão grave, mas
acaba por julgar um homem. Diante
de tais contradições e tais obscuridades, é preciso acreditar,
conseqüentemente, que não há nenhuma relação entre a opinião que se pode ter
sobre a vida e o gesto que se faz para deixá-la? Nada de exageros nesse
sentido. No apego de um homem à vida há alguma coisa de mais forte que todas
as misérias do mundo. O julgamento do corpo vale tanto quanto o do espírito e
o corpo recua ante o aniquilamento. Adquirimos
o hábito de viver antes de adquirir o pensar. Nessa corrida que todos os dias
nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo mantém esta vantagem
inalterável. Enfim, o essencial dessa contradição se acha no que denominarei
a escapada por ser, ao mesmo tempo, um tanto menos e mais que o
entretenimento no sentido pascaliano. A escapada mortal que constitui o terceiro
tema deste ensaio é a esperança. A esperança de uma outra vida que é preciso
“merecer” ou a trapaça dos que vivem não para a própria vidas, mas para
alguma grande idéia que a ultrapassa ou a sublima, lhe dá um sentido e a
atraiçoa. Assim,
tudo contribui para embaralhar as cartas. Não é à toa que até agora fizemos
trocadilhos e fingimos acreditar que recusar à vida um sentido conduz
necessariamente a declarar que ela não vale a pena ser vivida. Na realidade,
não há nenhuma correspondência obrigatória entre esses dois julgamentos.
Apenas é necessário se recusar a se deixar perder no meio das confusões, das
disposições ou inconseqüências até o momento apontadas. É preciso separar
tudo e ir direto ao verdadeiro problema. Uma pessoa se mata porque a vida não
vale a pena ser vivida, eis sem dúvida uma verdade — improfícua, no entanto,
pois não passa de um truísmo. Mas esse insulto à existência, esse desmentido
em que ela é mergulhada provém do fato de ela não ter nenhum sentido? Se sua
absurdidade exige que se escape pela esperança ou pelo suicídio, eis o que se
precisa clarear, perseguir e ilustrar, afastando tudo o mais. É o absurdo que
domina a morte: é preciso dar a este problema precedência sobre os outros,
fora de todos os métodos de pensamento e dos jogos do espírito
desinteressado. Os matizes, as contradições, a psicologia que um espírito
“objetivo” sempre consegue introduzir em todos os problemas não têm lugar
nessa pesquisa e nessa paixão. O que aí é necessário é tão-somente um
pensamento injusto, isto é, lógico. Isso não é fácil. É sempre cômodo ser
lógico. É quase impossível ser lógico até o fim. Os homens que morrem por
suas próprias mãos seguem assim até o fim a inclinação do seu sentimento. A
reflexão sobre o suicídio me dá, então, a oportunidade de tratar do único
problema que me interessa: existe uma lógica até a morte? É algo que eu só
posso ficar sabendo se perseguir, sem paixão desordenada, e apenas sob a luz
da evidência, o raciocínio cuja origem assinalo aqui. É o que chamo um
raciocínio absurdo. Muitos chegaram a começá-lo. Não sei se se contentaram
com isso. Quando
Karl Jaspers, ao mostrar que era impossível fazer do mundo uma unidade,
escreve que “Essa limitação me conduz a mim mesmo, aí onde eu não tenho como
me livrar, um pouco antes, de um ponto de vista objetivo que só faço
representar, aí onde nem eu mesmo ou a existência de outrem já não pode se
tornar objeto para mim”, evoca, além de tantos outros, esses lugares desertos
e sem água onde o pensamento atinge os seus confins. Além de tantos outros,
sim, não há dúvida, mas sob que pressões para se livrarem disso! A essa
última volta, em que o pensamento vacila, muitos homens chegaram, e entre os
mais humildes. Esses, então, renunciavam ao que tinham de mais caro e que era
a sua vida. Outros príncipes diante do espírito abdicaram também, mas foi no
suicídio de seu pensamento, em sua mais pura revolta que o fizeram. O
verdadeiro esforço, ao contrário, é de não ceder o tanto quanto possível e
examinar de perto a vegetação barroca desses lugares distantes. A perspicácia
e a tenacidade são espectadores privilegiados para o jogo inumano em que o
absurdo, a esperança e a morte se alternam nos seus lances. O espírito pode
então analisar as imagens dessa dança ao mesmo tempo elementar e sutil, ilustrando-as
e revivendo-as ele próprio antecipadamente. Como as grandes obras, os sentimentos
profundos sempre significam mais do que o que têm consciência de dizer. A
constância de um movimento ou de uma repulsão dentro da alma se reconhece em
hábitos de fazer ou de pensar e se persegue em conseqüências que a própria
alma ignora. Os grandes sentimentos trazem junto com eles seu universo,
esplêndido ou miserável. Com sua paixão, aclaram um mundo exclusivo onde
reencontram seu próprio clima. Há um universo do ciúme, da ambição, do
egoísmo ou da generosidade. Um universo, isto é, uma metafísica e um estado
de espírito. O que é verdadeiro para sentimentos já especializados o será
mais ainda para emoções, no fundo, a um tempo tão indeterminadas, tão
confusas e tão "certas", tão distantes e tão "presentes"
quanto aquelas que o belo nos desperta ou que o absurdo nos suscita. O sentimento da absurdidade para com o desvio de uma rua qualquer
pode se meter na cabeça de um homem qualquer. Assim como, em sua desoladora nudez,
em sua luz sem cintilação, ele é incapturável. Mas até essa dificuldade
merece reflexão. É provavelmente certo que um homem permanece para sempre desconhecido
de nós e que para sempre haverá nele alguma coisa de irredutível que nos
escapa. Mas, praticamente, conheço os homens e os reconheço em seu comportamento,
no conjunto de seus atos, nas conseqüências que sua passagem vai provocando
na vida. De igual modo, todos esses sentimentos irracionais que a análise não
saberia dominar eu posso praticamente defini-los, praticamente
apreciá-los, para reunir a soma de suas conseqüências na ordem do
entendimento, para captar e anotar todos os seus aspectos, para descrever seu
universo. É verdade que, aparentemente, por ter visto cem vezes o mesmo ator,
eu não conhecerei pessoalmente melhor esses seus traços. No entanto, se faço
a soma dos heróis que ele encarnou e se digo que o conheço um pouco mais na
centésima personagem recenseada, já se sente que haverá aí uma parcela de
verdade. Porque esse aparente paradoxo é também um apólogo. Tem a sua
moralidade. Ensina-nos que um homem se define tanto por suas comédias quanto
por seus impulsos sinceros. Dá-se o mesmo, um tom abaixo, com sentimentos
inacessíveis no coração, mas parcialmente traídos pelos atos que os animam e
os estados de espírito que pressupõem. Sente-se que, dessa maneira, defino um
método. Mas também se sente que esse método é de análise e não de
conhecimento. Porque os métodos envolvem metafísicas, traem na sua insciência
as conclusões que, às vezes, pretendam ainda não conhecer. Por isso as
últimas páginas de um livro já estão nas primeiras. É um nó inevitável. O
método aqui definido confessa a percepção de que todo verdadeiro conhecimento
é impossível. Só se podem enumerar as aparências e se fazer sentir o clima. Então, talvez possamos atingir esse inapreensível sentimento da
absurdidade nos mundos diferentes, mas fraternos, da inteligência, da arte de
viver ou da arte simplesmente. O clima da absurdidade está no começo. O fim é o universo absurdo e esse estado de espírito que aclara o
mundo com uma luz que lhe é própria, para fazer com ela resplandecer o rosto
privilegiado e implacável que nele identifica. Todas as grandes ações e todos os
grandes pensamentos têm um começo irrisório. As grandes obras nascem,
freqüentemente, na esquina de uma rua ou no barulho de um restaurante. Assim
também a absurdidade. O mundo absurdo, mais que qualquer outro, extrai sua
nobreza desse nascimento miserável. Em certas situações, responder "nada"
a uma questão sobre a natureza de seus pensamentos pode ser uma dissimulação
para com um homem. Os entes queridos sabem disso. Mas se essa resposta é
sincera; representa-se esse estado d'alma em que o vazio se torna eloqüente,
em que a cadeia dos gestos cotidianos é rompida, e em que o coração
inutilmente procura o anel que a restabeleça, então ela é como que o primeiro
sinal da absurdidade. Ocorre que os cenários se desmoronam.
Levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro
horas de trabalho, refeição, sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e
sábado no mesmo ritmo, essa estrada se sucede facilmente a maior parte do
tempo. Um dia apenas o "porquê" desponta e tudo começa com esse
cansaço tingido de espanto. "Começa", isso é importante. O cansaço
está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o
movimento da consciência. Ele a desperta e desafia a continuação. A
continuação é o retorno inconsciente à mesma trama ou o despertar definitivo.
No extremo do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou
restabelecimento. Em si, o cansaço tem alguma coisa de desanimador. Aqui, eu
tenho de concluir que ele é bom. Pois tudo começa com a consciência e nada
sem ela tem valor. Essas observações não têm nada de original. Mas são
evidentes: por ora isso é suficiente para a oportunidade de um reconhecimento
samário das origens do absurdo. A simples "preocupação" está na
origem de tudo. Da mesma forma, e ao longo de todos os dias de uma vida sem brilho,
o tempo nos carrega. Mas sempre chega um momento em que é preciso carregá-lo.
Vivemos para o futuro: "amanhã", "mais tarde",
"quando você tiver uma situação", "com o tempo você vai
compreender". Essas inconseqüências são admiráveis porque, afinal, se
trata de morrer. Mas chega um dia e o homem verifica ou diz que tem trinta
anos. Afirma assim sua juventude. Mas, nesse mesmo lance, se situa com
relação ao tempo. Ocupa ali seu lugar. Reconhece que está num dado momento de
uma curva que confessa ter de percorrer. Ele pertence ao tempo e, nesse
horror que o agarra, reconhece nele seu pior inimigo. Amanhã, ele queria
tanto amanhã, quando ele próprio deveria ter-se recusado inteiramente a isso.
Essa revolta da carne é o absurdo.[4] Um degrau mais abaixo e em a estranheza: dar-se conta de que o
mundo é "espesso", entrever até que ponto uma pedra é estranha, nos
é irredutível, e com que intensidade a natureza ou uma paisagem pode nos
negar. No fundo de toda beleza jaz alguma coisa de inumano e essas colinas, a
doçura do céu, esses desenhos das árvores, eis que no mesmo instante perdem o
sentido ilusório de que os revestimos, doravante mais longínquos, que um
paraíso perdido. A primitiva hostilidade do mundo através dos milênios se
levanta de novo contra nós. Por um segundo, não a compreendemos mais, porque
durante séculos só compreendemos nela as figuras e os desenhos com que
previamente a representávamos, e porque doravante nos faltam forças para nos
valermos desse artifício. O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo.
Esses cenários mascarados pelo hábito tornam a ser o que são. E se afastam de
nós. Assim como há certas horas em que sob o rosto familiar de uma mulher se
redescobre como uma estranha aquela que se amara há meses ou há anos, talvez
cheguemos até a desejar o que nos torna subitamente tão sós. Mas ainda não é
chegada a hora. Só há uma coisa: essa espessura e essa estranheza do mundo é
o absurdo. Os homens também destilam um tanto do inumano. Em certas horas de
lucidez, o aspecto mecânico de seus gestos, sua pantomima destituída de
sentido faz ficar estúpido tudo aquilo que os rodeia. Um homem fala no
telefone por trás de uma divisória envidraçada; não é ouvido, mas se vê sua
mímica inalcançável: e se pergunta por que ele vive. Esse desconforto diante
da inumanidade do próprio homem, essa queda incalculável ante a imagem do que
nós somos, essa "náusea" como a denomina um autor dos nossos dias, [5] é
também o absurdo. De igual modo o estranho que em determinados momentos vem
ao nosso encontro num espelho, o irmão familiar e, no entanto inquietante que
reencontramos em nossas próprias fotografias, é ainda o absurdo. Daí eu chego finalmente à morte e à sensação que temos dela.
Sobre esse ponto já se disse tudo e é decente evitar o patético. Mas nunca
nos espantaremos suficientemente com o que todo mundo vive como se ninguém o
"soubesse". E que, na realidade, não existe experiência da morte.
Num sentido estrito, só é experimentado o que foi vivido e se tornou
consciente. Com isso, é indiscutível que se pode falar da experiência da
morte dos outros. E um sucedâneo, uma visão do espírito. e jamais ficamos
muito convencidos dela. Essa convenção melancólica não pode ser persuasiva.
Na realidade. o horror provém do lado matemático do acontecimento. Se o tempo
nos assusta, é que ele faz sua demonstração. A solução poderá vir em seguida.
Todos os belos discursos sobre a alma terão aqui, ao menos por algum tempo,
uma prova dos nove de seu oposto. Nesse corpo inerte em que uma bofetada não
se distingue mais, a alma desapareceu. Este lado elementar e definitivo da
aventura torna absurdo o conteúdo do sentimento. Sob a iluminação mortal
desse destino, aparece a inutilidade. Nenhuma moral, nenhum esforço são a
priori justificáveis ante as sangrentas matemáticas que organizam a nossa
condição. Ainda uma vez, tudo isso já foi dito e redito. Limito-me a fazer
aqui uma classificação rápida e a indica; esses temas evidentes. Eles
circulam através de todas as literaturas e todas as filosofias. A conversa de
todos os dias se nutre deles. Não se trata de reinventá-los. Mas é preciso se
certificar dessas evidências para pode; se interrogar, em seguida, sobre a
questão primordial. O que me interessa, faço questão de repetir, não são
tanto as descobertas absurdas. São suas conseqüências Se nos certificamos
desses fatos, o que será preciso concluir, até onde ir para deixar de
pesquisar? Será preciso morrer voluntariamente ou, apesar de tudo, esperar? É
necessário, antes, fazer o mesmo recenseamento rápido no plano da inteligência. O primeiro procedimento do espírito é
distinguir o que é verdadeiro do que é falso. No entanto, desde que o
pensamento reflete sobre ele mesmo o que descobre é, inicialmente, uma
contradição. É inútil esforçar-se para ser convincente a esse respeito.
Durante séculos ninguém tratou o caso com uma demonstração mais clara e mais
elegante que a de Aristóteles: "A conseqüência freqüentemente
ridicularizada dessas opiniões é que elas se destroem por si mesmas. Porque,
afirmando que tudo é verdadeiro, afirmamos a verdade da afirmação oposta,
conseqüentemente, a falsidade da nossa própria tese (pois a afirmação oposta
não admite que ela possa ser verdadeira). E, se dizemos que tudo é falso,
também esta afirmação se torna falsa. Se declararmos que só é falsa a
afirmação oposta à nossa, nos vemos não obstante forçados a admitir um número
infinito de julgamentos verdadeiros ou falsos. Porquanto, quem emite uma afirmação
verdadeira declara ao mesmo tempo em que ela é verdadeira, e assim por diante
até o infinito". Esse círculo vicioso é só o primeiro de uma série em que o
espírito que se inclina sobre si mesmo se perde em um torvelinho vertiginoso.
A própria simplicidade desses paradoxos leva a que sejam irredutíveis. Sejam
quais forem os trocadilhos e as acrobacias da lógica, compreender é, antes de
tudo, unificar. O desejo profundo do próprio espírito em seus procedimentos
mais evoluídos vai ao encontro da sensação inconsciente do homem diante do
universo: ele exige familiaridade, tem fome de clareza. Para um homem,
compreender o mundo é reduzi-lo ao humano, marcá-lo com o seu selo. O
universo do gato não é o universo do formigueiro. O truísmo de que "todo
pensamento é antropomórfico'' não tem outro sentido. Assim também o espírito
que procura compreender a realidade só pode se considerar satisfeito se a
reduz em termos de pensamento. Se o homem reconhecesse que também o universo
pode amar e sofrer, ele estaria reconciliado. Se o pensamento descobrisse nos
espelhos cambiantes fenômenos, relações eternas que pudessem resumi-los e se
resumirem elas próprias num princípio único, se poderia falar de uma
felicidade do espírito de que o mito dos bem-aventurados seria apenas um
ridículo arremedo. Essa nostalgia da unidade; esse apetite de absoluto
ilustra o movimento essencial do drama humano. Mas que essa
nostalgia seja um fato não significa que deva ser imediatamente apaziguada.
Porque, se acaso transpondo o abismo que separa o desejo da conquista,
afirmamos com Parmênides a realidade do Um (seja lá o que ele for), caímos na
ridícula contradição de um espírito que afirma a unidade total e com a
própria afirmação prova a sua diferença e a diversidade que pretendia
resolver. Basta esse novo círculo vicioso para sufocar as nossas esperanças. Uma vez mais temos aí evidências. Repetirei, novamente, que elas
não são interessantes em si mesmas e sim nas conseqüências que se podem tirar
delas. Conheço outra evidência: diz-me que o homem é mortal. No entanto,
podem-se contar os espíritos que tiraram disso as conclusões extremas. É
preciso considerar como uma referência permanente, neste ensaio, a constante
separação entre o que imaginamos saber e o que realmente sabemos, o
consentimento prático e a ignorância simulada que nos levam a viver com
idéias que, se verdadeiramente experimentássemos, deveriam perturbar toda a
nossa vida. Diante dessa contradição inextricável do espírito,
compreenderemos com precisão e sem reserva o divórcio que nos separa de
nossas próprias criações. Enquanto o espírito se caia no mundo imóvel de suas
esperanças, tudo se reflete e se organiza na unidade da sua nostalgia. Mas,
em seu primeiro movimento, o mundo se racha e se desmorona: uma infinidade de
clarões resplandecentes se oferecem ao conhecimento. É preciso desistir, para
sempre, de reconstruir com isso a superfície familiar e tranqüila que nos
daria paz ao coração. Depois de tantos séculos de pesquisa, e de tanta
abdicação entre os pensadores, sabemos bem que isso é verdadeiro para todo o
nosso conhecimento. Excetuando-se os racionalistas por profissão, hoje já não
se tem esperança do verdadeiro conhecimento. Sé fosse necessário escrever a
única história significativa do pensamento humano, seria preciso fazer a dos
arrependimentos e das impossibilidades. De quem e de que, de fato, posso dizer "conheço isso?” Este
coração, em mim, posso experimentá-lo e julgo que ele existe. Este mundo
posso tocá-lo e julgo ainda que ele existe. Pára aí toda a minha ciência, o
resto é construção. Porque, se tento agarrar este eu de que me apodero, se
tento defini-lo e sintetizá-lo, ele não é mais do que uma água que corre
entre meus dedos. Posso desenhar um por um todos os rostos que ele sabe usar,
todos aqueles também que lhe foram dados, essa educação, essa origem, esse
ardor ou esses silêncios, essa grandeza ou essa mesquinhez. Mas não se
adicionam rostos. Até este coração que é o meu continuará sendo sempre, para
mim, indefinível. Entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo
que tento dar a essa segurança, o fosso jamais será preenchido. Serei para
sempre um estranho diante de mim mesmo. Em psicologia, como em lógica, há
verdades mas não há verdade. O "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates
tem tanto valor quanto o "sê virtuoso" dos nossos confessionários.
Revelam uma nostalgia, ao mesmo tempo que uma ignorância. São jogos estéreis
sobre grandes assuntos. São legítimos apenas na medida exata em que são
aproximativos. Eis aí também as árvores e conheço suas rugas, eis a água e
experimento-lhe o sabor. Esses perfumes de relva e estrelas, a noite, certas
tardes em que o coração se descontrai, como eu negaria o mundo de que
experimento o poder e as forças? Contudo, toda a ciência dessa terra não me
dará nada que me possa garantir que este mundo é pára mim. Vocês o descrevem
e me ensinam a classificá-lo. Vocês enumeram suas leis e, na minha sede de
saber, concordo que elas sejam verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e
minha esperança aumenta. Por último, vocês me ensinam que esse universo
prestigioso e colorido se reduz ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao
elétron. Tudo isso é bom e espero que vocês continuem. Mas vocês me falam de
um invisível sistema planetário em que os elétrons gravitam ao redor de um
núcleo. Vocês me explicam esse mundo com uma imagem. Reconheço, então, que
vocês enveredam pela poesia: nunca chegarei ao conhecimento. Tenho tempo para
me indignar com isso? Vocês já mudaram de teoria. Assim, essa ciência que
devia me ensinar tudo se limita à hipótese, essa lucidez se perde na
metáfora, essa certeza se resolve como obra de arte. Para o que é que eu
precisava de tantos esforços? As doces curvas dessas colinas e a mão da tarde
sobre este coração agitado me ensinam muito mais. Compreendo que se posso,
com a ciência, me apoderar dos fenômenos e enumerá-los, não posso da mesma forma
apreender o mundo. Quando tiver seguido com o dedo todo o seu relevo, não
saberei nada, além disso. E vocês me levam a escolher entre uma descrição que
é certa, mas que não me informa nada, e hipóteses que pretendem me ensinar,
mas que não são certas. Estranho diante de mim mesmo e diante desse mundo,
armado de todo o apoio de um pensamento que nega a si mesmo a cada vez que
afirma, qual é essa condição em que só posso ter paz com a recusa de saber e
de viver, em que o desejo da conquista se choca com os muros que desafiam
seus assaltos? Querer é suscitar os paradoxos. Tudo é organizado para que
comece a existir essa paz envenenada que nos dão a negligência, o sono do
coração ou as renúncias mortais. Também a inteligência, portanto; me diz à sua maneira que este
mundo é absurdo. Seu oposto, que é a razão cega, inutilmente afirmou que
estava tudo claro: eu esperava provas e desejava que ela tivesse razão. Mas,
apesar de tantos séculos pretensiosos, repletos de tantos homens eloqüentes e
persuasivos, sei que isso é falso. Pelo menos nesse aspecto, não existe
felicidade se eu não posso saber. Essa razão universal — moral ou prática —,
esse determinismo, essas categorias que explicam tudo têm com que fazer rir o
homem honesto. Não têm nada a ver com o espírito. Negam sua verdade profunda,
que é estar acorrentado. Nesse universo indecifrável e limitado o destino do
homem, daí em diante, adquire seu sentido. Uma multidão de irracionais se
levantou e o cerca até o último objetivo. Em sua perspicácia reavida e agora
harmonizada, o sentimento do absurdo se aclara e se precisa. Eu dizia que o
mundo é absurdo: estava andando muito depressa. Esse mundo em si mesmo não é
razoável: é tudo o que se pode dizer a respeito. Mas o que é absurdo é o
confronto entre esse irracional e esse desejo apaixonado de clareza cujo
apelo ressoa no mais profundo do homem. O absurdo depende tanto do homem
quanto do mundo. É, no momento, o único laço entre os dois. Cola-os um ao
outro como só o ódio pode fundir os seres. É tudo o que posso discernir nesse
universo sem limites em que prossegue a minha aventura. Paremos aqui. Se
considerar verdadeira essa absurdidade que regula minhas relações com a vida,
se me compenetro desse sentimento que se apossa de mim ante os espetáculos do
mundo, desse descortino que me impõe a busca de uma ciência, devo tudo
sacrificar a estas certezas e encará-las de frente para poder mantê-las. E
devo, sobretudo, pautar de acordo com elas o meu comportamento, levando-as
adiante em todas as suas conseqüências. Estou falando de honestidade. Mas
quero saber, doravante, se o pensamento pode viver em tais desertos. Já sei
que o pensamento pelo menos entrou nesses desertos. Aí encontrou seu pão. Aí
compreendeu que até então se alimentava de fantasmas. E serviu de pretexto a
alguns dos temas mais insistentes da reflexão humana. A partir do momento em
que é reconhecida, a absurdidade é uma paixão, a mais dilacerante de todas.
Mas saber se alguém pode viver com suas paixões, se lhes pode aceitar a mais
profunda lei, que é a de queimar o coração que ao mesmo tempo elas exaltam,
eis aí todo o problema. No entanto, não é ainda o que apresentaremos. Ele
está no centro dessa experiência. Chegará a hora de voltar a ela.
Reconheçamos, antes de tudo, esses temas e esses impulsos nascidos do
deserto. Bastará enumerá-los. Esses também, no presente, são conhecidos por
todos. Sempre houve homens para defender os direitos do irracional. A
tradição do que se pode chamar de pensamento humilhado jamais deixou de estar
viva. A crítica do racionalismo já foi feita tantas vezes que parece não se
ter mais como fazer. No entanto, a nossa época vê renascer esses sistemas
paradoxais que se aplicam em atravancar a razão, como se ela de fato houvesse
sempre andado para frente. Mas isso não é tanto uma prova de eficiência da
razão quanto da vitalidade das suas esperanças. No plano da história, essa
constância de duas atitudes ilustra a paixão essencial do homem dilacerado
entre seu apelo para a unidade e a visão clara que pode ter dos muros que a
encerram. Mas talvez em nenhuma outra época, como na nossa, foi mais vivo o
ataque contra a razão. Desde o grande grito de Zaratustra — "Por acaso,
é a mais velha nobreza do mundo. Eu a reintegrei em todas as coisas quando
disse que não queria nenhuma vontade eterna acima dela" —, desde a
doença mortal de Kierkegaard — "esse mal que confina com a morte sem
mais nada depois dela" —, os temas significativos e torturantes do pensamento
absurdo se sucederam. Ou, pelo menos, e essa minúcia é fundamental, aqueles do
pensamento irracional e religioso. De Jaspers a Heidegger, de Kierkegaard a
Chestov, fenomenólogos à Scheler, no plano lógico e no plano moral, toda uma
família de espíritos, aparentados por sua nostalgia, opostos em seus métodos
ou metas, se obstinaram em obstruir a estrada real da razão e em reencontrar
os caminhos certos da verdade. Pressuponho, a essa altura, esses pensamentos
conhecidos e vividos. Sejam quais forem ou tenham sido as suas ambições,
todos partiram desse universo indizível em que reinam a contradição, a
antinomia, a angústia ou a impotência. E o que lhes é comum são justamente os
temas que estivemos revelando até agora. Também para eles, é preciso dizer
claramente que o mais importante são as conclusões a que se pode chegar com
essas descobertas. A tal ponto, que será necessário examiná-las
separadamente. No momento, porém, se trata apenas de suas descobertas e de
suas experiências iniciais. Tratasse tão-somente de verificar a sua
concordância. Se seria demasiada presunção examinar as suas filosofias, é
possível e, em todo caso, suficiente fazer sentir o clima que lhes é comum. Heidegger considera friamente a condição humana e anuncia que
esta existência é humilhada. A única realidade é a "inquietação" em
toda a escala dos seres. Para o homem perdido no mundo e seus divertimentos,
essa inquietação é um medo breve e fugidio. Mas, quando esse medo toma
consciência dele mesmo, se transforma em angústia, o clima permanente do
homem lúcido "em que a existência se redescobre". Esse professor de
filosofia escreve sem nenhum tremor e na linguagem mais abstrata do mundo que
"o caráter finito e limitado da existência humana é mais primordial que
o próprio homem". Interessa-se por Kant, mas é para reconhecer o caráter
acanhado de sua "Razão pura". É para concluir, nos termos das suas
análises; que "o mundo nada mais consegue oferecer ao homem
angustiado". Essa inquietação a tal ponto lhe parece, na verdade, ultrapassar
as categorias do raciocínio, que ele pensa unicamente nela e não fala de outra
coisa. Enumera suas faces: de tédio, quando o homem comum procura nivelá-la
com ele mesmo, e mitigá-la; de terror, quando o espírito contempla a morte.
Ele também não separa a consciência do absurdo. A consciência da morte é o
apelo da inquietação e "a existência recorre então a um apelo próprio
por intermédio da consciência". É a voz da própria angústia e convoca a
existência "a retornar ela própria de sua perda no Se anônimo". Também
para ele não se deve dormir e é preciso velar até a consumação. Ele se segura
nesse mundo absurdo, denuncia-lhe o caráter perecível. Procura seu caminho no
meio dos escombros. Jaspers não espera mais nada de toda ontologia, pois pretende que
nós tenhamos perdido a "ingenuidade". Sabe que não podemos chegar a
nada que transcenda o jogo mortal das aparências. Sabe que o fim do espírito
é o fracasso. Demora-se ao longo das aventuras espirituais que a história nos
oferece e revela impiedosamente a falha de cada sistema, à ilusão que salvou
tudo, a pregação que não escondeu nada. Nesse mundo devastado, onde a
impossibilidade de conhecer é demonstrada, onde o nada parece a única
realidade e o desespero sem saída a única atitude, ele tenta reencontrar o
fio de Ariadne que conduz aos segredos divinos. Chestov, por sua vez, em meio a uma obra de admirável monotonia,
agarrado incessantemente a suas mesmas verdades demonstram sem trégua que o
sistema mais compacto, o racionalismo mais universal acaba sempre por se
escorar no irracional do pensamento humano. Não lhe escapa nenhuma das
evidências irônicas ou das ridículas contradições que depreciam a razão. Só
uma coisa lhe interessa e é a exceção, seja a da história do coração ou do
espírito. Através das experiências dostoievskianas do condenado à morte, das
aventuras furiosas do espírito nietzschiano, das imprecações de Hamlet ou da
amarga aristocracia de um Ibsen, ele descobre, ilumina e engrandece a revolta
humana contra o irremediável. Recusa suas razões à razão e só começa a
orientar seus passos com alguma decisão no meio desse deserto desbotado em
que todas as certezas se tornaram pedras. Talvez o mais interessante de todos, Kierkegaard, pelo menos em
uma parte de sua existência, fez mais do que descobrir o absurdo: ele o
viveu. O homem que escreve "O mais certo dos mutismos não é o de calar,
mas o de falar" se convence, logo de início, que nenhuma verdade é
absoluta e não pode tornar satisfatória uma existência que é impossível em
si. Don Juan de conhecimento, ele multiplica os pseudônimos e as
contradições, escreve os Discursos edificantes ao mesmo tempo em que esse
manual de espiritualismo cínico que é O diário do sedutor. Recusam as
consolações, a moral, os princípios de todo repouso. E nada faz para abrandar
a dor desse espinho que sente no coração. Ao contrário, reanima-o e, na
alegria desesperada de um crucificado contente em sê-lo, constrói peça por
peça — recusa, lucidez, comédia — uma categoria do demoníaco. Esse rosto a um
tempo terno e escarnecedor, essas piruetas seguidas de um grito que vem do
fundo da alma, é o próprio espírito absurdo às voltas com uma realidade que o
ultrapassa. E a aventura espiritual que leva Kierkegaard a seus queridos
escândalos também começa no caos de uma experiência destituída de seus
cenários e devolvida à sua incoerência primordial. Em um plano bem
diferente, o do método, por seus próprios exageros, Husserl e os
fenomenólogos reabilitam a diversidade do mundo e negam o poder transcendente
da razão. O universo espiritual, com eles, se enriquece de maneira
incalculável. A pétala de rosa, o marco da quilometragem ou a mão humana têm
tanta importância quanto o amor, o desejo ou as leis da gravitação. Pensar,
então, deixa de se unificar, tornar familiar a aparência por trás da face de
um grande princípio. Pensar é reaprender a ver e a estar atento, é dirigir
sua consciência, é dar a cada idéia e a cada imagem, à maneira de Proust, um
lugar privilegiado. Paradoxalmente, tudo é privilegiado. O que justifica o
pensamento é sua extrema consciência. Por ser mais positivo que nos casos de
Kierkegaard ou de Chestov, o procedimento husserliano em sua origem nega, não
obstante, o método clássico da razão, engana a esperança, abre ao coração e
às intuições toda uma proliferação de fenômenos cuja riqueza tem algo de
inumano. Esses caminhos levam a todas as ciências ou a nenhuma, o que
significa que o meio, aqui, é mais importante do que o fim. Trata-se apenas
"de uma atitude para conhecer" e não de uma consolação. Pelos menos
em sua origem, lembremos. Como não sentir o parentesco profundo desses espíritos? Como não
ver que eles se reúnem em torno de um lugar privilegiado e amargo em que a
esperança não tem vez? Quero que tudo me seja explicado, ou nada. E a razão é
impotente diante do grito do coração. O espírito incitado por essa exigência
procura e só encontra contradições ou despropósitos. O que não compreendo não
tem razão. O mundo está todo ocupado por esses irracionais. Ele próprio, cuja
significação não compreendo, não passa de um imenso irracional. Poder dizer
uma só vez: "isso é claro", e tudo estaria salvo. Mas esses homens
insistentemente proclamam que não está nada claro, que tudo é caos, que o
homem só conserva sua percepção e conhecimento preciso dos muros que o
rodeiam. Todas essas experiências se entendem e se desentendem de novo. O
espírito que atinge os confins deve trazer um julgamento e escolher suas
conclusões. Aí se colocam o suicídio e a resposta. Mas eu quero inverter a
ordem da pesquisa e partir da aventura inteligente para voltar aos gestos
cotidianos. As experiências que acabamos de evocar nasceram no deserto que
não se deve deixar. É preciso saber, pelo menos, até onde elas puderam
chegar. Nesse ponto de seu esforço, o homem se vê diante do irracional. Sente
dentro de si o desejo de felicidade e de razão. O absurdo nasce desse confronto
entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo. E isso que não se
deve esquecer. É a isso que é preciso se agarrar, pois toda a conseqüência de
uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia humana, o absurdo que
surge do diálogo entre eles: eis os três personagens do drama que deve, necessariamente,
acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz. O sentimento absurdo não é a mesma coisa que a noção do absurdo.
Ele lhe serve de base e pronto, é tudo. Também não se resume a isso, a não
ser no rápido instante em que traz consigo sua decisão sobre o universo. Em
seguida, fica lhe faltando ir mais longe. Ele está vivo, o que significa que
deve morrer ou repercutir mais adiante. Da mesma forma os temas que reunimos
aqui. Mas o que ainda me interessa neles não são em hipótese nenhuma obras ou
espíritos cuja crítica requereria um outro meio e um outro lugar, mas a
descoberta do que há de comum em suas conclusões. Talvez jamais os espíritos
tenham sido tão diferentes. No entanto, reconhecemos como idênticas às
paisagens espirituais em que eles se movem. Assim também através de ciências
tão distintas o grito que põe termo a seus itinerários ressoa do mesmo modo.
Sente-se claramente que há uma atmosfera comum aos espíritos que acabamos de
lembrar. Dizer que é uma atmosfera assassina não é mais do que brincar com as
palavras. Viver sob esse céu sufocante exige que ou se saia disso ou se
continue. Trata-se de saber como, no primeiro caso, se sai, e por que, no
segundo, se fica. Defino assim o problema do suicídio e o interesse que se
pode aplicar às conclusões da filosofia existencial. Quero, antes de tudo, me desviar um pouco do caminho certo. Até o
momento, é a partir do lado de fora que temos podido circunscrever o absurdo.
Pode-se, contudo, perguntar o que essa noção contém de claro e tentar
descobrir pela análise direta, de um lado, a sua significação, e do outro as
conseqüências que acarreta. Se acusar um inocente de um crime monstruoso, se afirmo a um
homem justo que ele cobiçou sua própria irmã, ele me responderá que é
absurdo: É uma indignação que tem seu lado cômico. Mas também tem sua razão
profunda. O homem virtuoso ilustra com essa réplica a antinomia definitiva
que existe entre o ato que lhe atribuo e os princípios de toda a sua vida.
"É absurdo" quer dizer "é impossível", mas também "é
contraditório". Se vir um homem atacar com arma branca um agrupamento de
metralhadoras, considerarei que seu ato é absurdo. Mas este só o é em virtude
da desproporção que existe entre seu intento e a realidade que o espera, ou
da contradição que posso perceber entre suas forças reais e o objetivo que
tem em vista. De igual modo nós acharemos que um veredicto é absurdo
confrontando-o com o veredicto que os fatos aparentemente reclamavam. Da
mesma maneira, ainda, uma demonstração pelo absurdo se processa comparando-se
as conseqüências desse raciocínio com a realidade lógica que se quer
instaurar. Em todos esses casos, do mais simples ao mais complexo, a
absurdidade será tanto maior quanto mais crescer o afastamento entre os
termos da minha comparação. Há casamentos absurdos, desafios, rancores,
silêncios, guerras e até acordos de paz. Para cada um deles, a absurdidade
nasce de uma comparação. Tenho base, portanto, para dizer que o sentimento da
absurdidade não nasce do simples exame de um fato ou impressão mas que ele
brota da comparação entre um estado de fato e uma certa realidade, entre uma
ação e o mundo que a ultrapassa. O absurdo é essencialmente um divórcio. Não
está nem num nem noutro dos elementos comparados: nasce de sua confrontação. No plano da inteligência, posso, pois afirmar que o absurdo não
está no homem (se semelhante metáfora pudesse ter um sentido), nem no mundo,
mas em sua presença comum. É, nesse instante, o único laço que os une. Se
pretender me limitar às evidências disso, sei o que o homem quer, sei o que o
mundo lhe oferece e agora posso dizer que sei ainda o que os une. Não tenho
necessidade de cavar mais adiante. Uma única certeza é suficiente àquele que
procura. Trata-se apenas de lhe extrair as conseqüências todas. A conseqüência imediata é ao mesmo tempo uma regra de método. A
singular trindade que desse modo se divulga não tem nada de uma América de
repente descoberta. Tem, no entanto, de comum com os dados da experiência,
isso de ser a um tempo infinitamente simples e infinitamente complicado. A
primeira de suas características, a esse respeito, é que ela não pode dividir-se.
Destruir um de seus termos é destruí-la de ponta a ponta. Não pode haver
absurdo fora de um espírito humano. Assim, como todas as coisas, o absurdo
termina com a morte. Mas também não pode haver absurdo fora deste mundo. E é
com esse critério elementar que eu julgo que a noção de absurdo é essencial e
que ela pode figurar como a primeira das minhas verdades. A regra de método
evocada antes aparece agora. Se julgar que uma coisa é verdadeira, devo
preservá-la. Se me disponho a trazer a um problema a sua solução, não me é
conveniente, pelo menos, escamotear com essa própria solução um dos termos do
problema. Para mim, o único dado é o absurdo. O problema é saber como sair
disso e se o suicida deve se subtrair desse absurdo. A primeira — e, no
fundo, a única — condição das minhas pesquisas é a de preservar aquilo mesmo
que me esmaga, e de respeitar, conseqüentemente, o que julgo haver ali de
essencial. Acabo de defini-lo como uma confrontação e uma luta sem descanso. E enfrentando até o fim essa lógica absurda, tenho de reconhecer
que essa luta pressupõe a total ausência de esperança (que não tem nada a ver
com o desespero), a recusa contínua (que não se deve confundir com a
renúncia) e a insatisfação consciente (que não acertaríamos em associar à
inquietude juvenil). Tudo o que destrói, escamoteia ou ludibria essas exigências
(e, em primeiro lugar, o consentimento que destrói o divórcio) arruína o
absurdo e desvaloriza a atitude que então se pode propor. O absurdo só tem
sentido na medida em que não se consente nisso. Existe um fato evidente que parece inteiramente moral: é que um
homem é sempre a presa de suas verdades. Uma vez reconhecidas, ele não
saberia se desligar delas. E é preciso pagar um tanto por isso. Um homem que
tomou consciência do absurdo se vê atado a ele para sempre. Um homem sem
esperança e consciente de sê-lo não pertence mais ao futuro. Isso está na
ordem. Mas está igualmente na ordem que ele se esforce por escapar ao
universo de que é criador. Tudo o que vem acima só tem sentido precisamente
com a consideração desse paradoxo. Nada pode ser mais instrutivo, sob esse
aspecto, do que examinar agora a maneira pela qual os homens que
identificaram o clima do absurdo — a partir de uma crítica do racionalismo —
levaram adiante as suas conseqüências. Ora, para me ocupar, com esse fim, das filosofias existenciais,
vejo que todas — sem exceção — me prepõem a fuga. Por um raciocínio singular,
que parte do absurdo sobre os escombros da razão, em um universo fechado e
limitado ao humano, eles divinizam aquilo que os esmaga e encontram uma razão
de esperar naquilo que os desguarnece. Essa esperança forçada é, em todos
eles, de caráter religioso. Ela merece que a examinemos. Só analisarei aqui, e a título de exemplo, alguns temas
peculiares de Chestov e de Kierkegaard. Mas Jaspers vai nos fornecer, levado
até a caricatura, um exemplo típico dessa atitude. O resto se tornará mais
claro. Acabamos deixando-o impotente de realizar a transcendência, incapaz de
sondar a profundidade da experiência e consciente desse universo transtornado
pelo fracasso. Irá ele progredir ou pelo menos chegar às conclusões desse
fracasso? Não traz nada de novo. Não encontrou na experiência, nada além da
confissão de sua impotência e nenhum pretexto para inferir qualquer princípio
satisfatório. No entanto, sem justificativa, como ele próprio o diz, afirma
de uma só vez e ao mesmo tempo o transcendente, o ser da experiência e o
sentido supra-humano da vida, ao escrever: "O fracasso, além de toda
explicação e de toda interpretação possível, não nos mostra o nada, mas o ser
da transcendência". Esse ser que de repente, e por um ato cego da
confiança humana, explica tudo, e o define como "a unidade inconcebível
entre o geral e o particular". Assim o absurdo se torna deus (no mais
amplo sentido da palavra) e essa impotência de compreender o ser que ilumina
tudo. Nada, nesse raciocínio, nos leva à lógica. Posso chamá-lo um salto. E,
paradoxalmente, compreende-se a insistência, a paciência infinita de Jaspers
para fazer irrealizável a experiência do transcendente. Pois, quanto mais fugidia
é essa avaliação, tanto mais vã se demonstra essa definição e mais lhe é real
essa transcendência, pois a paixão de que ele se vale para afirmá-la é
justamente proporcional à separação existente entre seu poder de explicação e
a irracionalidade do mundo ou da experiência. Fica assim parecendo que quanto
mais obstinadamente Jaspers se ocupa de destruir os preconceitos da razão,
mais radical será a maneira como explicará o mundo. Esse apóstolo do
pensamento humilhado vai encontrar no próprio extremo da humilhação o meio de
regenerar o ser em toda a sua profundidade. O pensamento místico nos familiarizou com esses preconceitos. São
tão legítima quanto, afinal, qualquer outra atitude de espírito. Mas, no
momento, tenho de agir como se levasse mais a sério determinado problema. Sem
pressupor um valor geral dessa atitude ou do seu potencial de ensinamento,
quero apenas considerar se ela responde às condições que me propus e se ela é
digna do conflito que me interessa. Retorno, pois, a Chestov. Um estudioso
menciona uma de suas passagens que merece interesse: "A única saída
verdadeira", diz ele, "está precisamente ali onde não há saída
conforme o julgamento humano. Do contrário, para que teríamos nós necessidade
de Deus? As pessoas só recorrem a Deus para obter o impossível. Para o
possível, os homens se bastam". Se há uma filosofia chestoviana, posso
dizer perfeitamente que acabei de resumi-la por inteiro. Porque quando, lá
pelo fim de suas análises apaixonadas, Chestov descobre a absurdidade
fundamental de toda a existência, ele não diz de modo algum "eis aqui o
absurdo", porém "eis aqui Deus: é a ele que precisamos louvar,
mesmo se não corresponde a nenhuma das nossas categorias racionais".
Para que não seja possível a confusão, o filósofo russo insinua até que esse
Deus talvez seja odiento e detestável, incompreensível e contraditório,
mas, pela própria dimensão de ter entre todos os rostos o mais hediondo, ele
afirma ainda mais seu poderio. Sua grandeza é a sua inconseqüência. Sua prova,
sua inumanidade. É preciso saltar para ele e, através desse deslocamento,
libertar-se das ilusões racionais. Desse modo, para Chestov, a aceitação do
absurdo é concomitante com o próprio absurdo. Verificá-lo é aceitá-lo, e todo
o esforço lógico de seu pensamento é o de difundi-lo para fazer saltar, no
mesmo lance, a esperança que traz consigo. Tenho toda a minha vida para
fazê-lo. Sei que o racionalista acha irritante a atitude chestoviana. Mas
também sinto que Chestov tem as suas razões contra o racionalista e só
pretendo saber se ele permanece fiel às exigências do absurdo. Ora, se se admite que o absurdo é o contrário da esperança, vê-se
que o pensamento existencial, para Chestov, pressupõe o absurdo, mas só o
demonstra para dissipá-lo. Essa sutileza de pensamento é um número patético
de saltimbanco. Quando Chestov, além disso, opõe o seu absurdo à moral
vigente e à razão, ele o chama verdade e redenção. 1-fá, pois, na base dessa
definição do absurdo uma aprovação que Chestov lhe oferece. Se se reconhece
que todo o poder dessa noção consiste na maneira como abalam as nossas
esperanças elementares, se se sente que o absurdo exige, para permanecer, que
de modo algum se consinta nele, então se vê claramente que ele perdeu seu
verdadeiro rosto, seu caráter humano e relativo, para entrar em uma eternidade
ao mesmo tempo incompreensível e tranqüilizadora. Se há absurdo, é no
universo do homem. Desde o momento em que sua noção se transforma em trampolim
da eternidade, ela já não está ligada à lucidez humana. O absurdo já não é
essa evidência que o homem depara sem nela consentir. A luta está ludibriada.
O homem integra o absurdo e nessa comunhão faz desaparecer-lhe o caráter
essencial, que é oposição, dilaceração e divórcio. Chestov, que cita muito à
vontade a palavra de Hamlet The time is out of joint, [6]
escreve-a assim como uma espécie de esperança feroz que se permite
atribuir-lhe muito particularmente. Porque não é assim que Hamlet a pronuncia
ou que Shakespeare a escreve. A embriaguez do irracional e a vocação do
êxtase desviam do absurdo um espírito sagaz. Para Chestov, a razão é vã, mas
existe algo mais além da razão. Para um espírito absurdo, a razão é vã e nada
existe além da razão. Esse salto pode, pelo menos, nos esclarecer um pouco mais sobre a
verdadeira natureza do absurdo. Sabemos que ele só vale num equilíbrio, que
ele está antes de tudo na comparação e jamais nos termos dessa comparação.
Mas Chestov faz justamente assentar todo o peso em um dos termos e destrói o
equilíbrio. Nossa vontade de compreender, nossa nostalgia de absoluto só são
explicáveis justamente na situação em que podemos compreender e explicar
muitas coisas. É inútil negar completamente a razão. Ela tem sua ordem, na
qual é eficaz. E é exatamente a da experiência humana. Eis aí por que estamos
querendo tornar tudo claro. Se não o conseguimos, se o absurdo desponta nesse
instante, é exatamente à procura dessa razão eficaz, mas limitada e do
irracional que está sempre renascendo. Ora, quando Chestov se irrita contra
uma proposição hegeliana do gênero "os movimentos do sistema solar se
efetuam em conformidade com leis imutáveis e essas leis são a razão", e
quando se arma de toda a sua paixão para desarrumar o racionalismo
espinosista, conclui precisamente pela vaidade de toda razão. Donde, em um
rodeio natural e ilegítimo, pela preeminência do irracional.[7] Mas a
passagem não é evidente. Porque aqui podem intervir a noção de limite e a de
plano. As leis da natureza podem ser válidas até um certo limite, após o qual
elas se voltam contra si mesmas para fazer nascer o absurdo. Ou, ainda, elas
podem se legitimar no plano da descrição sem por isso serem verdadeiras no da
explicação. Tudo, então, é sacrificado ao irracional e, uma vez escamoteada a
exigência de clareza, o absurdo desaparece com um dos termos da comparação. O
homem absurdo, ao contrário, não processa esse nivelamento. Reconhece a luta,
não despreza de modo algum a razão e admite o irracional. Desse modo, ele
encobre do olhar todos os dados da experiência e não está nada disposto a
saltar antes de saber. Ele sabe, somente, que nessa consciência atenta não há
mais lugar para a esperança. O que é sensível em Lev Chestov o será talvez ainda mais em
Kierkegaard. Certamente, não é fácil assimilar num autor tão esquivo a
enunciados claros. Mas, apesar dos escritos aparentemente opostos, por cima
dos pseudônimos, dos jogos e dos sorrisos, sente-se aparecer em toda a
extensão dessa obra como que o pressentimento (ao mesmo tempo em que a
assimilação) de uma verdade que acaba explodindo nos últimos trabalhos:
também ele, Kierkegaard, dá o salto. O cristianismo com que tanto se
assustava a sua infância reaparece finalmente para sua face mais dura. Também
para ele a antinomia e o paradoxo se tornam critérios do religioso. Assim,
aquilo mesmo que fazia desesperar do sentido e da profundidade desta vida lhe
dá agora sua verdade e sua clareza. O cristianismo é o escândalo e o que
Kierkegaard procura é simplesmente o terceiro sacrifício exigido por Inácio
de Loiola, aquele com que Deus mais se rejubila: "o sacrifício do
Intelecto".[8] Esse
efeito do "salto" é curioso, mas não deve mais nos surpreender. Ele
faz do absurdo o critério do outro mundo, quando é somente um resíduo da
experiência deste mundo. "Em seu fracasso", diz Kierkegaard,
"o crente encontra seu triunfo". Eu não tenho de me questionar a que comovente predição se liga
essa atitude. Só devo me questionar se o espetáculo do absurdo e seu caráter
próprio a legitimam. Sob esse aspecto, sei que não acontece. Apreciando de
novo o conteúdo do absurdo compreende-se melhor o método que inspira
Kierkegaard. Entre o irracional do mundo e a nostalgia revoltada do absurdo,
ele não mantém o equilíbrio. Não respeita a relação que, para sermos claros,
constitui o sentimento da absurdidade. Certo de não poder escapar ao
irracional, pode ao menos se salvar dessa nostalgia desesperada que lhe
parece estéril e sem perspectiva. Mas se ele pode ter razão nesse aspecto de
seu julgamento, não saberia ser a mesma coisa em sua negação. Substitui-se
seu grito de revolta por uma adesão furiosa, ei-lo obrigado a ignoram o
absurdo que até aqui o iluminava e a divinizar a única certeza que tem a
partir de agora: o irracional. O importante, dizia o abade Galiani à Sra.
d'Épinay, não é curar, mas viver com os seus males. Kierkegaard quer curar.
Curar é o seu voto enfurecido, o que lhe percorre todo o diário. Todo o
esforço de sua inteligência é para escapar à antinomia da condição humana.
Esforço tanto mais desesperado quanto ele lhe percebe a inutilidade por
clarões, nos momentos, por exemplo, em que fala de si mesmo, como se nem a
crença em Deus nem a piedade fossem capazes de lhe dar paz. É assim que, por
um atormentado subterfúgio, ele dá a face ao irracional, e a seu Deus os
atributos do absurdo, o que é injusto, inconseqüente e incompreensível.
Apenas a inteligência, nele, tenta abafar a reivindicação profunda do coração
humano. Já que nada pode ser provado, tudo pode se provado. É o próprio Kierkegaard que nos revela o caminho percorrido. Não
estou querendo insinuar nada a respeito, mas como não ler em suas obras os
sinais de uma mutilação quase voluntária da alma diante da mutilação
consentida sobre o absurdo? É o leitmotiv do Diário. "O que está me
faltando é a besta, visto que ela, também ela, faz parte da humanidade destinada...
Mas dai-me logo um corpo”. E mais adiante: "Oh! Principalmente na minha
adolescência, o que eu não teria dado para ser homem, ainda que seis meses...
o que me falta, no fundo, é um corpo e as condições físicas da existência."
Em outro lugar, é o mesmo homem, no entanto, que faz seu o grande grito de
esperança que atravessou tantos séculos e entusiasmou tantos corações, salvo
0 do homem absurdo: "Mas, para o cristão, a morte não é de maneira
nenhuma o fim de tudo e implica infinitamente mais esperança do que pode para
nós conter a vida, mesmo transbordante de saúde e força." A reconciliação
pelo escândalo é ainda reconciliação. Ela talvez permita, como se vê,
arrancar a esperança de seu contrário que é a morte, mas ainda que a simpatia
nos deixe inclinados para essa atitude, é preciso dizer, contudo, que o
descomedimento não justifica nada. Diz-se, então, que isso excede a medida
humana, sendo preciso, portanto, que seja sobre-humano. Mas esse
"portanto" é demasiado. Não há nada aqui de certeza lógica. Nem há
também probabilidade experimental. Tudo o que posso dizer é que de fato isso
excede a minha medida. Se não extraio daí uma negação, pelo menos não quero
construir nada em cima do incompreensível. Quero saber se posso viver com o
que sei e com isso apenas. Ainda me é dito que a inteligência, nesse caso,
deve sacrificar seu orgulho e a razão deve se inclinar. Mas se reconheço os
limites da razão, não chego a ponto de negá-la, reconhecendo seus poderes
relativos. Quero somente me manter nesse caminho médio em que a inteligência
pode permanecer clara. Tem-se nisso o seu orgulho, não vejo razão suficiente
para renunciar a ele. Nada mais profundo, por exemplo, que a visão de
Kierkegaard segundo a qual o desespero não é um fato, mas um estado: o próprio
estado do pecado. Pois o pecado é que afasta de Deus. O absurdo, que é o
estado metafísico do homem consciente, não conduz a Deus.[9]
Talvez essa noção se esclareça se eu arriscar esta enormidade: o absurdo é o
pecado sem Deus. Trata-se de viver nesse estado de absurdo. Sei sobre o que
assenta, esse espírito e esse mundo escorados um contra o outro sem poder se
abraçar. Indago o estilo de vida desse estado e o que me é proposto lhe omite
o fundamento, nega um dos termos da oposição dolorosa, me obriga a uma
demissão. Pergunto o que acarreta a condição que reconheço como sendo minha,
sei que ela compreende obscuridade e ignorância, mas me garantem que essa
ignorância explica tudo e que essa noite é a minha luz. Mas não se reponde
aqui à minha intenção e esse lirismo delirante não pode me esconder o paradoxo.
Kierkegaard pode gritar, advertir: "Se o homem não tinha uma consciência
eterna, se no fundo de todas as coisas ele só tinha um poder selvagem e
borbulhante produzindo todas as coisas, o grande e o fútil, no turbilhão de
obscuras paixões, se o vazio sem fundo que nada pode preencher se escondia
sob todas as coisas, que seria, pois a vida senão o desespero?" Esse
grito não tem como parar o homem absurdo. Procurar o que é verdadeiro não é
procurar o que é desejável. "Que seria, pois a vida?" E preciso,
como o burro, nutrir-se das rosas da ilusão. Antes de se resignar à mentira,
o espírito absurdo prefere adotar sem temor a resposta de Kierkegaard:
"o desespero". Bem pesadas as coisas, uma alma decidida sempre
saberá se sair bem. Eu tomo a liberdade de chamar agora de suicídio filosófico a
atitude existencial. Mas isso não implica um julgamento. É uma maneira cômoda
de designar o movimento pelo qual um pensamento se nega a si mesmo e tende a
se ultrapassar naquilo que constitui sua negação. Para os existenciais, a
negação é seu Deus. Exatamente: esse deus só se sustenta com a negação da
razão humana.[10] Mas,
como os suicidas, os deuses mudam junto com os homens. Há diversas maneiras
de saltar, mas o essencial é saltar. Essas negações redentoras, essas
contradições finais que negam o obstáculo ainda não vencido, podem nascer
tanto (é o paradoxo o alvo deste raciocínio) de uma inspiração religiosa como
da ordem racional. Elas aspiram sempre ao eterno, é apenas nisso que dão o
salto. O raciocínio que este ensaio vem pretendendo é preciso dizê-lo
uma vez mais — deixa completamente de lado a atitude espiritual mais
propalada em nosso século esclarecido: a que se apóia sobre o princípio de
que tudo é razão e que tem em vista dar uma explicação do mundo. É coerente
apresentar um panorama bastante claro, quando se admite que ele deve ser
claro. Isso é até legítimo, mas não interessa ao raciocínio que pretendemos
aqui. Sua meta é, realmente, esclarecer o procedimento do espírito quando,
partindo de uma filosofia da não-significação do mundo, acaba por lhe achar
um sentido e uma profundidade. O mais patético desses procedimentos é de
caráter religioso e se exemplifica com o tema do irracional. Mas o mais
paradoxal e mais significativo é evidentemente o que dá suas razões e suas
réplicas a um mundo que, inicialmente, imaginava sem princípio e direção. De
qualquer modo, não saberíamos chegar às conseqüências que nos interessam sem
oferecer uma amostra dessa nova aquisição do espírito de nostalgia. Examinarei apenas o tema da "intenção", que virou moda
com Husserl e os fenomenólogos. Já o mencionamos aqui. Originariamente, o
método husserliano nega o procedimento clássico da razão. Vamos repetir.
Pensar não é unificar, tornar familiar a aparência sob a fisionomia de um
grande princípio. Pensar é reaprender a ver, dirigir a consciência, fazer de
cada imagem um lugar privilegiado. Em outras palavras, a fenomenologia se
recusa a explicar o mundo: quer apenas ser uma descrição do vivido. Ela se
encontra com o pensamento absurdo em sua afirmação inicial de que não existe
a verdade, mas somente verdades. Desde o vento da tarde até essa mão sobre o
meu ombro, cada coisa tem a sua verdade. É a consciência que a aclara, pela
atenção que lhe presta. A consciência não forma o objeto de seu conhecimento,
ela somente o fixa, ela é o ato de atenção e, para retomar uma imagem
bergsoniana, se assemelha ao aparelho de projeção que se fixa subitamente
sobre uma imagem. A diferença é que não há cenário, mas uma ilustração
sucessiva e inconseqüente. Nessa lanterna mágica, todas as imagens são privilegiadas.
A consciência mantém sob suspeita, na experiência, os objetos de sua atenção.
Graças ao seu milagre, ela os isola. Eles se vêem desde então fora de todos
os julgamentos. É essa "intenção" que caracteriza a consciência.
Mas a palavra não envolve nenhuma idéia de finalidade. É usada no sentido de
"direção": só tem valor topográfico. Á primeira vista, fica parecendo que nada disso contraria o
espírito absurdo. Essa aparente modéstia do pensamento que se limita a
descrever e que se recusa a explicar, essa disciplina voluntária de que
procede, paradoxalmente, o enriquecimento profundo da experiência e o
renascimento do mundo em sua prolixidade, eis que temos aí procedimentos
absurdos. Pelo menos à primeira vista. Pois os métodos de pensamento, neste
caso como em outros, se revestem sempre de dois aspectos, um psicológico e o
outro metafísico.[11] Por
isso eles escondem duas verdades. Se o tema da intencionalidade só pretende
ilustrar uma atitude psicológica pela qual o real seria esgotado em vez de
ser explicado, nada o separa, de fato, do espírito absurdo. Ele se dispõe a
arrolar o que não pode transcender. Afirma apenas que, na ausência de todo princípio
de unidade, o pensamento ainda pode encontrar sua alegria em descrever e em
compreender em cada face da experiência. A verdade que se trata, então, para
cada uma dessas faces, é de ordem psicológica. Apenas testemunha o "interesse"
que a realidade pode apresentar. É um modo de despertar um mundo sonolento e
de trazê-lo vivo ao espírito. Mas, se quisermos estender e fundamentar
racionalmente essa noção de verdade, se pretendermos descobrir assim a
"essência" de cada objeto do conhecimento, restituímos sua
profundidade à experiência. Para um espírito absurdo, isso é incompreensível.
Ora; é essa oscilação da modéstia à segurança que é sensível na atitude
intencional e esse reflexo do pensamento fenomenológico ilustrará melhor do
que qualquer outra coisa o raciocínio absurdo. Porque Husserl fala também de "essências extratemporais"
que a intenção atualiza e se tem a impressão de ouvir Platão. Não se explicam
todas as coisas por uma só, mas por todas. Não vejo aí diferença. Certamente,
essas idéias ou essências que a consciência "efetua" ao fim de cada
descrição ainda não se pretende que sejam modelos perfeitos. Mas afirma-se
que elas estão diretamente presentes em todo dado da percepção. Não há mais
uma única idéia que explique tudo, mas uma infinidade de essências que dão um
sentido a uma infinidade de objetos. O mundo se imobiliza, mas se esclarece.
O realismo platônico se torna intuitivo, mas ainda é realismo. Kierkegaard
mergulhava no seu Deus, Parmênides precipitava o pensamento no Um. Mas aqui o
pensamento se lança em um politeísmo abstrato. E mais: as alucinações e as
ficções fazem igualmente parte das "essências extratemporais". No
novo mundo das idéias a categoria de centauro colabora com aquela, bem mais
modesta, de metropolitano. Para o homem absurdo, havia ao mesmo tempo uma verdade e uma
amargura nessa opinião puramente psicológica de que todos os aspectos do
mundo são privilegiados. Que tudo seja privilegiado redunda em se dizer que
tudo é equivalente. Mas o lado metafísico dessa verdade o leva tão longe que,
por uma reação elementar, ele talvez se sinta mais perto de Platão.
Ensinam-lhe, efetivamente, que toda imagem pressupõe uma essência igualmente
privilegiada. Nesse mundo ideal, sem hierarquia, o exército formal é composto
só de generais. A transcendência, sem dúvida, tinha sido eliminada. Mas um
brusco remoinho do pensamento reintegra no mundo uma espécie de imanência
fragmentária que devolve ao universo a sua profundidade. Devo recear ter levado tão longe um tema utilizado com mais
prudência pelos seus criadores? Li somente essas afirmações de Husserl, de
aparência paradoxal, mas de que se sente a lógica rigorosa, se se lhe admite
o que precede: "O que é verdadeiro é verdadeiro absolutamente, em si; a
verdade é uma; é idêntica a ela mesma, sejam quais forem os seres que a
percebem, homens, monstros, anjos ou deuses”. A Razão triunfa e trombeteia
através dessa voz, não tenho como negá-lo. Que pode significar sua afirmação
no mundo absurdo? A percepção de um anjo ou de um deus não tem sentido para
mim. Esse lugar geométrico em que a razão divina ratifica a minha me é para
sempre incompreensível. Até aí eu descubro um salto e, por ser dado no
abstrato, não significa menos para mim o esquecimento do que, precisamente,
não estou querendo esquecer. Quando, mais adiante Husserl escreve: "Se
todas as massas submetidas à atração desaparecessem, a lei da atração nem por
isso se acharia destruída; ela simplesmente ficaria sem aplicação
possível", sei que me encontro diante de uma metafísica de consolação. E
se querem descobrir a encruzilhada em que o pensamento abandona o caminho da
evidência, só tenho de reler o raciocínio paralelo que Husserl desenvolve a
respeito do espírito: "Se pudéssemos contemplar claramente as leis
exatas dos processos psíquico elas se mostrariam igualmente eternas e
invariáveis como as leis fundamentais das ciências naturais teóricas.
Portanto, elas seriam válidas, mesmo se não houvesse nenhum processo
psíquico. Mesmo que o espírito não fosse, suas leis seriam. Compreendo agora
que, de uma verdade psicológica, Husserl pretende fazer uma regra racional:
depois de ter negado o poder integrador da razão humana, ele salta por esse
desvio para a Razão eterna”. O tema husserliano do "universo concreto" não pode,
então, me surpreender. Dizer-me que todas as essências não são formais, mas
que existem as materiais, e que as primeiras são o objeto da lógica, as
segundas da ciência, é somente um problema de definição. O abstrato — me é
garantido — só designa uma parte em si mesma não consistente de um universal
concreto. Mas a oscilação já revelada me permite esclarecer a confusão desses
termos. Pois isso pode querer dizer que o objeto concreto da minha atenção, o
céu, o reflexo dessa água sobre um lado desta capa conserva unicamente com
eles esse prestígio do real que o meu interesse isola no mundo. E eu não o
negaria. Mas isso pode querer dizer também que essa própria capa é universal
em sua essência particular e eficiente, pertence ao mundo das formas.
Compreendo logo que só se mudou a ordem da procissão. Esse mundo já não tem
seu reflexo em um universo superior, mas o céu das formas se representa na
multidão das imagens desta terra. Isso, para mim, não altera nada. Não é de
maneira nenhuma o gosto do concreto, o sentido da condição humana que
reencontro aqui, mas um intelectualismo bastante destemperado para
generalizar o próprio concreto. Inutilmente nos espantaríamos com o paradoxo aparente que leva o
pensamento à sua própria negação pelos caminhos opostos da razão humilhada e
da razão triunfante. Do deus abstrato de Husserl ao deus fulgurante de
Kierkegaard, a distância não é tão grande. A razão e o irracional levam à
mesma prédica. É que, na verdade, o caminho importa pouco, a vontade de
chegar é suficiente para tudo O filósofo abstrato e o filósofo religioso
partem da mesma desordem e se sustentam da mesma angústia. Mas o essencial é
explicar. Aqui a nostalgia é mais forte do que o silêncio. É significativo
que o pensamento da época seja ao mesmo tempo um dos mais impregnados de uma
filosofia da não-significação do mundo e um dos mais dilacerados em suas
conclusões. Não pára de oscilar entre a extrema racionalização do real, que
incita a fragmentá-lo em razões tipos, e sua extrema irracionalizarão, que
incita a divinizá-lo. Mas esse divórcio é apenas aparente. Trata-se de
reconciliar e nos dois casos o salto é suficiente para isso. Sempre se crê,
erroneamente, que a noção de razão é de sentido único. Na verdade, tão
rigoroso quanto seja em sua ambição, esse conceito em nada é menos
inconstante que outros. A razão nos apresenta uma face toda humana, mas
também ela sabe se voltar para o divino. Desde Plotino, o primeiro que soube
conciliá-la com o clima eterno, ela aprendeu a se desviar do mais caro de
seus princípios, que é a contradição, para integrar a ela o mais estranho, e
tão mágico, da participação.[12] Ela é
um instrumento de pensamento e não o próprio pensamento. O pensamento de um
homem é antes de tudo sua nostalgia. Assim como a razão soube pacificar a
melancolia plotiniana, ela dá à angústia moderna os meios de se acalmar nos
cenários familiares do eterno. O espírito absurdo tem menos sorte. O mundo
para ele não é nem tão racional, nem a tal ponto irracional. Ele é despropositado
e apenas isso. A razão, em Husserl, acaba por não ter limites de espécie
alguma. O absurdo, ao contrário, fixa os seus limites, porque é impotente
para acalmar sua angústia. Kierkegaard, por sua vez, afirma que basta um
único limite para negá-lo. Mas o absurdo não vai tão longe. Para ele, esse
limite visa apenas as ambições da razão. O tema do irracional, tal como é
concebido pelos existenciais, é a razão que se confunde e se liberta enquanto
se nega. O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites. É no final desse caminho difícil que o homem absurdo reconhece
suas verdadeiras razões. Comparando sua exigência profunda ao que então lhe é
proposto, ele sente, de súbito, que vai se desviar. No universo de Husserl, o
mundo se aclara e esse apetite de familiaridade que se conserva no coração do
homem se torna inútil. No apocalipse de Kierkegaard, esse desejo de clareza
deve renunciar, se quer ser satisfeito. O pecado não é tanto saber (sob esse
aspecto, todo o mundo é inocente) quanto desejar saber. É precisamente o
único pecado em que o homem absurdo poderia ver fazer-se ao mesmo tempo sua
culpabilidade e sua inocência. Propõem-lhe um desenlace em que todas as
contradições passadas já não são mais do que exercícios polêmicos. Mas não é
assim que ele as experimentou. É preciso preservar a verdade delas, que é a
de nunca serem satisfeitas. Ele não quer saber de prédica. Meu raciocínio pretende ser fiel à evidência que ele despertou.
Essa evidência é absurda. É esse divórcio entre o espírito que deseja e o
mundo que ilude, minha nostalgia de unidade, esse universo disperso e a contradição
que os encadeia. Kierkegaard suprime a minha nostalgia e Husserl volta a
juntar o universo. Não é o que eu esperava. Tratava-se de viver e de pensar
com essas dilacerações, e de saber se era preciso aceitar ou recusar. O
problema não pode ser mascarar a evidência ou suprimir o absurdo lhe negando
um dos termos da equação. É preciso saber se podemos viver disso ou se a
lógica determina que morramos disso. Não me interesso pelo suicídio
filosófico, mas pelo suicídio sem mais nada. Quero somente purificá-lo do seu
conteúdo de emoções, conhecer sua lógica e sua honestidade. Qualquer outra
posição, para o espírito absurdo, pressupõe o logro e o recuo do espírito
ante o que o espírito traz à tona. Husserl diz obedecer ao desejo de escapar
"do hábito inveterado de viver e pensar em certas condições de
existência já bem conhecidas e confortáveis", mas o salto final, no seu
caso,t nos restitui o eterno e sua comodidade. O salto não representa um perigo
extremo, como o pretenderia Kierkegaard. O perigo, ao contrário, está no
instante sutil que precede o salto. Saber manter-se sobre essa aresta
atordoante, eis a honestidade, o resto é subterfúgio. Sei também que jamais a
impotência inspirou tão comoventes acordes quanto os de Kierkegaard. Mas se a
impotência tem seu lugar nas paisagens indiferentes da história, não saberia encontrá-la
em um raciocínio cuja exigência estamos agora conhecendo. Agora o principal está feito. Detenho
algumas evidencias de que não posso me separar. O que sei, o que está certo,
o que não posso negar, o que não posso rejeitar, eis o que vale. Posso negar
tudo nessa parte de mim que vive de nostalgias incertas, menos esse desejo de
unidade, essa fome de resolver, essa exigência de clareza e coesão. Posso
contrariar tudo nesse mundo que me envolve, me choca ou me transporta, menos
esse caos, esse rei acaso e essa divina equivalência que nasce da anarquia.
Não sei se esse mundo tem um sentido que o ultrapasse. Mas sei que não
conheço esse sentido e que, por ora, me é impossível conhecê-lo. Que
significa, para mim, significado fora da minha condição? Só tenho como
compreender em termos humanos. O que toco, o que me resiste, eis o que
compreendo. E essas duas certezas, meu apetite de absoluto e de unidade, e a
irredutibilidade desse mundo a um princípio racional e razoável, sei também
que não posso conciliá-las. Que outra verdade posso reconhecer sem mentir,
sem fazer intervir uma esperança que não tenho e que nada significa nos
limites da minha condição? Se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, essa
vida teria um sentido ou, antes, esse problema eu não o teria, pois faria
parte do mundo. Eu seria esse mundo a que agora me oponho com toda a minha
consciência e toda a minha exigência de familiaridade. Essa razão tão
irrisória é ela que me opõe a toda a criação. Não posso negá-la de uma
penada. O que acredito verdadeiro, tenho, portanto, de manter. O que me
parece tão evidente — mesmo contra mim — devo sustentar. E o que constitui o
fundo desse conflito, dessa fratura entre o mundo e o meu espírito, se não a
consciência que tenho dele? Quer-se, pois, mantê-lo, é por uma consciência
permanente, sempre empenhada, sempre renovada. Eis o que, por ora, preciso
reter. Nesse momento, o absurdo, ao mesmo tempo tão evidente e tão difícil de
conquistar, volta para a vida de um homem e reencontra sua pátria. Nesse momento,
ainda, o espírito pode deixar a estrada árida e ressequida do esforço lúcido.
Agora ela desemboca na vida cotidiana. Redescobre o mundo do "se" anônimo,
mas o homem aí retorna, doravante com sua revolta e sua sagacidade.
Desaprendeu de esperar. Esse inferno do presente é finalmente o seu reino.
Todos os problemas readquirem os seus gumes. A evidência abstrata se retira
ante o lirismo das formas e das cores. Os conflitos espirituais se encarnam e
recobram o abrigo miserável e magnífico do coração humano. Ninguém está
resolvido. Mas todos estão transfigurados. Será preciso morrer, escapar pelo
salto, reconstruir uma casa de idéias e de formas à sua medida? Vai-se, ao
contrário sustentar a aposta dilacerante e maravilhosa do absurdo? Façamos, a
esse respeito, um último esforço e deduzamos todas as nossas conseqüências. O
corpo, a ternura, a criação, a ação, a nobreza humana retomarão então o seu
lugar nesse mundo insensato. O homem reencontrará aí, enfim, o vinho do
absurdo e o pão da indiferença com que alimenta sua grandeza. Insistamos ainda sobre o método:
trata-se de se obstinar. A uma certa altura do seu caminho, o homem absurdo é
solicitado. A história não tem falta de religiões, nem de profetas, ainda que
sem deuses. Pede-se a ele que salte. Tudo que pode responder é que não
compreende bem, que isso não é evidente. Não quer fazer exatamente o que
compreende bem. Asseguram-lhe que é pecado de orgulho, mas ele não entende a
noção de pecado; que no final talvez esteja o inferno, mas ele não tem
bastante imaginação para se representar esse estranho futuro; que ele perde a
vida eterna, mas isso lhe parece fútil: Pretenderiam fazê-lo reconhecer sua
culpabilidade. Ele se sente inocente. Na verdade, só sente isso, sua
inocência irreparável. É ela que lhe permite tudo. Assim, o que ele exige de
si mesmo é viver somente com o que sabe, arranjar-se com o que existe e não
fazer intervir nada que não seja certo. Respondem-lhe que nada o é. Mas esta;
pelo menos, é uma certeza. É dela que ele precisa: quer saber se é possível
viver sem apelação. Posso tratar agora da noção de suicídio. Já se sentiu que solução
é possível lhe dar. Quanto a isso, o problema está invertido. Trata-se,
anteriormente, de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Aqui
fica parecendo, ao contrário, que ela será vivida melhor ainda se não tiver
sentido. Viver uma experiência, um destino é aceitá-la plenamente. Ora, não
se viverá esse destino, sabendo-o absurdo, se não se faz tudo para manter
diante de si esse absurdo aclarado pela consciência. Negar um dos termos da
oposição de que ele vive é escapar-lhe. Abolir a revolta consciente é
esquivar-se ao problema. O tema da revolução permanente se transporta assim
para a experiência individual. Viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver
é, antes de tudo, encará-lo. Ao contrário de Eurídice, o absurdo só morre
quando alguém se desvia dele. Assim, uma das únicas posições filosóficas
coerentes é a revolta. Ela é um confronto permanente do homem com sua própria
obscuridade. E exigência de uma impossível transparência. E, a cada segundo,
questiona o mundo de novo. Assim como o perigo apresenta ao homem a
insubstituível ocasião de apoderar-se dela, também a revolta metafísica
estende toda a consciência ao longo da experiência. Ela é presença constante
do homem consigo mesmo. Ela não é aspiração, não tem esperança. Essa revolta
é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria
acompanhá-la. É aqui que se vê a que ponto a experiência absurda se afasta do
suicídio. Pode-se acreditar que o suicídio se segue à revolta. Mas é engano.
Porque ele não reapresenta o resultado lógico. É precisamente o seu
contrário, pelo consentimento que envolve. O suicídio, como salto, é a
aceitação em seu limite. Tudo está consumado: o homem volta à sua história
essencial. Seu futuro, seu único e terrível futuro, ele o distingue e se precipita.
À sua maneira, o suicida resolve o absurdo. Ele o arrasta na mesma morte. Mas
eu sei que, para se manter, o absurdo não pode se revolver. Ele escapa ao
suicídio à medida que é, ao mesmo tempo, consciência e recusa da morte. É, no
ponto extremo do último pensamento do condenado à morte, esse cordão de
sapato que apesar de tudo ele percebe a alguns metros, em cima da própria
margem de sua queda vertiginosa. O contrário do suicida é, precisamente, o
condenado à morte. Essa revolta dá o seu preço à vida. Estendida ao longo de toda
uma existência, ela lhe devolve sua grandeza. Para um homem sem antolhos, não
existe espetáculo mais belo que o da inteligência lutando contra uma realidade
que o ultrapassa. O espetáculo do orgulho humano é inigualável. Todas as
depreciações resultam em nada. Essa disciplina que o espírito impõe a si
próprio, essa vontade forjada de todas as peças, esse face-a-face têm algo de
poderoso e singular. Empobrecer essa realidade cuja inumanidade faz a
grandeza do homem é, paralelamente, empobrecer a ele mesmo. Compreendo então
por que as doutrinas que me explicam tudo me enfraquecem ao mesmo tempo. Elas
me descarregam do peso da minha própria vida e o que é mais necessário, no
entanto, é que eu o suporte sozinho. A essa altura, só posso conceber que uma
metafísica cética vá se aliar a uma moral da renúncia. Consciência e revolta: essas recusas são o contrário da renúncia.
Tudo o que há de irredutível e apaixonado num coração humano as estimula, ao
contrário de sua vida. Trata-se de morrer irreconciliado, não de boa vontade.
O suicídio é um irreconhecimento. O homem absurdo só pode esgotar tudo, e se
esgotar. O absurdo é sua tensão extrema, a que ele mantém constantemente com
um esforço solitário, porque sabe que nessa consciência e nessa revolta de
cada dia ele testemunha sua única verdade, que é o desafio. É esta uma
primeira conseqüência. Se me mantenho nessa posição estipulada, que consiste em extrair
todas as conseqüências (e nada além delas) que acarreta uma noção descoberta,
me coloco diante de um segundo paradoxo. Para permanecer fiel a esse método,
não tenho nada a fazer com o problema da liberdade metafísica. Não me
interessa saber se o homem é livre. Só posso pôr à prova a minha própria
liberdade. A respeito dela, não posso ter noções gerais, mas algumas
impressões inteligíveis. O problema da "liberdade em si" não tem
sentido. Porque ele, de uma maneira inteiramente diversa, também está ligado
ao de Deus. Saber se o homem é livre exige que se saiba se ele pode ter um
senhor. A absurdidade peculiar a esse problema provém de que a própria noção
que torna possível o problema da liberdade lhe suprime, ao mesmo tempo, todo
o sentido. Porque, diante de Deus, há menos um problema da liberdade que um
problema do mal. Conhecemos a alternativa: ou nós não somos livres, e Deus
todo-poderoso é responsável pelo mal, ou somos livres e responsáveis, mas
Deus não é todo-poderoso. Todas as sutilezas das várias escolas não
acrescentaram nem subtraíram nada ao corte desse paradoxo. É por isso que eu não posso me perder na exaltação ou na simples
definição de uma noção que me escapa e.que perde o sentido a partir do
instante em que excede os limites da minha experiência individual. Não posso
compreender o que pode ser uma liberdade que me seria dada por um ser
superior. Perdi o sentido da hierarquia. Só posso ter, da liberdade, a
concepção do prisioneiro ou do indivíduo moderno submetido ao Estado. A única
que conheço é a liberdade de espírito e de ação. Ora, se o absurdo aniquila
todas as minhas possibilidades de liberdade eterna, ele em contrapartida me
devolve e exalta minha liberdade de ação. Essa privação de esperança e de
futuro significa um crescimento na disponibilidade do homem. Antes de deparar com o absurdo, o homem cotidiano vive com
objetivos, uma preocupação com o futuro ou com a justificação (acerca de quem
ou de que não nos importa). Ele avalia suas possibilidades, conta com o mais
tarde, com sua aposentadoria ou o trabalho de seus filhos. Ainda acredita que
alguma coisa da sua vida pode ser manobrada. Na verdade, ele age como se
fosse livre, ainda que todos os fatos se encarreguem de contradizer essa
liberdade. Após o absurdo, tudo se acha abalado. Essa idéia de que "eu
sou", minha maneira de agir como se tudo tivesse um sentido (mesmo se eu
dissesse, no momento, que nada o tinha), tudo isso se encontra desmentido de
uma forma vertiginosa pela incoerência de uma morte possível. Pensar no dia
de amanhã, firmar um objetivo, ter preferências, tudo isso pressupõe a crença
na liberdade, mesmo se às vezes nos convencemos de não a sentir efetivamente.
Nesse instante, porém, essa liberdade superior, essa liberdade de ser que é a
única a poder fundamentar uma verdade, sei muito bem, agora, que ela não
existe. A morte está ali como única realidade. Depois dela, a sorte está
lançada. Não sou mais livre para me perpetuar, mas escravo, e escravo,
sobretudo, sem esperança de revolução eterna, sem refugio no desprezo. E
quem, sem revolução e sem desprezo, pode permanecer escravo? Que liberdade,
no sentido pleno, pode existir sem garantia de eternidade? Mas, ao mesmo tempo, o homem absurdo compreende que, até ali, ele
estava ligado a esse postulado de liberdade com cuja ilusão vinha vivendo. De
certo modo, isso o atrapalhava. À proporção que imaginava um objetivo para
sua vida, ele se conformava com as exigências de um objetivo a atingir e se
tornava escravo de sua liberdade. Assim, eu não saberia mais agir a não ser
como o pai de família (ou o engenheiro, ou o líder popular, ou o extranumerário
dos Correios e Telégrafos) que me preparo para ser. Acredito que posso melhor
escolher ser isso do que outra coisa. Acredito-o inconscientemente, é bem
verdade. Mas defendo, ao mesmo tempo, meu postulado das crenças dos que me
cercam, preconceitos do meu ambiente humano (os outros estão tão seguros de
ser livres e esse bom humor é tão contagiante!). Por mais longe que se possa
ficar de todo preconceito moral ou social, está-se em parte exposto a eles e
mesmo, pelos melhores (há bons e maus preconceitos), amoldamos nossa vida.
Assim o homem absurdo compreende que ele não era realmente livre. Para ser
claro, à medida que espero, que me inquieto com uma verdade que me seja
própria, com um modo de ser ou de criar, à medida, enfim, que organizo a vida
e que provo, por isso, que admito tenha ela um sentido, vou me criando
barreiras dentro das quais fecho a minha vida. Faço como tantos funcionários
do espírito e do coração que só me causam repulsa e que não fazem outra coisa
— vejo-o agora muito bem — senão levar a sério a liberdade do homem. O absurdo me esclarece sobre esse ponto: não há o dia de amanhã.
Eis, daqui em diante, a razão da minha liberdade profunda. Vou fazer agora
duas comparações. À primeira vista, os místicos encontram uma liberdade para
se dar. Absorvendo-se em seu deus, consentindo em suas regras, eles se tornam
secretamente livres a seu modo. E na escravidão espontaneamente consentida
que eles reencontram uma independência profunda. Mas que significa essa
liberdade? Pode-se dizer, sobretudo que eles se sentem livres diante de si
mesmos e menos livres do que, sobretudo, libertados. Da mesma forma,
inteiramente voltado para a morte (compreendida aqui como a absurdidade mais
evidente), o homem absurdo se sente desembaraçado de tudo o que não é essa
atenção apaixonada que se cristaliza nele. Ele prova uma liberdade no que diz
respeito às normas comuns. Vê-se, agora, que os temas de que partiu a
filosofia existencial conservam todo o seu valor. O retorno à consciência, a
evasão para fora do sono cotidiano representa os primeiros procedimentos da
liberdade absurda. Mas é a pregação existencial que se tem em mira e, com
ela, esse salto espiritual que, no fundo, escapa à consciência. De igual modo
(é a minha segunda comparação), os escravos da Antigüidade não podiam dispor
de si mesmos. Mas eles conheciam essa liberdade que consiste em não se sentir
de modo algum responsável.[13]
Também a morte tem mãos patrícias que esmagam, mas que liberam. Absorver-se nessa certeza sem fundo, sentir-se doravante tão estrangeiro
em sua própria vida a ponto de aumentá-la e percorrê-la sem a miopia do
amante, eis aí o princípio de uma libertação. Essa nova liberdade tem um
prazo, como toda liberdade de ação. Ela não passa cheque para a eternidade.
Substitui, porém, as ilusões dz liberdade, que se detinham todas com a morte.
A divina disponibilidade do condenado à morte diante de quem se abre as
portas da prisão em meio a um certo — e tênue — alvorecer, esse inacreditável
desinteresse em relação a tudo, salvo para com a pura chama da vida, a morte
e o absurdo são então — percebe-se claramente — os princípios da única
liberdade razoável: a que um coração humano pode experimentar e viver. Esta é
uma segunda conseqüência. O homem absurdo entrevê, assim, um universo ardente
e gélido, transparente e limitado, em que nada é possível, mas tudo já se
deu, depois do que vem o desmoronamento e o nada. Ele pode, então, decidir
aceitar sua vida em semelhante universo e dele retirar suas forças, sua
recusa à espera e o testemunho obstinado de uma vida sem consolação. Mas o que significa a vida em semelhante universo? No momento,
nada além da indiferença para com o futuro e a paixão de esgotar tudo o que
se deu. A crença no sentido da vida compreende sempre uma escala de valores,
uma escolha, preferências. A crença no absurdo, segundo as nossas definições,
ensina o oposto. Mas nisso vale a pena que nos detenhamos. Saber se alguém
pode viver sem apelação é tudo o que me interessa. Não quero sair nem um
pouco desse ponto. Sendo-me assim manifesta essa fisionomia da vida, tenho
como me acomodar a ela? Ora, em face dessa preocupação especial, a crença no
absurdo passa a substituir a qualidade das experiências pela quantidade. Se
me convenço que essa vida não tem outra face além da do absurdo, se comprovo
que todo o seu equilíbrio depende dessa permanente oposição entre a minha
revolta consciente e a obscuridade em que ela se debate, se admito que a
minha liberdade só tem sentido na relação com o seu destino limitado, então
eu tenho de dizer que o que vale não é viver melhor mas viver mais. Não
preciso me perguntar se isso é vulgar ou enfadonho, elegante ou lamentável.
De uma vez por todas estão afastados daqui os juízos de valor em benefício
dos juízos de fato. Tenho apenas de tirar minhas conclusões do que posso ver
e não arriscar nada que não passe de hipótese. Supondo-se que viver assim
não fosse honesto, então a verdadeira honestidade me obrigaria a ser
desonesto. Viver mais: em sentido amplo, essa regra de vida não significa
nada. É necessário deixá-la mais precisa. À primeira vista, parece não se ter
aprofundado suficientemente essa noção de quantidade. Porque ela pode
abranger uma grande parte da experiência humana. A moral de um homem, sua
escala de valores só têm sentido pela quantidade e variedade de experiências
que lhe foi dado acumular. Ora, as condições da vida moderna impõem à maioria
dos homens a mesma quantidade de experiências e, conseqüentemente, a mesma
experiência profunda. É claro que também é preciso considerar a contribuição
espontânea do indivíduo, o que nele já é "dado". Mas eu não posso
julgar isso e mais uma vez a minha regra aqui é a de me dispor de evidência
imediata. Vejo então que o caráter particular de uma moral comum reside menos
na importância ideal dos princípios que a animam do que na norma de uma
experiência que é possível mensurar. Forçando um pouco as coisas, os gregos
tinham a moral de seus lazeres como nós temos a das nossas jornadas de oito
horas. Mas muitos homens — no meio dos mais trágicos — já nos fazem
pressentir que uma experiência mais longa altera o quadro dos valores. Eles
nos fazem imaginar esse aventureiro do cotidiano que pela simples quantidade
das experiências bateria todos os recordes (emprego de propósito esse
vocábulo esportivo) e ganharia assim a sua própria moral.[14]
Afastemo-nos, porém, do romantismo e nos perguntemos somente o que pode
significar essa atitude para um homem decidido a manter sua aposta e a
observar estritamente o que acredita ser a regra do jogo. Bater todos os recordes
é antes de tudo, e unicamente, estar diante do mundo com a maior constância
possível. Como se pode fazer isso sem contradições e sem trocadilhos? Porque,
de um lado, o absurdo ensina que todas as experiências são indiferentes e, de
outro, ele impele para a maior quantidade de experiências. Como, então, não
fazer como tantos desses homens de que eu falava mais acima, escolher a forma
de vida que nos proporciona essa matéria humana o máximo possível, adotar
assim uma escala de valores que, de outra parte, se pretende rejeitar? Mas é ainda o absurdo, é sua vida contraditória, que nos ensina.
Porque o erro está em pensar que essa quantidade de experiências depende das
circunstâncias da nossa vida, quando ela só depende de nós. Aqui, é preciso
ser simplista. A dois homens que vivem o mesmo número de anos o mundo fornece
sempre a mesma soma de experiências. Cabe a nós estarmos conscientes delas.
Sentir sua vida, sua revolta, sua liberdade; e o máximo possível, é viver, e
o máximo possível. Aí onde reina a lucidez, a escala de valores se torna
inútil. Sejamos ainda mais simplistas. Dissemos que o único obstáculo, a
única "falta a ganhar" é constituída pela morte prematura. O
universo aqui sugerido só vive em oposição a essa constante exceção que é a
morte. É assim que nenhuma profundeza, nenhuma emoção, nenhuma paixão e
nenhum sacrifício poderiam tornar iguais aos olhos do homem absurdo (mesmo se
ele o desejasse) uma vida consciente de quarenta anos e uma lucidez estendida
por sessenta anos.[15] A
loucura e a morte são irremediáveis. O homem não escolhe. O absurdo e o
acréscimo de vida que ele comporta não dependem da vontade do homem, mas de
seu contrário que é a morte.[16]
Pesando bem as palavras, trata-se unicamente de uma questão de possibilidade.
É preciso saber e consentir. Vinte anos de vida e de experiências jamais se
substituirão. Por uma estranha inconseqüência de uma raça tão prevenida, os
gregos pretendiam que os homens que morressem jovens fossem amados dos
deuses. E isso só é verdadeiro se quisermos admitir que entrar no mundo
irrisório dos deuses é perder para sempre a mais pura das alegrias, que é
sentir e sentir sobre esta terra. O presente e a sucessão dos presentes
diante de uma alma de incessante consciência é o ideal do homem absurdo. Mas
a palavra ideal, aqui, soa falsa. Não é mesmo sua vocação, mas somente a
terceira conseqüência do seu raciocínio. Parte de uma consciência angustiada
do inumano, a meditação sobre o absurdo retorna, no fim de seu itinerário, ao
próprio cerne das chamas apaixonadas da revolta humana.[17] Assim, eu extraio do absurdo três conseqüências que são minha
revolta, minha liberdade e minha paixão. Apenas com o jogo da consciência
transformo em regra de vida o que era convite à morte — e recuso o suicídio.
Conheço, sem dúvida, a surda ressonância que se estende ao longo desses dias.
Mas só tenho uma palavra a dizer: é que ela é necessária. Quando Nietzsche
escreve: "Parece claramente que a coisa mais importante no céu e sobre a
terra é obedecer por muito tempo e numa mesma direção: com o passar
dos dias, surge daí alguma coisa pela qual nos vale a pena viver sobre esta
terra como, por exemplo, a virtude, a arte, a música, a dança, a razão, o
espírito, alguma coisa que transfigura, alguma coisa de refinado, de louco ou
de divino", ele ilustra uma moral de grande discernimento. Mas também mostra
o caminho do absurdo. Obedecer à chama é ao mesmo tempo o que há de mais
fácil e de mais difícil. É bom, contudo, que o homem, confrontando-se com a
dificuldade, se julgue de vez em quando. Está sozinho para poder fazê-lo. "A prece", diz Alain, "é quando a noite vem sobre
o pensamento". "Mas é preciso que o espírito encontre a
noite", respondem os místicos e os existenciais. Certamente, mas não
essa noite que nasce sob os olhos fechados e só pela vontade do homem — noite
sombria e fechada que o espírito suscita para nela se perder. Se ele deve
achar uma noite, que seja antes aquela do desespero que se mantém lúcido,
noite polar, vigília do espírito, de que talvez se levantará essa claridade
branca e intacta que desenha cada objeto à luz da inteligência. A essa
altura, a equivalência reencontra a compreensão apaixonada. Já não se trata
de julgar o salto existencial. Ele retoma seu lugar no meio do afresco
secular das atitudes humanas. Para o espectador, se está consciente esse
salto é ainda absurdo. À medida que acredita resolver esse paradoxo, ele o
restabelece por completo. Sob esse aspecto, é comovedor. Sob esse aspecto,
tudo retoma seu lugar e o mundo absurdo renasce em seu esplendor e sua
diversidade. Mas é ruim parar, é difícil contentar-se com uma única maneira de
ver, privar-se da contradição, talvez a mais sutil de todas as formas
espirituais. O que se diz acima só define um modo de pensar. Agora, a questão
é viver. Se Stavróguin crê, não
crê que crê. Se ele não crê, não crê que não crê. Os Possessos "Meu campo" diz Goethe "é
o tempo". Eis aí claramente a palavra absurda. O que é, realmente, o
homem absurdo? Aquele que, sem o negar, não faz nada para o eterno. Não que a
nostalgia lhe seja estranha. Mas ele prefere sua coragem e seu raciocínio. A
primeira o ensina a viver sem apelação e a se bastar com o que tem, o segundo
o instrui sobre seus limites. Certo de sua liberdade a prazo, de sua revolta
sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue em aventura no tempo da
sua vida. Aí está seu campo e sua ação que ele subtrai a todo julgamento que
não seja o seu. Para ele, uma vida maior não pode significar uma outra vida.
Isso seria desonestidade. Aqui não estou falando sequer dessa eternidade
irrisória que chamam posteridade. Madame Roland se dedicava a ela. Essa
imprudência recebeu sua lição. [18] A posteridade cita esse nome de bom
grado, mas se esquece de opinar a respeito. Madame Roland é indiferente à
posteridade. A questão, agora, não é dissertar Sobre
a moral. Vi pessoas agirem mal com muita moral e todos os dias verifico que a
honestidade não precisa de regras. Só existe uma moral que o homem absurdo
pode admitir: a que não se separa de Deus e que se dita. Mas ele vive
precisamente fora desse Deus. Quanto às outras morais (entendo também o
imoralismo), o homem absurdo só vê nelas justificativas e não há nada a
justificar. Parto aqui do princípio de sua inocência. Essa inocência é temível. "Tudo é
permitido", exclama Ivã Karamazov. Isso também denota seu absurdo. Mas
com a condição de não o entender vulgarmente. Não sei se foi bem observado:
não se trata de um grito de libertação ou de alegria, mas de uma verificação
amarga. A certeza de um Deus que daria seu sentido à vida ultrapassa de
muito, em atrativo, o poder impune de fazer mal. A escolha não seria difícil.
Mas não há escolha e então começa a amargura. O absurdo não liberta: liga.
Não autoriza todos os atos. Tudo é permitido não significa que nada é
proibido. O absurdo apenas devolve às conseqüências de seus atos a
equivalência delas. Ele não recomenda o crime. Seria pueril, mas restitui ao
remorso sua inutilidade. Da mesma forma, se todas as experiências são
indiferentes, a do dever é tão legítima quanto qualquer outra. Pode-se ser
virtuoso por capricho. Todas as morais são baseadas na idéia de
que um ato tem conseqüências que o legitimam ou o obliteram. Um espírito
sensibilizado pelo absurdo julga apenas que esses desdobramentos devem ser
considerados com serenidade. Em outras palavras, se para ele pode haver
responsáveis, não há culpados. Quando muito, ele consentira em utilizar á
experiência passada para basear seus atos futuros. O tempo levará o tempo a
viver e a vida servirá a vida. Nesse campo tão reduzido quanto saciado pelos
possíveis, tudo nele próprio, com exceção da sua lucidez, lhe parece
imprevisível. Que regra, pois, poderia provir dessa ordem despropositada? A
única verdade que lhe pode parecer esclarecedora não é nada formal: anima-se
e se desenvolve nos homens. Portanto, não são diretrizes éticas que o
espírito absurdo pode achar no fim do seu raciocínio, mas ilustrações e o
sopro das vidas humanas. As poucas imagens que se seguem têm essa tendência.
Perseguem o raciocínio absurdo, dando-lhe sua atitude e seu calor. Tenho a necessidade de desenvolver a
idéia de que um exemplo não é forçosamente um exemplo a ser seguido (menos
ainda se ele é possível no mundo absurdo) e que essas ilustrações não são
modelos para tanto? Não só aí é indispensável a vocação como nos tornamos
ridículos, bem guardadas as proporções, em concluir com Rousseau que é
preciso andar de quatro e, com Nietzsche, que convém brutalizar a própria
mãe. "É preciso ser absurdo”, escreve um autor moderno, "não se deve
ser ludibriado". As atitudes de que trataremos só podem adquirir todo o
seu sentido com a consideração de seus contrários. Um extranumerário dos
Correios é igual a um conquistador se a consciência lhes é comum. Quanto a
isso, todas as experiências são indiferentes. Ocorre que elas servem ou
desservem o homem. Só o servem se ele é consciente. Se não, isso não tem importância:
as derrotas de um homem não julgam as circunstâncias, mas ele próprio. Escolho apenas homens que só aspiram a
se consumir ou de que tenho consciência, por eles, de que se consomem. Isso
não vai muito longe. Só quero falar, no momento, de um mundo em que tanto os
pensamentos como as vidas estão destituídas de futuro. Tudo o que faz o homem
trabalhar e se agitar se utiliza da esperança. O único pensamento que não é
mentiroso é, portanto; um pensamento estéril. No mundo absurdo, o valor de
uma noção ou de uma vida se mede com a sua infecundidade. Se bastasse amar, as coisas seriam muito
simples. Quanto mais se ama, mais o absurdo se consolida. Não é de modo algum
por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher. É ridículo
representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é até porque ele
as ama com igual arrebatamento e a cada vez com toda inteireza, que lhe é
preciso repetir esse dom e esse aprofundamento. Por isso cada uma espera
trazer-lhe o que ninguém nunca lhe deu. A cada vez elas se enganam
profundamente e só são bem-sucedidas em lhe fazer sentir a necessidade dessa
repetição. "Enfim”, exclama uma delas, "eu lhe dei o amor".
Vamos nos espantar com Don Juan rindo disso: "Enfim? Não”, diz ele,
"apenas uma vez mais". Por que seria preciso amar raramente para
amar muito? Don Juan é triste? Isso não é
verossímil. Mal terei de apelar para a crônica. Esse riso, a insolência
vitoriosa, essa agitação e o gosto pelo teatro, tudo é claro e alegre. Todo
ser saudável tende a se multiplicar. Da mesma forma Don Juan. Mas, além
disso, os tristes têm duas razões para sê-lo: eles ignoram ou esperam. Don
Juan sabe e não espera. Ele faz pensar nesses artistas que conhecem seus
limites, não passam deles jamais e, nesse intervalo precário em que seu
espírito se instala, têm todo o desembaraço dos mestres. E está bem aí o
gênio: a inteligência que conhece suas fronteiras. Até a fronteira da morte
física, Don Juan ignora a tristeza. Desde o instante em que ele sabe, seu
riso explode e leva a perdoar tudo: Ele foi triste no tempo em que esperou.
Hoje, na boca dessa mulher, ele reencontra o gosto amargo e reconfortante da
única ciência. Amargo? Se tanto: essa necessária imperfeição que torna
possível a felicidade! É um grande logro tentar ver em Don Juan
um homem que bebeu no Eclesiastes. Porque nada mais é vaidade, para ele,
senão a esperança de uma outra vida. Ele o prova, visto que a joga contra o
próprio céu. O pesar do desejo perdido no divertimento, esse lugar-comum da
impotência, não lhe diz respeito. Isso combina bem com Fausto, que muito
acreditou em Deus para se vender ao diabo. Para Don Juan, a coisa é mais simples.
O "Bordador" de Molina, [19] às ameaças do inferno, responde sempre:
"Como é longo o prazo que me dás!" O que vem depois da morte é
fútil e que longa sucessão de dias para quem sabe viver! Fausto exigia os
bens deste mundo: o infeliz só tinha de estende a mão. Era já vender a alma
não saber diverti-la. A saciedade, Don Juan lhe dá meia-volta. Se ele deixa
uma mulher, não é absolutamente porque não a deseje mais. Uma mulher bela é
sempre desejável. Mas é que ele deseja uma outra e, é claro, não é a mesma coisa. Essa vida o satisfaz, nada é pior do que
perdê-la. Esse louco é um grande sábio. Mas os homens que vivem da esperança
se acomodam mal com esse universo em que a bondade dá lugar à generosidade, à
ternura, ao silêncio viril, à comunhão, à coragem solitária. E todos
comentando: "É um fraco, um idealista ou um santo”. Sempre é preciso
engolir de novo a grandeza que insulta. Que as pessoas se indignem bastante (ou
tenham esse riso cúmplice que degrada o que admira) com os discursos de Don
Juan e com a mesma frase que serve para todas as mulheres. Mas, para quem
procura a quantidade das alegrias, só vale a eficácia. A passada de conversa
que já se saiu bem em tantas provas, para que complicá-la? Ninguém, nem a
mulher nem o homem, a escuta, mas antes de tudo a voz que a articula É a
regra, a convenção e a polidez. Ela se faz, depois do que o mais importante
está por se fazer. Don Juan já se prepara para isso. Por que ele irá se
propor um problema de moral? Não é, como o Manara de Milosz, [20] por desejo de ser santo que ele se
atormenta. O inferno, para ele, é coisa que estimula. Para a cólera divina,
ele só tem uma resposta, a da dignidade humana: "Tenho honra" diz
ao Comendador "e cumpri minha promessa porque sou um cavalheiro".
Mas também seria grande o erro de fazer dele um imoralista. Quanto a isso,
ele é "como todo o mundo": tem a moral de sua simpatia ou de sua
antipatia. Só se compreende bem Don Juan no que se refere, sempre, ao que ele
simboliza vulgarmente: o sedutor ordinário e o homem de mulheres. Ele é um sedutor ordinário.[21] Afora essa diferença de que ele é
consciente e é por isso que ele é absurdo. Um sedutor que se tornou lúcido
não mudará por causa disso. Seduzir é seu estado. Só nos romances há
alguém que muda de estado ou se torna melhor. Mas pode se dizer que, ao mesmo
tempo, nada mudou e tudo se transformou. O que Don Juan coloca em
prática é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende para a
qualidade. Não acreditar no sentido profundo das coisas é a índole do homem
absurdo. Os rostos calorosos ou maravilhados, ele os percorre, os armazena e
os queima. O tempo caminha com ele. O homem absurdo é o que não se separa do
tempo. Don Juan não pensa em "colecionar" as mulheres. Ele esgota a
quantidade delas e, com isso, as possibilidades de sua vida. Colecionar é ser
capaz de ficar vivendo do passado. Mas ele rejeita a saudade, essa outra
forma da esperança. Não sabe olhar os retratos. Ele é, por isso, egoísta? À sua maneira,
sem dúvida. Mas também aí se trata de compreender. Há aqueles que são feitos
para viver e aqueles que são feitos para amar. Don Juan; pelo menos, o diria
de bom grado. Mas seria por uma síntese entre as que poderia escolher: Porque
o amor de que se fala aqui é adornado com; as ilusões do eterno. Todos os
especialistas da paixão nos ensinam isso: só existe amor eterno contrariado.
Quase não existe paixão sem luta. Um amor semelhante só tem fim na última
contradição que é a morte. É preciso ser Werther ou nada. Ainda há, nisso,
diversas maneiras de se suicidar, de que uma é a doação total e o
esquecimento de sua própria pessoa. Don Juan, tanto quanto um outro, sabe que
isso pode ser emocionante. Mas ele é um dos únicos, a saber, que o importante
não está aí. Sabe-o claramente também: aqueles que um grande amor desvia de
toda a vida pessoal talvez se enriqueçam, mas empobrecem inapelavelmente
àqueles que seu amor escolheu. Uma mãe, uma mulher apaixonada tem
necessariamente o coração seco, porque ele se afastou do mundo. Um único
sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo é devorado. É um outro
amor que sacode Don Juan e esse é libertador. Traz consigo todos os rostos do
mundo e seu frêmito provém de que ele se sabe perecível. Don Juan optou por
ser nada. Trata-se, para ele, de ver claro. Nós só
chamamos amor o que nos liga a certos seres por alusão a um modo de ver
coletivo e pelo qual os livros e as lendas são responsáveis. Mas conheço
apenas, do amor, essa mescla de desejo, de ternura e inteligência que me liga
a um ser. Esse composto não é o mesmo para um outro. Não tenho o direito de
estender a todas essas experiências o mesmo nome. O que dispensa de as levar
adiante com os mesmos gestos. O homem absurdo também aqui multiplica o que
ele não pode unificar. Assim, descobre uma nova maneira de ser que o libera
ao menos tanto quanto libera os que dele se aproximam. Não há amor generoso
além daquele que se sabe ao mesmo tempo singular e passageiro. São todas
essas mortes e todos esses renascimentos que fazem para Don Juan o feixe de
sua vida. É a maneira que ele tem de dar e de fazer viver. Deixo para ser
julgado se se pode falar de egoísmo. Penso agora em todos os que querem
decididamente que Don Juan seja punido. Não apenas numa outra vida, más ainda
nesta mesma. Penso em todos esses contos, essas lendas e esses risos sobre
Don Juan envelhecido. Mas Don Juan já está pronto para isso. Para um homem
consciente, a velhice e o que ela pressagia não são uma surpresa. Ele
justamente só é consciente à medida que não se oculta o horror. Em Atenas
havia um templo consagrado à velhice. Levavam-se as crianças até lá. Para Don
Juan, quanto mais se ri dele, mais sua imagem se acusa. Ele recusa, desse
modo, aquela que os românticos lhe emprestaram. Ninguém quer rir desse Don
Juan torturado e lastimável. Lamentam-no, e o próprio céu o resgatará? Mas
não é bem isso. No universo que Don Juan entrevê, o ridículo também está
compreendido. Ele acharia normal ser castigado. É a regra do jogo. E sua
generosidade é exatamente ter aceitado toda a regra do jogo. Mas ele sabe que
tem razão e que não pode tratar-se de castigo. Um destino não é uma punição. Está nisso o seu crime, e por isso se
compreende que os homens do eterno clamem pelo seu castigo. Ele atinge uma
ciência sem ilusões que nega tudo o que eles professam. Amar e possuir, conquistar
e esgotar; eis aí a sua maneira de conhecer. (Faz sentido essa palavra
preferida pelas Escrituras e que denomina "conhecer" o ato de
amor.) Ele é seu pior inimigo enquanto ignora. Um cronista relata que o
verdadeiro "Burlador" bom nascimento garantia a impunidade".
Proclamaram, em seguida, que o céu o havia fulminado. Ninguém teve uma prova
desse estranho fim. Nem ninguém demonstrou o contrário. Mas, sem me perguntar
se isso é verossímil, posso dizer que é lógico. Faço questão de reter aqui o
termo "nascimento" e jogar com as palavras: era o viver que
garantia a sua inocência. E é unicamente da morte que ele extraiu uma
culpabilidade hoje lendária. Que significa, além disso, esse
comendador de pedra, essa fria estátua posta em movimento para punir o sangue
e a coragem que ousaram pensar? Todos os poderes da Razão eterna, da ordem,
da moral universal, toda a grandeza estrangeira de um Deus acessível à cólera
se resumem nele. Essa pedra gigantesca e sem alma simboliza tão-somente os
poderes que Don Juan para sempre recusou. O raio e o trovão podem voltar ao
céu fictício onde os invocaram. A verdadeira tragédia se desenrola afastada
deles. Não, não é sob uma mão de pedra que Don Juan morre. Acredito
tranqüilamente na bravata legendária, nesse riso insensato do homem são que
provoca um deus que não existe. Mas acredito, sobretudo, que nessa noite em
que Don Juan esperava em casa de Ana, o comendador não veio e que o ímpio
teve de sentir, depois da meia-noite, a terrível amargura dos que tiveram
razão. Aceito ainda mais tranqüilamente o relato de sua vida que o faz
esconder-se para acabar num convento. Não é que o lado edificante da história
pudesse ser considerado verossímil. Que refúgio ia pedir a Deus? Mas isso
representa principalmente o resultado de uma vida inteira crivada de absurdo,
o desenlace feroz de uma existência voltada para as alegrias sem amanhã. O
gozo termina ali, na ascese. É preciso compreender que elas podem ser como as
duas faces de um mesmo desnudamento. Que imagem mais aterrorizante desejar
que essa de um homem traído pelo corpo e que, à falta de ser morto no tempo
próprio, consuma a comédia esperando o fim face a face com esse deus que ele
não adora, servindo-o como serviu a vida, ajoelhado diante do vazio, os
braços estendidos para um céu sem eloqüência, que ele também sabe sem
profundidade? Vejo Don Juan numa cela desses mosteiros
espanhóis perdidos no alto de uma colina. E, se ele olha alguma coisa, não
são os fantasmas dos amores desaparecidos, mas talvez, por uma seteira abrasadora,
alguma silenciosa planície da Espanha, terra magnífica e sem alma em que ele
se reconhece. Sim, é nessa imagem melancólica e refulgente que é preciso
parar. O fim definitivo, esperado mas nunca desejado, o fim definitivo é
desprezível. “O espetáculo”, diz Hamlet, "eis a
armadilha com que apanharei a consciência do rei". Apanhar é a palavra
certa. Porque a consciência anda depressa ou se encolhe. É preciso capturá-la
em pleno vôo, nesse momento inestimável em que ela lança sobre si mesma um
olhar fugaz. O homem cotidiano não gosta nada de perder tempo. Tudo o
impulsiona no sentido oposto. Mas, ao mesmo tempo, nada lhe interessa mais do
que ele próprio, sobretudo quanto ao que ele poderia ser. Daí seu gosto pelo
teatro, pelo espetáculo, em que lhe são propostos tantos destinos de que ele
recebe a poesia sem lhes sofrer a amargura. Pelo menos ali se reconhece o
homem inconsciente e continua a se apressar para sabe-se lá que esperança. O
homem absurdo começa onde este último termina, e onde, parando de admirar o
jogo, o espírito quer entrar nele. Penetrar em todas essas vidas, experimentá-las
em sua diversidade, é exatamente reapresentá-las. Não digo que os atores em
geral correspondam a esse apelo, que eles são homens absurdos, mas que seu
destino é um destino absurdo que poderia seduzir e atrair um coração aberto.
Isso era necessário apresentar para entender sem contra-senso o que se segue. O ator reina no perecível. É sabido que
de todas as glórias a sua é a mais efêmera. Isso pelo menos é dito nas
conversas. Mas todas as glórias são efêmeras. Do ponto de vista de Sírius, as
obras de Goethe dentro de dez mil anos serão pó, e seu nome será esquecido.
Alguns arqueólogos, quem sabe, procurarão "testemunhos" do nosso
tempo. Essa idéia sempre tem sido educativa. Bem considerada, ela reduz as
nossas agitações à nobreza profunda que se acha na indiferença e principalmente
orienta as nossas preocupações para o mais seguro, isto é, para o imediato.
De todas as glórias, a menos enganosas é a que se vive. O ator escolheu, portanto, a glória
incontável, aquela que se consagra e se experimenta. É ele quem extrai a
melhor conclusão desse fato de que, um dia, tudo: tem de morrer. Um ator tem
sucesso ou não o tem: Um escritor mantém uma esperança mesmo se é desconhecido.
Supõe que suas obras testemunharão o que ele foi. O ator nos deixará, no
máximo, uma fotografia e nada do que ele era: seus gestos e seus silêncios,
seu fôlego estrito ou sua respiração no amor não chegará até nós. Não ser
conhecido dele é não representar e não representar é morrer cem vezes em
todos os seres que ele teria animado ou ressuscitado. O que há de assombroso em achar uma
glória perecível edificada sobre as mais efêmeras das criações? O ator tem
três horas para ser Iago ou Alceste, Fedra ou Gloucester. Nessa curta
passagem, ele os faz nascer e morrer sobre cinqüenta metros quadrados de
tablado. Jamais o absurdo foi tão bem ou por tão longo tempo ilustrado. Essas
vidas maravilhosas, esses destinos únicos e completos que crescem e se acabam
entre paredes e em algumas horas, que síntese mais reveladora desejar? Ao
deixar o palco, Sigismundo não é mais nada. Duas horas depois, é visto
jantando fora. É talvez nesses momentos que a vida é um sonho. Mas depois de
Sigismundo vem um outro. O herói que sofre de incerteza substitui o homem que
ruge após sua vingança. Percorrendo assim os séculos e os espíritos, imitando
o homem tal como pode ser e tal como é, o ator se junta a esse outro
personagem absurdo que é o viajante. Como este, ele esgota alguma coisa e
caminha incessantemente. É o viajante do tempo e, no caso dos melhores, o
viajante perseguido pelas almas: Se a moral da quantidade não pudesse nunca
encontrar um alimento, se daria bem com essa cena singular. Em que medida o
ator se beneficia desses personagens, é difícil dizer. Mas o importante não
está aí. Trata-se de saber, apenas, até que ponto ele se identifica com essas
vidas insubstituíveis. Acontece, realmente, que ele as transporta consigo, e
que elas excedem sutilmente o tempo e o espaço em que nasceram: acompanham o
ator, que já não se separa facilmente daquilo que ele foi. Ocorre que, para
pegar o seu copo, ele redescobre o gesto de Hamlet levantando a taça. Não,
não é tão grande a distância que o separa dos seres que ele faz viver.
Ilustra, então, todos os meses, ou todos os dias, e abundantemente, essa
verdade tão fecunda de que não há fronteira entre o que um homem quer e o que
ele é. Até que ponto o parecer faz o ser é o que ele demonstra, se ocupando
sempre de representar cada vez melhor. Porque esta é a sua arte, a de fingir
totalmente, de entrar o mais fundo possível em vidas que não são as suas. Ao
final de seu esforço, sua vocação se aclara: aplicar-se de todo o coração em
não ser nada ou em ser muitos. Quanto mais estreito é o limite que lhe é dado
para criar seu personagem, tanto mais necessário lhe é o talento. Vai morrer
dentro de três horas sob o rosto que hoje é o seu. É preciso que em três
horas experimente e expresse todo um destino excepcional. Isso se chama
perder-se para se reencontrar. Dentro de três horas, ele vai até o fim do
caminho sem saída que o homem da platéia leva a vida inteira para percorrer. Mimo do perecível, o ator só se exerce e
se aperfeiçoa na aparência. A convenção do teatro é que o coração se exprime
e se faz compreender apenas pelos gestos e no corpo — ou pela voz, que é
tanto alma quanto corpo. A lei dessa arte quer que tudo seja ampliado e se
traduza em carne. Se fosse preciso, em cena, amar como se ama, usar essa insubstituível
voz do coração, olhar como se contempla, nossa linguagem ficaria cifrada.
Aqui os silêncios têm de se fazer entender. O amor eleva o tom e a própria
imobilidade deve integrar o espetáculo. O corpo é rei. Não é
"teatral" quem quer e essa palavra, erroneamente desconsiderada,
compreende toda uma estética e toda uma moral. A metade de uma vida -humana
se passa em subentender, desviar a cabeça e se calar. O ator, aqui, é o
intruso. Quebra o encanto dessa alma acorrentada e as paixões enfim se lançam
sobre a cena. Falam em todos os gestos, vivem somente de gritos. Assim o ator
compõe seus personagens para a exibição. Desenha-os ou os esculpe, funde-se
com sua forma imaginária e dá a seus fantasmas o seu sangue. Falo do grande
teatro, é claro, o que dá ao ator a oportunidade de preencher seu destino
todo físico. Vejam Shakespeare. Nesse teatro essencialmente do movimento são
os furores do corpo que dirigem a dança. Eles explicam tudo. Sem eles, tudo
se desmoronaria. Jamais o Rei Lear iria ao seu encontro marcado com a loucura
sem o gesto brutal que exila Cordélia e condena Edgar. É justo, então, que
essa tragédia se desenvolva sob o signo da demência. As almas estão entregues
aos demônios e à sua sarabanda. Nada menos que quatro loucos, um por ofício,
outro por vontade, os dois últimos por aflição: quatro corpos desordenados,
quatro rostos indizíveis de uma mesma condição. A própria escala do corpo humano é
insuficiente. A máscara e os coturnos, a maquiagem que reduz e acentua o
rosto em seus elementos essenciais, os figurinos que exageram e simplificam,
esse universo sacrifica tudo à aparência e é feito apenas para o olho. Por um
milagre absurdo, é também o corpo que traz o conhecimento. Eu jamais
compreenderia bem Iago senão o representando. Não me adianta ouvi-lo: eu só o
apreendo no momento em que o vejo. Do personagem absurdo, o ator
conseqüentemente tem a monotonia, essa silhueta única, atordoante, a um tempo
estranha e familiar, que ele faz passear através de todos os personagens.
Também aí a grande obra teatral favorece essa unidade de tom.[22] E aí que o ator se contradiz: o mesmo
e, no entanto, tão diverso, tantas almas resumidas por um só corpo. Mas é a
própria contradição absurda esse indivíduo que quer atingir tudo e viver
tudo, essa vã tentativa, essa teimosia sem paradeiro. O que sempre se
contradiz, no entanto, nele se une. Ele está nesse lugar em que o corpo e o
espírito se reencontram e se ligam, em que o segundo, cansado de seus
fracassos, se volta para seu mais fiel aliado. "E abençoados sejam
aqueles" diz Hamlet "cujo sangue e julgamento são tão curiosamente
misturados que eles não são flauta em que o dedo da fortuna faz cantar o
buraco que lhe apraz". Como a Igreja não teria condenado
semelhante exercício por parte do ator? Ela repudiava nessa arte a
multiplicação herética das almas, a intemperança das emoções, a pretensão
escandalosa de um espírito que se recusa a só viver um destino e se precipita
em todos os excessos. Ela lhe prescrevia esse gosto do presente e esse
triunfo de Proteu que são a negação de tudo o que ela ensina. A eternidade
não é um jogo. Um espírito bastante insensato para preferir a ela uma comedia
não tem mais salvação. Entre "por toda parte" e "sempre",
ele não tem compromisso. Daí esse ofício tão depreciado poder originar um
conflito espiritual descomedido. "O que importa" diz Nietzsche
"não é a vida eterna, é a eterna vivacidade". Todo o drama está
realmente nessa escolha. Adriana Lecouvreur, em seu leito de
morte, consentiu em se confessar e comungar, mas se recusou a abjurar sua
profissão. Perdeu, por isso, o benefício confessional. O que era isso, pois,
realmente, senão tomar contra Deus o partido de sua profunda paixão? E essa
mulher em agonia, recusando entre lágrimas renegar o que chamava sua arte,
provava uma grandeza que jamais atingira diante da ribalta. Foi seu mais belo
papel, e o mais difícil de desempenhar. Escolher entre o céu e uma irrisória
fidelidade, se preferir à eternidade ou a se submergir em Deus é a tragédia
secular em que é preciso tomar parte. Os comediantes da época se sabiam
excomungados. Ingressar na profissão era escolher o Inferno. E a Igreja
distinguia neles seus piores inimigos. Alguns literatos se indignam:
"Imagine, recusar a Molière os últimos: socorros!" Mas isso era
justo para aquele que morreu em cena e encerrou sob a pintura do rosto uma
vida inteira devotada à dispersão. Invoca-se a seu respeito o gênio que
dispensa tudo. Mas o gênio não dispensa nada, exatamente porque se recusa a
isso. O ator sabia, então, que punição lhe
estava reservada. Mas que sentido podiam ter tão vagas ameaças diante do
último castigo que a vida lhe preparava? Era esse que ele antecipadamente
experimentava, e aceitava por inteiro. Para o ator, como para o homem
absurdo, uma morte prematura é irreparável. Nada pode compensar a soma dos
rostos e dos séculos que ele, sem isso, teria percorrido. Mas, seja como for,
se trata de morrer. Porque o ator está sem dúvida em toda parte, mas o tempo
também o acorrenta e exerce sobre ele seu efeito. Basta então um pouco de imaginação para
sentir o que significa um destino de ator. É no tempo que ele compõe e
enumera seus personagens. É também no tempo que aprende a dominá-los. Quanto
mais vidas diferentes ele viveu, melhor se separa delas. Chega o tempo em que
é preciso morrer no palco e no mundo. O que ele viveu está diante dele. Vê
com clareza. Sente o que essa aventura tem de dilacerante e de insubstituível.
Ele sabe e pode, agora, morrer. Há casas de repouso para velhos comediantes. "Não", diz o conquistador,
"não creia que por amar a ação me foi preciso desaprender a pensar. Ao contrário,
posso perfeitamente definir aquilo em que acredito. Porque acredito com força
e vejo-o com uma visão clara e precisa": Desconfie dos que dizem:
"Isso eu conheço bem demais -para poder exprimi-lo”. Porque, se não o
podem, é porque não o conhecem ou porque, por preguiça, pararam na casca. Não tenho muitas opiniões. No final de
uma vida, o homem percebe que passou anos se convencendo de uma única
verdade. Mas uma só se é evidente, é bastante para a direção de uma
existência. No meu caso, decididamente tenho alguma coisa a dizer sobre o
indivíduo. Deve-se falar disso com aspereza e, se preciso, com o devido
desprezo. Um homem é um homem mais pelas coisas
que cala do que pelas que diz. Não falta muito para eu me calar. Mas acredito
firmemente que todos aqueles que julgaram o indivíduo o têm feito com muito
menos experiência do que nós para fundamentar seu julgamento. A inteligência,
a comovedora inteligência talvez tenha pressentido o que era preciso
verificar. Mas a época, suas ruínas e seu sangue nos cumulam de evidências. Era possível a povos antigos, e mesmo
aos mais recentes antes da nossa era maquinal, pesar os prós e contras da
sociedade e do indivíduo, procurar qual devia servir 0 outro. Isso era
possível, antes de tudo, em vista dessa aberração insistente no coração do
homem e segundo a qual os seres foram postos no mundo para servir ou serem
servidos. E era possível, também, porque nem a sociedade nem o indivíduo tinham
ainda mostrado toda a sua aptidão. Vi espíritos sensatos se maravilharem
com obras-primas de pintores holandeses nascidos no coração das sangrentas
guerras de Flandres e se comoverem com as preces dos místicos silesianos
elevadas em meio à pavorosa Guerra dos Trinta Anos. Os valores eternos, ante
seus olhos assombrados, sobrenadam acima dos tumultos seculares. Mas o tempo
continuou andando. Os pintores de hoje estão privados dessa serenidade. Mesmo
se têm no fundo o coração necessário ao criador, um coração seco, quero
dizer, ele não é de nenhuma utilidade, pois toda o mundo e o próprio santo
estão mobilizados. Eis aí, talvez, o que senti mais profundamente. A cada
forma abortada nas trincheiras, a cada traço, metáfora ou oração triturada
sob as ferragens, o eterno perde uma partida. Consciente de que não posso me
separar do meu tempo, resolvi ser unha e carne com ele. É porque não ligo
muito para o indivíduo a não ser que me pareça ridículo e humilhado. Ciente
de que não há causas vitoriosas, tomo gosto pelas causas perdidas: elas
requerem uma alma inteira, igual à sua derrota, como a suas vitórias
passageiras. Para quem se sente solidário com o destino desse mundo, o choque
das civilizações tem alguma coisa de angustiante. Fiz minha essa angústia, ao
mesmo tempo que quis jogar aí minha partida. Entre a história e o eterno
escolhi a história porque gosto das certezas. Pelo menos dela estou certo, e
como negar esta força que me esmaga? Acaba sempre chegando um tempo em que é
preciso escolher entre a contemplação e a ação. Chama-se isso se tornar um
homem. Essas dilacerações são terríveis. Mas, para um coração orgulhoso, não
pode haver meio termo. Há Deus ou o tempo, essa cruz ou essa espada. Esse
mundo tem um sentido mais alto, que ultrapassa as suas agitações, ou não há
nada verdadeiro a não ser essas agitações. É necessário viver com o tempo e
morrer com ele ou se subtrair a ele para uma vida maior. Sei que se pode
transigir e que se pode viver no século acreditando no eterno. Isso se chama
aceitar. Mas essa palavra me repugna, e eu quero tudo ou nada. Se escolher a
ação, não pense que a contemplação me seja como uma terra desconhecida. Mas
ela não pode me dar tudo e, privado do eterno, quero me aliar ao tempo. Não
quero fazer constar na minha conta nem saudade nem amargura: só quero é ver
com clareza. É como lhe digo: amanhã você será mobilizado. Para você e para
mim, isso é uma libertação. O indivíduo não pode nada e, no entanto, pode
tudo. Nessa maravilhosa disponibilidade você compreende por que o exalto e o
esmago ao mesmo tempo. E o mundo que o tritura e sou eu que o liberto. Eu lhe
forneço todos os seus direitos. Os conquistadores sabem que a ação, em
si, é inútil. Só existe uma ação útil: a que restaura o homem e a terra. Eu
não vou nunca restaurar os homens. Mas é preciso fazer "como se".
Pois o caminho da luta me leva a redescobrir a carne. Mesmo humilhada, a
carne é a minha única certeza. Só posso viver dela. A criatura é a minha
pátria. Eis por que escolhi esse esforço absurdo e sem perspectiva. Eis por
que estou do lado da luta. A época se presta a isso, já o disse.
Até aqui a grandeza de um conquistador era geográfica. Media-se pela extensão
dos territórios vencidos. Não é por acaso que a palavra mudou de sentido e já
não designa o general vencedor. A grandeza mudou de campo. Ela está no
protesto e no sacrifício sem futuro. Também aí, não é por gosto da derrota. A
vitória seria desejável. Mas só há uma vitória, e é eterna. É a que nunca
terei. Eis para onde eu aponto e ao que me agarro. Uma revolução sempre se
realiza contra os deuses, a começar por aquela de Prometeu, o primeiro dos
conquistadores modernos. É uma reivindicação do homem contra seu destino: a
reivindicação do pobre é apenas um pretexto. Mas eu só posso me apoderar
desse espírito em seu ato histórico e é aí que o encontro. Não acredite,
porém, que me deleito com isso: ante a contradição essencial, sustento minha
humana contradição. Instalo minha lucidez no meio daquilo que a desmente.
Exalto o homem diante do que o esmaga e minha liberdade, minha revolta e
minha paixão se reúnem assim nessa tensão, nesse discernimento e nessa
repetição desmesurada. Sim, o homem é seu próprio fim. E é seu
único fim. Se quiser ser alguma coisa, é nesta vida. Agora, eu o sei de
sobra. Algumas vezes, os conquistadores falam de vencer e dominar. Mas é
sempre "se dominar" que eles ouvem. Você bem sabe o que isso quer
dizer. Todo homem se sentiu, em certos momentos, igual a um deus. É pelo
menos assim que o dizem. Mas isso provém de que, num clarão, ele sentiu a
espantosa grandeza do espírito humano. Os conquistadores são apenas aqueles
dentre os homens que sentem suficientemente sua força para estarem seguros de
viver todo o tempo em suas alturas e na plena consciência dessa grandeza. É
uma questão aritmética, de mais ou de menos. Os conquistadores podem mais.
Mas eles não podem mais que o próprio homem, quando o quer É por que eles não
deixam nunca o crisol humano, que mergulha todo em brasa na alma das
revoluções. Eles encontram a criatura mutilada, mas
também redescobrem os únicos valores que amam e que admiram, o homem e seu
silêncio. E ao mesmo tempo sua miséria e sua riqueza. Para eles, só existe um
luxo o das relações humanas. Como não compreender que nesse universo
vulnerável tudo o que é humano, e nada mais que isso, adquire um sentido mais
acalorado? Rostos estendidos, fraternidade ameaçada, amizade tão for te e
tão pudica dos homens entre si, são as verdadeiras riquezas, porque são
perecíveis. É no meio deles que o espírito sente melhor o seu, poder e
limite. Numa palavra, sua eficácia. Alguns falaram de gênio. Mas ao gênio — é
bom ir dizendo logo — prefiro a inteligência: E preciso dizer que ela pode
então ser magnífica. Aclara esse deserto e o domina. Conhece suas servidões e
as ilustra. Morrerá ao mesmo tempo que esse corpo. Mas o saber é a sua
liberdade. Nós não o ignoramos: todas as Igrejas
estão contra nós. Um coração tão aplicado se esquiva ao eterno e todas as
Igrejas, divinas ou políticas, aspiram ao eterno. A felicidade e a coragem, o
salário ou a justiça é, para elas, fins secundários. É uma doutrina que
trazem e nos impõem subscrever. Mas eu não tenho nada a fazer com as idéias
ou com o eterno. As verdades que estão na minha escala podem ser tocadas com
a mão. Não posso me separar delas. Eis por que você não pode basear nada em
mim: nada do conquistador dura muito, sequer suas doutrinas. No extremo de tudo isso, apesar de tudo,
está a morte. Nós sabemos. Sabemos também que ela liquida tudo. Eis por que
esses cemitérios que cobrem a Europa, e que obsedam alguns dentre nós, são
horrorosos. Só se embeleza aquilo que se ama e a morte nos repugna, nos
fatiga. Também ela está conquistando. O último Carrara, prisioneiro numa
Pádua esvaziada pela peste, sitiada pelos venezianos, percorria aos urros as
salas do seu palácio deserto: apelava para o demônio e lhe pedia a morte. Era
uma forma de superá-la. E é ainda um traço de coragem próprio do Ocidente ter
tornado tão horríveis os lugares em que a morte se crê honrada. No
universo do revoltado, a morte exalta a injustiça. Ela é o supremo abuso. Outros, igualmente sem transigir,
escolheram o eterno e denunciaram a ilusão deste mundo. Seus cemitérios
sorriem, povoados de flores e de pássaros. Isso convém ao conquistador e lhe
dá a imagem clara do que ele repeliu. Escolheu, ao contrário, a cerca de
ferro preto ou a vala comum. Os melhores dentre os homens do eterno às vezes
se sentem tomados de um espanto repleto de consideração e piedade diante de
espíritos que podem viver com uma semelhante imagem de sua morte. No entanto,
esses espíritos extraem daí a sua força e a sua justificação. Nosso destino
está diante de nós e é ele que desafiamos. Menos por orgulho do que por
consciência da nossa condição sem perspectiva. Também nós, até nós temos às vezes
piedade de nós mesmos. É a única compaixão que nos parece aceitável: um
sentimento que talvez você não compreenda e ache pouco viril. No entanto, são
os mais audaciosos dentre nós que o experimentam. Mas nós chamamos viris os
lúcidos e não queremos uma força que se separe da lucidez. * * * Uma vez mais não são morais que essas
imagens propõem, e não implicam julgamentos: são desenhos. Só delineiam um
estilo de vida. O amante, o comediante ou o aventureiro representa o absurdo.
Mas de igual modo, se o quiserem, o casto, o funcionário ou o presidente da
república. Basta saber e não mascarar nada: Nos museus italianos encontram-se
às vezes pequenas telas pintadas que o padre mantinha diante do rosto ' dos
condenados para lhes esconder o cadafalso. O salto em todas as suas formas, a
precipitação no divino ou ; no eterno, a entrega às ilusões do cotidiano ou
da idéia, todas essas telas escondem o absurdo. Mas há funcionários sem telas
e é desses que eu quero falar. Escolhi os mais extremados. A esse
ponto, o absurdo lhes dá um poder real. É verdade que esses príncipes estão
sem reino, mas eles têm sobre os outros a vantagem de saber que todas as
realezas são ilusórias. Eles sabem, eis aí toda a sua grandeza, e é inútil
querer falar seu respeito de infelicidade secreta ou das cinzas da desilusão.
Estar crivado de esperança não é desesperar. As chamas da terra bem valem os
perfumes terrestres. Nem eu nem ninguém podemos julgá-los aqui. Eles não
procuram ser melhores: tentam ser conseqüentes. Se a palavra sábio se aplica
ao homem que vive do que tem sem especular sobre o que não tem, então aqueles
são sábios. Um deles, conquistador, mas no terreno do espírito, Don Juan, mas
do conhecimento, comediante, mas da inteligência, sabe-o melhor que qualquer
um "Não se merece de maneira alguma um privilégio sobre a terra e no céu
quando se levou uma querida e suave doçura de carneiro até a perfeição: não
se continua me nos, na melhor das hipóteses, a ser um caro carneirinho
ridículo e nada mais — mesmo admitindo que não se arrebente de vaidade e que
não se provoque escândalo com as atitudes de juiz”. Era preciso, em todo caso, devolver ao
raciocínio absurdo rostos mais calorosos. A imaginação pode acrescentar
muitos outros, revirados no tempo e no exílio, que também sabem viver de
conformidade com um universo sem futuro e sem fraqueza. Esse mundo absurdo e
sem deus se povoa então de homens que pensam claro ° não esperam mais. E
ainda não falei do mais absurdo dos personagens, que é o criador. Todas essas vidas conservadas no ar
rarefeito do absurdo não se saberiam sustentar sem algum pensamento profundo
e constante que as anima com sua força. Mesmo esta só pode ser um singular
sentimento de fidelidade. Viram-se homens conscientes desempenhar sua tarefa
em meio às mais estúpidas guerras sem se acreditarem numa contradição. E que
se tratava de não se esquivar a nada. Há, desse modo, uma felicidade
metafísica a sustentar a absurdidade do mundo. A conquista ou o jogo, o amor
inumerável, a revolta absurda são homenagens que o homem presta à sua
dignidade numa campanha em que ele está antecipadamente vencido. Trata-se apenas de ser fiel à regra do
combate. Esse pensamento pode ser suficiente para alimentar um espírito: ele
sustentou e sustenta civilizações inteiras. Não se nega a guerra. Tem de se
morrer ou viver com ela. De igual modo o absurdo: trata-se de respirar com
ele, de reconhecer suas lições e redescobrir sua carne. Quanto a isso, a
alegria absurda por excelência é a caiação. "A arte e nada além da
arte”, diz Nietzsche; "temos a arte para não sermos mortos pela
verdade". Na experiência que tento descrever e
fazer sentir de diversos modos, é certo que aparece um tormento em cada ponto
em que morre outro. A busca pueril do esquecimento, o apelo da satisfação
fica agora sem eco. Mas a tensão constante que mantém o homem diante do
mundo, o delírio organizado que o impele a acolher tudo lhe deixam uma outra
febre. Nesse universo, a obra é então a única possibilidade de se manter a consciência
e se fixar em suas aventuras. Criar é viver duas vezes. A busca tateante e
ansiosa de um Proust, sua meticulosa coleção de flores, de tapeçarias e de
angústias não significam outra coisa. Ao mesmo tempo, ela não tem outra
perspectiva senão a criação contínua e inestimável a que se entregam, todos
os dias de sua vida, o comediante, o conquistador e todos os homens absurdos.
Todos se empenhavam em imitar, repetir e recriar a realidade deles. Nós
acabamos sempre ficando com a cara das nossas verdades. A existência inteira,
para um homem que se desviou do eterno, é tão-somente um mimo desmesurado sob
a máscara do absurdo. E esse grande mimo é a criação. Antes de tudo, esses homens sabem, e seu
esforço, depois, é de percorrer, ampliar e enriquecer a ilha se futuro em que
acabam de aportar. Mas é preciso, ante de tudo, saber. Porque a descoberta
absurda coincide com um momento em que se pára, elaborando e legitimando as
paixões futuras. Até os homens sem evangelho têm o seu monte das Oliveiras. E
também sobre o deles não se deve adormecer. Para o homem absurdo, já não se
trata de explicar e resolver, mas de experimentar e descrever. Tudo começa
pela indiferença lúcida. Descrever, eis a última ambição de um
pensamento absurdo. Também a ciência, tendo chegado ao fim seus paradoxos,
cessa de propor e pára a fim de contemplar e desenhar a paisagem sempre
virgem dos fenômenos. O coração, assim, aprende que essa emoção que nos
arrebata diante dos rostos do mundo não nos vem de sua profundeza, mas de sua
diversidade. A explicação é inútil, mas a sensação permanece e, com ela, os
apelos incessantes de um universo inesgotável em quantidade. Compreende-se,
agora, o lugar da obra de arte. Ela marca ao mesmo tempo a morte de uma experiência
e sua multiplicação. É como uma repetição monótona e apaixonada dos temas já
orquestrados pelo mundo: o corpo, inesgotável imagem no frontão dos templos,
as formas ou as cores, o número ou o desgosto. Portanto, não é indiferente
para terminar, reencontrar os principais temas deste ensaio no universo
magnífico e infantil do criador. Não seria certo ver um símbolo nisso e acreditar
que a obra de arte possa ser considerada, afinal, como um refúgio para o
absurdo. Ela é em si mesma um fenômeno absurdo e só tratamos de sua descrição.
Ela não oferece uma saída à doença do espírito. É, ao contrário, um dos
signos dessa doença que a faz repercutir em todo o pensamento de um homem.
Mas primeira vez ela induz o espírito a sair de si mesmo e o situa diante de
outrem, não para que se perca nisso, mas para lhe mostrar com um dedo preciso
o caminho sem saída a que todos estão ligados. No tempo do raciocínio
absurdo, a criação acompanha a indiferença e a descoberta. Ela fixa o ponto
de onde as paixões absurdas se atiram, e em que o raciocínio pára. Assim se
justifica o seu lugar neste ensaio. Bastará trazer à tona alguns temas
comuns ao caiador e ao pensador para que reencontremos na obra de arte todas
as contradições do pensamento comprometido com o absurdo. Efetivamente, o
parentesco das inteligências se faz menos através de conclusões idênticas do
que de contradições que lhes são comuns. Assim também o pensamento e a
criação. Nem precisaria dizer que é um mesmo tormento que impele o homem a
essas atitudes. É nisso que elas coincidem logo de saída. Mas, entre todos os
pensamentos que partem do absurdo, vi que muito poucos se mantêm nele. E é em
suas separações ou suas infidelidades que melhor medi o que só pertencia ao
absurdo. Paralelamente, devo me perguntar: é possível uma obra absurda? Nunca seria demais insistir no
arbitrário da antiga oposição entre arte e filosofia. Caso se queira
entendê-la em sentido estrito, ela é inequivocamente falsa. Caso somente se
queira dizer que essas duas disciplinas têm, cada uma, seu clima particular,
isso é sem dúvida verdadeiro, mas muito vago. A única argumentação aceitável
residia na contradição suscitada entre o filósofo fechado no meio de
seu sistema e o artista colocado diante de sua obra. Mas isso valia
para uma certa forma de arte e de filosofia que nós, agora, consideramos
secundária. A idéia de uma arte separada de seu criador não se
acha apenas fora de moda. É falsa. Por oposição ao artista, observa-se que
nunca nenhum filósofo fez diversos sistemas. Mas isso é verdadeiro na mesma
proporção em que nunca nenhum artista exprimiu mais que uma só coisa sob
diferentes faces. A perfeição instantânea da arte, a necessidade de sua
renovação, isso só é verdadeiro por preconceito. Porque a obra de arte também
é uma construção e todos sabem como os grandes criadores podem ser monótonos.
O artista, pela mesma razão que o pensador, se compromete e se transforma na
sua obra. Essa osmose suscita o mais importante dos problemas estéticos. Por
fim, não há nada mais inútil do que essas distinções segundo os métodos e os
objetos para quem se persuade da unidade de propósito do espírito. Não há
fronteiras entre as disciplinas que o homem apresenta para compreender e
amar. Elas se interpenetram e a mesma angústia as confunde. É necessário dizer isso para começar. Para
que seja possível uma obra absurda, é preciso que o pensamento esteja
amalgamado com ela em sua mais lúcida forma. Mas é preciso, ao mesmo tempo,
que ele não apareça nela senão como a inteligência que organiza. Esse
paradoxo se explica de acordo com o absurdo. A obra de arte nasce da renúncia
da inteligência a raciocinar sobre o concreto. Ela assinala o triunfo do
carnal. É o pensamento lúcido que a origina, mas nesse próprio ato ela se
desprende. Não cederá à tentação de sobrepor ao descrito um sentido mais
profundo que ela sabe ilegítimo. A obra de arte encarna um drama da
inteligência, mas só indiretamente apresenta a sua prova. A obra absurda
exige um artista consciente desses limites e uma arte em que o concreto não
significa nada mais do que ele próprio. Ela não pode ser o fim, o sentido e a
consolarão de uma vida. Criar ou não criar, isso não altera nada. O criador
absurdo não depende de sua obra. Poderia renunciar a ela. Algumas vezes
renuncia. Basta uma Abissínia. Pode-se ver aí, ao mesmo tempo, uma
norma de estética. A verdadeira obra de arte é sempre proporcional ao homem.
É essencialmente aquela que diz "manos". Há certa relação entre a
experiência global de um artista e a obra que a reflete, entre Wilhelm
Meister e a maturidade de Goethe. Essa relação é má quando a obra
pretende dar toda a experiência no papel filigranado de uma literatura de
explicação. Essa relação é boa quando a obra só é um fragmento recortado na
experiência, uma faceta do diamante em que o clarão interior se resume sem se
limitar. No primeiro caso, há sobrecarga e pretensão ao eterno. No segundo,
obra fecunda por causa de todo um subentendido de experiência cuja riqueza se
adivinha. O problema, para o artista absurdo, é adquirir esse conhecimento da
vida que ultrapassa a habilidade do fazer. Para terminar, o grande artista
sob esse clima é acima de tudo um homem que vive intensamente,
compreendendo-se que; nesse caso, é tanto experimentar como refletir. A obra,
portanto, encarna um drama intelectual. A obra absurda ilustra a renúncia do
pensamento a seus encantos e sua resignação a não ser mais do que a
inteligência que converte em trabalho as aparências e cobre de imagens o que
não é racional. Se o mundo fosse claro, a arte não o seria. Não falo aqui das artes da forma ou da
cor em que só reina a descrição em sua esplêndida modéstia.[23] A expressão começa onde o pensamento
acaba. Foi toda colocada em gestos a filosofia desses adolescentes de olhos
vazios que povoam os templos e os museus. Para um homem absurdo, ela é mais
esclarecedora que todas as bibliotecas. Sob um outro aspecto, acontece o
mesmo com a música. Se uma arte é destituída de ensinamento, é exatamente
isso. Ela se aparenta muito com as matemáticas para não lhes ter tomado
emprestado a gratuidade. Esse jogo do espírito consigo mesmo segundo leis
estipuladas e medidas se desenrola no espaço sonoro que é o nosso e além do
qual as vibrações, no entanto, se reencontram num universo inumano. Não pode
haver sensação mais pura. Esses exemplos são bastante fáceis. O homem absurdo
reconhece como suas essas harmonias e essas formas. Mas eu gostaria de falar, agora, de uma
obra e que a tentação de explicar permanece a maior de todas, em que a ilusão
é em si mesma intencional e em que a conclusão é quase infalível. Refiro-me à
criação romanesca. Terei de me perguntar se o absurdo pode se manter nela. Pensar é, antes de tudo, querer criar um
mundo (ou limitar o seu, o que vem a dar no mesmo). É partir do desacordo
fundamental que separa o homem de sua experiência para encontrar um terreno
de interpretação conforme sua nostalgia, um universo espartilhado de razões
ou aclarado de analogias que permite resolver o divórcio insuportável. O
filósofo, mesmo se for Kant, é criador: Tem os seus personagens, seus
símbolos e sua ação secreta. Como tem seus desenlaces. Inversamente, o passo
adotado pelo romance em relação à poesia e ao ensaio representa apenas, e
apesar das aparências, uma intelectualizarão maior da arte. Entendamos bem,
trata-se, sobretudo dos maiores. A fecundidade e a grandeza de um gênero se
medem, freqüentemente, com o descrédito em que se encontra. A quantidade de
maus romances não deve fazer esquecer a grandeza dos melhores. São exatamente
estes que trazem com eles seu universo. O romance tem sua lógica, seus raciocínios,
sua intuição, seus postulados. Também tem suas exigências de clareza.[24] A oposição clássica de que eu falava
acima se legitima ainda menos nesse caso particular. Ela valia no tempo em
que era fácil separar a filosofia de seu autor. Hoje, quando o pensamento já
não pretende o universal, quando sua melhor história seria a de seus
arrependimentos, sabemos que o sistema, quando é válido, não se separa de seu
autor. A própria Ética, em um de seus aspectos, não passa de uma longa e
rigorosa coincidência. O pensamento abstrato redescobre, enfim, o seu apoio
na carne. E de igual modo os jogos romanescos do corpo e das paixões se
organizam um pouco mais segundo uma visão do mundo. Já não se contam
histórias: cria-se o seu universo. Os grandes romancistas são romancistas filósofos,
isto é, o contrário dos escritores de tese. Assim Balzac, Sade, Melville,
Stendhal, Dostoiévski, Proust, Malraux, Kafka, para só citar alguns deles. Mas justamente a escolha que eles
fizeram de escrever mais em imagens do que em raciocínios é indicadora de um
certo pensamento que lhes é comum, persuadido aa inutilidade de todo
princípio de explicação e convencido da elucidativa mensagem da aparência
sensível. Eles consideram a obra ao mesmo tempo como um fim e am começo. Ela é
o resultado de uma filosofia freqüentemente inexpressa, sua ilustração e seu
coroamento. Mas só se completa pelos subentendidos dessa filosofia. Legitima,
enfim, essa variante de um tema antigo pelo qual um pouco de pensamento
afasta da vida, mas muito leva de volta a ela. Incapaz de sublimar o real, o
pensamento se detém imitando-o. O romance de que estamos tratando é o
instrumento desse conhecimento ao mesmo tempo relativo e inesgotável, tão
semelhante ao do amor. Do amor, a criação romanesca tem a admiração inicial e
a ruminação fecunda. São pelo menos os encantos que eu logo
de saída lhe reconheço. Mas também os reconhecia nesses princípios do
pensamento humilhado que pude contemplar depois dos suicidas. O que me
interessa, exatamente, é reconhecer e descrever a força que os leva de volta
ao caminho comum da ilusão. O mesmo método, pois, me servirá aqui. Tê-lo já
utilizado me permitirá sintetizar o meu raciocínio e resumi-lo sem me demorar
em exemplo estreito. Quero saber se, aceitando viver sem apelação, pode-se
também consentir em trabalhar e criar sem apelação, e qual é a estrada que
leva a essas liberdades. Quero livrar meu universo de seus fantasmas e
povoá-lo apenas das verdades de carne cuja presença não posso negar. Eu posso
fazer obra absurda, escolher a atitude criativa em vez de uma outra. Mas para
uma atitude absurda permanecer como tal tem de ficar consciente da sua
gratuidade. De igual modo a obra. Se as exigências do absurdo não são nela
respeitadas, se ela não ilustra o divórcio e a revolta, se se conforma às
ilusões e desperta a esperança, já não é gratuita. Não posso mais me separar
dela. Minha vida pode encontrar ali um sentido: isso é desprezível. Ela já
não é esse exercício de desligamento e de paixão que consome o esplendor e a inutilidade
de uma vida humana. Na criação em que a tentação de explicar
é a mais forte, pode-se assim sobrepor essa tentação? No mundo fictício em
que a mais forte consciência é a do mundo real, posso continuar fiel ao
absurdo sem me abandonar ao desejo de concluir? Tantas perguntas a encarar em
um último esforço. Já compreendemos o que elas significaram. São os últimos
escrúpulos de uma consciência que teme deixar de lado seu primeiro e difícil ensinamento
ao preço de uma última ilusão. O que vale para a criação, considerada como
uma das atitudes possíveis para o homem consciente do absurdo, vale para
todos os estilos de vida que se Ihe oferecem. O conquistador ou o ator, o
criador ou Don Juan podem esquecer que seu exercício de viver não saberia ir
adiante sem a consciência de seu caráter insensato. As pessoas se habituam
muito depressa. Querem ganhar dinheiro para viver felizes, e o máximo
esforço, o melhor de uma vida concentram nesse ganho. A felicidade é
esquecida, o meio tomado como fim. De igual modo todo o esforço" desse
conquistador vai se desviar para a ambição que só era um caminho para uma
vida maior. Don Juan, de sua parte, também vai concordar com o seu destino,
se satisfazer com essa existência cuja grandeza só vale pela revolta. Para um,
é a consciência, para o outro, revolta: em ambos os casos o absurdo
desapareceu. Já tanta esperança insistente no coração humano. Os homens mais
espoliados acabam, algumas vezes, consentindo na ilusão. Essa aprovação
ditada pela necessidade de paz é o irmão interior do consentimento
existencial. Assim, há deuses de luz e ídolos de lama. Mas é a caminho médio
que leva aos rostos do homem que temos de encontrar. Até agora são os fracassos da exigência
absurda que mais nos ensinaram a respeito dela. Do mesmo modo, para estarmos
prevenidos, nos bastará perceber que a criação romanesca pode oferecer a
mesma ambigüidade que certas filosofias. Posso escolher, portanto, para minha
ilustração, uma obra em que esteja reunido: tudo o que marca a consciência do
absurdo e em que o ponto de partida seja claro, o clima lúcido. Suas
conseqüências nos instruirão. Se o absurdo não foi ali respeitado, saberemos
por que viés a ilusão se introduz. Um exemplo preciso, um tema, uma
fidelidade de criador bastarão. Trata-se da mesma análise que já foi feita
mais extensamente. Examinarei um tema favorito de
Dostoiévski. Assim como poderia estudar outras obras.[25] Mas com aquela o problema é tratado
diretamente, no sentido da grandeza e da emoção, como para os pensamentos existenciais
de que nos ocupamos. Esse paralelismo serve ao meu objeto. Todos os heróis de Dostoievski se
interrogam sobre o sentido da vida. É nisso que eles são moderno: não temem o
ridículo. O que distingue a sensibilidade moderna da sensibilidade clássica é
que esta se nutre de problemas morais e aquela de problemas metafísicos. Nos
romances de Dostoievski a questão é apresentada' com uma tal intensidade que
só pode levar a soluções extremas. A existência é mentirosa ou ela é eterna.
Se Dostoievski se satisfizesse com esse exame, seria filósofo. Mas ele
ilustra as conseqüências que esses jogos do espírito podem ter numa vida
humana e é nisso que ele é artista. Entre tais conseqüências, é a última que
o retém aquela que ele próprio, no Diário de um escritor, chamou de
suicídio lógico. Nas folhas já prontas em dezembro de 1876 ele de fato
imagina o raciocínio do "suicídio lógico". Persuadido de que a
existência humana é uma perfeita absurdidade para quem não tem a fé na
imortalidade, o desesperado chega às seguintes conclusões: "Uma vez que, às minhas questões a
respeito da felicidade, ele me declarou em resposta, por intermédio da minha
consciência, que eu não posso ser feliz de outra maneira senão nessa harmonia
com o grande todo, que não concebo e não estarei nunca em estado de conceber,
evidentemente (...)”. "(...) Uma vez que, enfim, nessa
ordem das coisas, assumo ao mesmo tempo o papel da acusação e o da defesa, do
réu e do juiz, e uma vez que acho essa comédia por parte da natureza
inteiramente estúpida e que até considero humilhante da minha parte aceitar
trabalhar nela (...)”. "Na minha qualidade indiscutível de
acusador e defensor, de juiz e réu, condeno essa natureza que, com uma tão
impudente sem-cerimônia, me fez nascer para sofrer — eu a condeno a ser
aniquilada junto comigo." Há ainda um ponto de humor nessa
posição. Esse suicida se mata porque, no plano metafísico, ele está vexado.
Em certo sentido, ele se vinga. É a sua maneira de provar que "não o
apanharão". Sabe-se, porém, que o mesmo tema se encarna, mas com a
amplitude mais admirável, em Kirílov, personagem de Os possessos,
outro partidário do suicídio lógico. O engenheiro Kirílov declara em algum
lugar que quer acabar com a vida porque "é sua idéia". Entende-se
bem que é preciso tomar a palavra na acepção apropriada. É por uma idéia, um
pensamento que ele se prepara para a morte. É o suicídio superior.
Progressivamente, ao longo de muitas cenas em que a máscara de Kirílov se
aclara pouco a pouco, o pensamento mortal que a anima nos é exposto. O
engenheiro, de fato, retoma os raciocínios do Diário. Sente que Deus é
necessário e que é preciso demais que ele exista. Mas sabe que ele não existe
e que não pode existir. "Como você não compreende", exclama,
"que aí existe uma razão suficiente para se matar?" Essa atitude
acarreta igualmente para ele algumas das conseqüências absurdas. Ele aceita,
por indiferença, deixar utilizar seu suicídio em proveito de uma causa que
despreza. "Esta noite decidi que isso não me importava”. Prepara o gesto,
afinal, com um sentimento mesclado de revolta e liberdade: "Vou me matar
para afirmar a minha insubordinação, a minha nova e terrível liberdade”. Não
se trata mais de vingança, mas de revolta. Kirílov, portanto, é um personagem
absurdo — com essa reserva essencial, todavia, de que se mata. Más ele
próprio explica essa contradição, e de tal modo que revela ao mesmo tempo o
segredo absurdo em toda, a sua pureza. Acrescenta realmente à sua lógica
mortal uma ambição extraordinária que dá ao personagem toda a sua
perspectiva: quer se matar para virar deus. O raciocínio é de uma clareza clássica.
Se Deus não existe, Kirílov é deus. Se Deus não existe, Kirílov deve se
matar. Kirílov, portanto, deve se matar para ser deus. Essa lógica é absurda,
mas é o que se precisa. Todavia, o interessante é dar um sentido a essa
divindade reconduzida à terra. Isso volta a esclarecer a premissa: "Se
Deus não existe, eu sou deus", que ainda fica bastante obscura. É
importante observar, antes de tudo, que o homem que apregoa essa pretensão
insensata é bem deste mundo. Faz ginásticas todas as manhãs para cuidar da
saúde. Comove-se com a alegria de Chátov: reencontrando a mulher. Num papel
que se acha depois de sua morte, pretende desenhar uma figura que lhes bota a
língua de fora. É pueril e colérico, apaixonado metódico e sensível. Do
super-homem só tem a lógica e a idéia fixa, do homem todo o registro. É ele,
nó entanto, que fala tranqüilamente de sua divindade. Não é louco, ou então Dostoievski
o é. Não é, pois uma ilusão de megalômano que o agita. E tomar as palavras,
no sentido próprio seria ridículo, desta vez. O próprio Kirílov nos ajuda a
compreender melhor. Sobre um problema de Stavróguin ele esclarece que não
fala de um deus-homem. Poderíamos pensar que é pela preocupação de se
distinguir do Cristo. Mas trata-se, na verdade, de anexá-lo. Kirílov
efetivamente imagina um momento em que Jesus, morrendo, não se tornou a achar
no paraíso. Descobriu, então, que sua tortura tinha sido inútil. "As
leis da natureza", diz o engenheiro "fizeram o Cristo viver no meio
da mentira e morrer por uma mentira". Apenas nesse sentido, Jesus
encarna claramente todo o drama humano. É o homem-perfeito, sendo o que
realizou a condição mais absurda. Não é o deus-homem, mas o homem-deus. Como
ele, cada um de nós pode ser crucificado e ludibriado - e o é, numa certa
medida. A divindade de que se trata é, portanto,
completamente terrena. "Procurei durante três anos", diz Kirílov o
atributo da minha divindade e o encontrei. O atributo aa minha divindade é a
minha independência". Percebesse, daí em diante, o sentido da premissa
kiriloviana: '`Se Deus não existe, eu sou deus." Tornar-se deus é apenas
ser livre sobre esta terra, não servir um ser imortal. É, sobretudo,
indiscutivelmente, extrair todas as conseqüências dessa dolorosa
independência. Se Deus existe, tudo depende dele e nós nada podemos contra a
sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós. Para Kirílov, como para
Nietzsche, matar Deus é converter-se a si próprio em deus — é realizar nesta
terra a vida eterna de que falam os Evangelhos.[26] Mas se esse crime metafísico é
suficiente à realização do homem, por que acrescentar aí o suicídio? Por que
se matar, deixar este mundo após ter conquistado a liberdade? Isso é
contraditório. Kirílov bem o sabe, acrescentando: "Se você sente isso,
você é um czar e, longe de se matar, no auge da glória”. Mas os homens não o
sabem, não sentem "isso". Como no tempo de Prometeu, alimentam
neles esperanças cegas.[27] Têm necessidade de que se lhes mostre o
caminho e não podem abrir mão da pregação. Kirílov, portanto, deve se matar
por amor da humanidade. Deve mostrar a seus irmãos uma estrada real e difícil
na qual ele será o primeiro. É um suicídio pedagógico. Kirílov, portanto, se
sacrifica. Mas, se ele for crucificado, não será ludibriado. Permanece
homem-deus, convencido de uma morte sem futuro, impregnado da melancolia
evangélica. "Eu", afirma, "sou infeliz porque sou obrigado
a afirmar minha liberdade". Mas com ele morto, os homens finalmente
esclarecidos, esta terra se povoará de czares e se iluminará da glória
humana. O tiro de pistola de Kirílov será o sinal da última revolução. Não é,
assim o desespero que o impele à morte, mas o amor ao próximo como a si
mesmo. Antes de encerrar com sangue uma indizível aventura espiritual,
Kirílov tem uma palavra tão velha quanto o sofrimento dos homens: "Está tudo bem”. Esse tema do suicídio em Dostoiévski é
então claramente um tema absurdo. Observemos apenas, antes de ir mais longe,
que Kirílov repercute em outros personagens que implicam eles próprios novos
temas absurdos. Stavróguin e Ivã Karamazov experimentam na vida prática o
exercício de verdades absurdas. São eles que a morte de Kirílov liberta.
Tentam ser czares. Stavróguin leva uma vida "irônica", sabe-se bem
qual. Faz-se erguer o ódio em torno dele. E, no entanto, a palavra-chave
desse personagem está em sua carta de despedida: "Eu não pude detestar
nada”. É czar na indiferença. Ivã também o é, recusando-se a abdicar os
poderes reais do espírito. Àqueles que, como seu irmão, provam com sua vida
que é preciso humilhar-se para crer, poderia responder que a condição é
indigna. Sua palavra-chave é o "Tudo é,
permitido", com o toque de tristeza que lhe convém. E claro que, como
Nietzsche, o mais célebre dos assassinos de Deus, ele acabou na loucura. Mas
é um risco que se corre e, diante desses fins trágicos, a propensão essencial
do espírito absurdo é a de perguntar: "O que é que isso prova? " Desse modo os romances, como o Diário,
apresentam a questão absurda. Implantam a lógica até a morte, a exaltação, a
liberdade "terrível", a glória dos czares tornada inumana. Tudo
está bem, tudo é permitido e nada é detestável: são julgamentos absurdos. Mas
que prodigiosa criação aquela em que esses seres de fogo e gelo nos parecem
tão familiares! O mundo apaixonado da indiferença que resmunga no fundo do
coração não nos parece em nada monstruoso. Reencontramos aí nossas angústias
cotidianas. E sem dúvida ninguém, como Dostoievski, soube dar ao mundo
absurdos sortilégios tão próximos e tão atormentadores. No entanto, qual é a sua conclusão'?
Duas citações mostrarão o completo desabamento metafísico que leva o escritor
a outras revelações. Como o raciocínio do suicida lógico provocou alguns
protestos dos críticos, Dostoievski, nas folhas do Diário que aprontou em
seguida, desenvolve sua posição e conclui: "Se a fé na imortalidade é
tão necessária ao ser humano (que sem ela chega a ponto de se matar), é
porque ela é o estado normal da humanidade. Visto que isso acontece, a imortalidade
da alma humana existe sem dúvida nenhuma”. Além disso, nas últimas páginas de
seu último romance, ao fim dessa gigantesca batalha com Deus, umas crianças
perguntam a Aliócha: "Karamázov, é verdade o que diz a religião, que
ressuscitaremos dentre os mortos, que nos reveremos uns aos outros?" E
Aliócha responde; "Claro, nós nos reveremos e nos contaremos de novo,
alegremente, tudo o que se passou”. Assim Kirílov, Stavróguin e Ivã são
vencidas. Os Karamázovi respondem a Os possessos e trata-se mesmo de
uma conclusão. O caso Aliócha não é ambíguo como o do príncipe Míchkin.
Enfermo, este último vive num perpétuo presente, matizado de sorrisos e
indiferença, e esse estado de bem-aventurança poderia ser a vida eterna de
que fala o príncipe. Aliócha, ao contrário, bem o diz: "Nós nos
reencontramos”. Não é mais uma questão de suicídio e de loucura. Com que
proveito, para quem está certo de imortalidade e de suas alegrias? O homem
faz a troca de sua dignidade pelo ser feliz. "Nós nos contaremos de novo,
alegremente, tudo o que se passou”. Ainda assim, a pistola de Kirílov ressoou
em algum lugar da Rússia, mas o mundo continuou a rolar suas cegas
esperanças. Os homens não compreenderam "isso". Não é, pois um romancista absurdo que
nos fala, mas um romancista existencial. Ainda aqui o salto é comovedor, dá a
sua grandeza à arte que o inspira. É uma adesão tocante, repleta de dúvidas,
incerta e ardente. Falando dos Karamazov, Dostoievski escrevia: "A
principal questão a ser perseguida em todas as partes desse livro é aquela
mesma com que sofri, consciente ou inconscientemente, em toda a minha vida: a
existência de Deus”. É difícil acreditar que um romance tenha bastado para
transformar em certeza feliz o sofrimento de uma vida inteira. Um estudioso[28] o assinala com razão: Dostoievski está
mais ligado à parte de Ivã e os capítulos afirmativos dos Karamazov lhe
tomaram três meses de trabalho enquanto o que ele chamava "as
blasfêmias" foram compostas em três semanas e em exaltação. Não há
sequer um de seus personagens que não traga esse espinho na carne, que não o
exaspere ou que não busque um remédio para isso nos sentidos ou na
imortalidade.[29] Demoremo-nos, em todo o caso, nessa
dúvida. Eis uma obra em que, num claro-escuro mais impressionante que a luz
do dia, podemos acompanhar a luta do homem contra suas esperanças. No fim da
linha, o criador escolhe em desfavor de seus personagens. Tal contradição nos
permite, desse modo, inserir uma gradação. Não é de uma obra absurda que
tratamos, mas de uma obra que apresenta o problema absurdo. A resposta de Dostoievski é a humilhação
à "vergonha" conforme Stavróguin. Uma obra absurda, ao contrário,
não oferece resposta, eis aí toda a diferença. Observemo-lo bem, para
terminar: o que contradiz o absurdo nessa obra não é o seu caráter cristão,
mas o anunciar a vida futura. Pode-se ser cristão e absurdo. Há exemplos de
cristãos que não crêem na vida futura. A respeito da obra de arte, seria
possível, portanto, precisar uma das direções da análise absurda que se pôde
pressentir nas páginas precedentes. Ela leva a se propor "a absurdidade
dos Evangelhos". Ela aclara essa idéia, fértil em desdobramentos, de que
as convicções não impedem a incredulidade. Vê-se bem, ao contrário, que o
autor de Os possessos, familiarizado com esses caminhos, enveredou, no
final, por outro muito diferente. A surpreendente resposta do criador a seus personagens,
de Dostoievski a Kirílov, pode realmente ser assim resumida: a existência é
mentirosa e ela é eterna. Descubro, agora, por conseguinte, que a
esperança não pode ser evitada para sempre e que pode assaltar até aqueles
que supunham estar livres dela. É o interesse que encontro nas obras de que
cuidamos até o momento. Eu poderia, pelo menos no campo da criação, enumerar algumas
obras verdadeiramente absurdas.[30] Mas em tudo é necessário um começo. O
objeto desta pesquisa é uma certa fidelidade. A Igreja só tem sido tão dura
para com os hereges porque achava que não há pior inimigo do que um filho
desgarrado. Mas a história das ousadias gnósticas e a persistência das
correntes maniquéias fizeram mais, para a construção do dogma ortodoxo, do
que todas as preces. Guardadas as devidas proporções, acontece o mesmo com o
absurdo. Reconhece-se a sua trilha descobrindo os caminhos que se afastam
dele. Na própria conclusão do raciocínio absurdo, numa das atitudes ditadas
por sua lógica, não é ocioso reencontrar a esperança insinuada ainda sob uma
de suas faces mais patéticas. Isso mostra a dificuldade da ascese absurda.
Mostra, principalmente, a necessidade de se manter uma incessante consciência
e rearticula o quadro geral deste ensaio. Mas se ainda não se trata de enumerar as
Obras absurdas, pode-se ao menos concluir a propósito da atitude criativa,
uma daquelas capazes de completar a existência absurda. A arte só pode ser
tão bem servida por um pensamento negativo. Seus procedimentos obscuros e
humilhados são tão necessários à inteligência de uma grande obra quanto o
preto o é para o branco. Trabalhar e criar "para nada", esculpir
com barro, saber que sua criação não tem futuro, ver sua obra destruída em um
dia, consciente de que, em profundidade, isso não tem mais importância do que
edificar para séculos — eis a difícil sabedoria que o pensamento absurdo
preconiza. Levar adiante simultaneamente essas duas tarefas, negar de um lado
e exaltar do outro, é a trilha que se abre para o criador absoluto. Ele tem
de lançar suas cores no vazio. Isso leva a uma concepção particular da
obra de arte. Considera-se com bastante freqüência a obra de um criador como
uma sucessão de testemunhos isolados. Confunde-se então artista e literato.
Um pensamento profundo está em contínuo devir, esposa a experiência de uma
vida e se amolda a ela. Do mesmo modo, a criação única de um homem se
fortalece nas faces múltiplas e sucessivas que são suas obras. Umas completam
as outras, corrigem-nas ou as recuperam, contradizem-nas também. Se alguma
coisa termina a criação, não é o grito vitorioso e ilusório do artista que se
cega “Eu disse tudo" — mas a morte do criador que encerra a sua
experiência e o liberta de seu gênio. Esse esforço, essa consciência
sobre-humana, não aparecem necessariamente ao leitor. Não há mistério na
criação humana. A vontade faz esse milagre. Mas pelo menos não existe
verdadeira criação sem segredo. Sem dúvida uma série de obras pode ser apenas
uma seqüência de tentativas do mesmo pensamento. Mas pode-se conceber uma
outra espécie de criadores que precederiam por justaposição. Suas obras podem
parecer sem relação entre si. Em certa medida, são contraditórias. Mas,
recolocadas em seu conjunto, recobram sua disposição. É da morte, então, que
elas recebem o sentido definitivo. Ganham o que há de mais claro em sua luz
da própria vida do seu autor. Nesse momento, a sucessão de suas obras não
passa de uma coleção de fracassos. Mas, se esses fracassos mantêm todos a
mesma ressonância, o criador soube repetir a imagem de sua própria condição,
fazer retinir o segredo estéril de que é detentor. O esforço pela dominação passa a ser
considerável. Mas a inteligência humana pode ser suficiente para muito mais.
Ela somente demonstrara o aspecto voluntário da criação. Eu procuro
ressaltar, alhures, que a vontade humana não tinha outro fim que o de
sustentar a consciência. Mas isso não poderia funcionar sem disciplina. De
todas as escolas da paciência e da lucidez, a criação é a mais eficiente. É
também desconcertante testemunho da única dignidade do homem: a revolta
obstinada contra a sua condição, a perseverança em um esforço tido como
estéril. Ela exige um esforço cotidiano, o domínio de si mesmo, a apreciação
exata dos limites do verdadeiro, a medida e a força. Constitui uma ascese.
Tudo isso "para nada", para repetir e bater o pé. Mas talvez a
grande obra de arte tenha menos importância em si mesma do que na experiência
que exige de um homem, na oportunidade que lhe propicia para superar seus fantasmas
e chegar um pouco mais perto de sua realidade nua. Que não nos enganemos de estética. Não é
a informação paciente, a incessante e estéril ilustração de uma tese que eu
invoco aqui. Bem ao contrário, se me expliquei claramente. O romance de tese,
a obra que prova, a mais odiosa de todas, é a que mais freqüentemente se
inspira num pensamento satisfeito. A verdade que se acredita deter é o que se
demonstra. Mas estão ali idéias que se põem em marcha e as idéias são o
contrário do pensamento. Esses criadores são filósofos envergonhados. Aqueles
de que falo ou que imagino são, ao contrário, pensadores lúcidos. Em certo
ponto em que o pensamento se volta sobre si mesmo, eles levantam as imagens
de suas obras como os símbolos evidentes de um pensamento limitado, mortal e
revoltado. Elas talvez provem alguma coisa. Mas
essas provas os romancistas mais se dão do que as fornecem. O essencial é que
triunfam no concreto e que é esta a sua grandeza. Esse triunfo todo carnal
lhes foi preparado por um pensamento em que os poderes abstratos foram humilhados.
Quando estes o são inteiramente, a carne no mesmo instante faz brilhar a
criação em todo o seu esplendor absurdo. São os filósofos irônicos que fazem
as obras apaixonadas. Todo pensamento que renuncia à unidade
exalta a diversidade. E a diversidade é o lugar da arte. O único pensamento
que liberta o espírito é aquele que o deixa só, certo de seus limites e de seu
fim próximo. Nenhuma doutrina o solicita. Ele espera o amadurecimento da obra
e da vida. Destacada dele, a primeira fará ouvir uma vez mais a voz mal
ensurdecida de uma alma para sempre livre da esperança. Ou ela não fará ouvir
nada, se o criador, cansado de seu jogo, prefere se desviar. Dá no mesmo. Peço assim à criação absurda o que eu
exigia do pensamento, da revolta, da liberdade e da diversidade. Ela, em
seguida, manifestará sua profunda inutilidade. Nesse esforço cotidiano em que
a inteligência e a paixão se misturam e se arrebatam, o homem absurdo
descobre uma disciplina que formará o essencial de suas forças, A aplicação,
a tenacidade e a perspicácia necessárias redescobrem desse modo a atitude
conquistadora. Criar, assim, é dar uma forma ao seu destino. Todos esses
personagens são pelo menos tão definidos pela obra quanto esta por eles. O
comediante no-lo ensinou. Não há fronteira entre o parecer e o ser. Repitamo-lo: nada disso tem sentido
real. No caminho dessa liberdade há ainda um progresso a fazer. O último
esforço para esses espíritos afins, criador ou conquistador; é o de também
saber se libertar de seus cometimentos: chegar a admitir que a própria obra,
seja de conquista, amor ou criação, pode não ser; consumir assim a profunda
inutilidade de toda a vida individual. Isso mesmo lhes dá mais desembaraço na
realização dessa obra, como a percepção da absurdidade da vida os autorizava
a mergulhar ali com todos os excessos. O que resta é um destino de que só a
saída é fatal. Fora dessa única fatalidade da morte, tudo, alegria ou
felicidade, está liberto. Permanece um mundo de que o homem é o único senhor.
O que o prendia era a ilusão de um outro mundo. A inclinação de seu pensamento
não é mais a de renunciar, mas a de explodir em imagens. Ele se representa em
mitos, não há dúvida, mas mitos sem outra profundidade que a da dor humana e,
como esta, inesgotável. Não a fábula divina que diverte e cega, mas o rosto,
o gesto e o drama terrenos em que se resumem uma difícil sabedoria e uma
paixão sem amanhã. Os deuses tinham condenado Sísifo a
rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra
caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões,
que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem
esperança. Se acreditarmos em Homero, Sísifo era o
mais sábio e mais prudente dos mortais. Segundo uma outra tradição, porém,
ele tinha queda para o ofício de salteador. Não vejo aí contradição. Diferem
as opiniões sobre os motivos que lhe valeram ser o trabalhador inútil dos
infernos. Reprovam-lhe, antes de tudo, certa leviandade para com os deuses.
Espalhou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O
pai, abalado por esse desaparecimento, se queixou a Sísifo. Este, que tomara
conhecimento do rapto, ofereceu a Asopo orientá-lo a respeito, com a condição
de que fornecesse água à cidadela de Corinto. Às cóleras celestes ele preferiu
a bênção da água. Foi punido por isso nós infernos. Homero nos conta ainda
que Sísifo acorrentara a Morte. Plutão não pôde tolerar o espetáculo de seu
império deserto e silencioso. Despachou o deus da guerra, que libertou a
Morte das mãos de seu vencedor. Diz-se também que Sísifo, estando
prestes a morrer, imprudentemente quis pôr à prova o amor de sua mulher. Ele
lhe ordenou jogar o seu corpo insepulto em plena praça pública. Sísifo se
recobrou nos infernos. Ali, exasperado com uma obediência tão contrária ao
amor humano, obteve de Plutão o consentimento para voltar à terra e castigar
a mulher. Mas, quando ele de novo pôde rever a face deste mundo, provar a
água e o sol, as pedras aquecidas e o mar, não quis mais retornar à escuridão
infernal. Os chamamentos, as iras, as advertências de nada adiantaram. Ainda
por muitos anos ele viveu diante da curva do golfo, do mar arrebentando e dos
sorrisos da terra. Foi necessária uma sentença dos deuses. Mercúrio veio
apanhar o atrevido pelo pescoço e, arrancando-o de suas alegrias,
reconduziu-o à força aos infernos, onde seu rochedo estava preparado. Já deu para compreender que Sísifo é o
herói absurdo. Ele o é tanto por suas paixões como por seu tormento. O
desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse
suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. É o
preço a pagar pelas paixões deste mundo. Nada nos foi dito sobre Sísifo nos
infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste caso,
vê-se apenas todo o esforço de um corpo estirado para levantar a pedra
enorme, rolá-la e fazê-la subir uma encosta, tarefa cem vezes recomeçada.
Vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma espádua que
recebe a massa recoberta de barro, e de um pé que a escora, a repetição na
base do braço, a segurança toda humana de duas mãos cheias de terra. Ao final
desse esforço imenso medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem
profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo; então, vê a pedra desabar em
alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até
os cimos. E desce de novo para a planície. É durante esse retorno, essa pausa, que
Sísifo me interessa. Um rosto que pena, assim tão perto das pedras, é já ele
próprio pedra! Vejo esse homem redescer, com o passo pesado, mas igual, para
o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que
ressurge tão certamente quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da
consciência. A cada um desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda
pouco a pouco no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais
forte que seu rochedo. Se esse mito é trágico, é que seu herói
é consciente. Onde estaria, de fato, a sua pena, se a cada passo 0
sustentasse a esperança de ser bem-sucedido? O operário de hoje trabalha
todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e esse destino não é menos
absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente.
Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão
de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce. A lucidez que
devia produzir o seu tormento consome, com a mesma força, sua vitória. Não
existe destino que não se supere pelo desprezo. Se a descida, assim, em certos dias se
faz para a dor, ela também pode se fazer para a alegria. Esta palavra não
está demais. Imagino ainda Sísifo indo outra vez para seu rochedo, e a dor
estava no começo. Quando as imagens da terra se mantêm muito intensas na lembrança,
quando o apelo da felicidade se faz demasiadamente pesado, acontece que a tristeza
se impõe ao coração humano: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O
enorme desgosto é pesado demais para carregar. São nossas noites de
Getsêmani. Mas as verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas. Assim,
Édipo de início obedece ao destino sem o saber. A partir do momento em que
ele sabe, sua tragédia principia. Mas no mesmo instante, cego e desesperado,
reconhece que o único laço que o prende ao mundo é ó frescor da mão de uma
garota. Uma fala descomedida ressoa então: "Apesar de tantas
experiências, minha idade avançada e a grandeza da minha alma me fazem achar
é que tudo está bem”. O Édipo de Sófocles, como o Kirílov de Dostoiévski, dá
assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga torna a se encontrar
com o heroísmo moderno. Não se descobre o absurdo sem ser
tentado a escrever algum manual de felicidade. "Mas como, com umas
trilhas tão estreitas?" No entanto, só existe um mundo. A felicidade e o
absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer
que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Ocorre do mesmo
modo o sentimento do absurdo nascer da felicidade. "Acho que tudo está
bem", diz Édipo, e essa fala é sagrada. Ela ressoa no universo feroz e
limitado do homem. Ensina que tudo não é e não foi esgotado. Expulsa deste
mundo um deus que nele havia entrado com a insatisfação e o gosto pelas dores
inúteis. Faz do destino um assunto do homem e que deve ser acertado entre os
homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo está
aí. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua questão. Da mesma forma o
homem absurdo, quando contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No
universo subitamente restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas
vozes maravilhadas da terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de
todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não existe
sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu
esforço não acaba mais. Se há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior
ou, pelo menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. No mais,
ele se tem como senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se
volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa
seqüência de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele,
unificado sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim,
convencido da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e
que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo
continua a rolar. Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre
se reencontra seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os
deuses e levanta os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse
universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um
dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só
para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente
para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz. ANEXO A
ESPERANÇA E O ABSURDO NA OBRA DE FRANZ KAFKA. Na primeira edição de O
mito de Sísifo, este estudo sobre Franz Kafka foi substituído por um capítulo
que abordava Dostoievski e o suicídio. Foi publicado, porém, pela revista L'Arbalète,
em 1943. Reencontraremos aí, sob
uma outra perspectiva, a crítica da criação absurda que as páginas sobre Dostoievski
já haviam esboçado. (N. do E.) Toda a arte de Kafka consiste em obrigar
o leitor a reler. Seus desenlaces, ou suas faltas de desenlace, sugerem
explicações, mas que não são reveladas com clareza e exigem, para nos
parecerem fundadas, que a história seja relida sob um novo ângulo. Às vezes
há uma dupla possibilidade de interpretação, donde aparece a necessidade de
duas leituras. É o que pretendia o autor. Mas não estaríamos certos se
quiséssemos, em Kafka, interpretar tudo minuciosamente. Um símbolo está
sempre expresso no sentido geral e, por mais precisa que seja a tradução, um
artista só pode recuperar, através dela, o movimento: não há literalidade.
Além disso, nada é mais difícil de entender do que uma obra simbólica. Um
símbolo ultrapassa sempre quem faz uso dele e o leva a dizer mais, na
realidade, do que tem intenção de dizer. Nesse caso, o meio mais seguro de
dominar a situação é não o provocar, principiar a obra com um espírito não
deliberado e não buscar suas correntes secretas. Particularmente no caso de
Kafka, é bom aceitar o seu jogo, entrar no drama pela aparência e no romance
pela forma. À primeira vista, e para um leitor descomprometido,
são inquietantes aventuras que levam personagens trêmulos e obstinados à
perseguição de problemas que eles jamais enunciam. Em O processo,
Joseph K... é acusado. Mas ele não sabe de quê. Deve, sem dúvida, se
defender, mas ignora por quê. Os advogados acham a causa difícil.
Entrementes, ele não negligencia o amor, a alimentação ou a leitura de seu
jornal. Depois, é julgado. Mas a sala do tribunal é muito escura. Ele não
compreende coisa nenhuma. Supõe, apenas, que é condenado, mas mal se pergunta
a quê. Assim como, às vezes, duvida disso e continua a viver. Muito tempo
depois, dois senhores bem trajados e polidos vêm procurá-lo e o convidam a
segui-los. Com toda cortesia, eles o levam para um desolado subúrbio,
colocam-lhe a cabeça sobre uma pedra e o degolam. Antes de morrer, o
condenado somente diz: "como um cão". Vê-se como é difícil falar de símbolo
depois de uma narrativa em que a qualidade mais sensível parece ser
exatamente o natural. Mas o natural é uma categoria: difícil de compreender.
Há obras em que o acontecimento parece natural ao leitor. Mas há outras (mais
raras, é verdade) em que é o personagem que acha natural o que lhe acontece.
Por um paradoxo singular, mas evidente, quanto mais extraordinárias forem as
aventuras do personagem, mais sensível se tornará o natural da narrativa: é
proporcional à diferença que se pode sentir entre a estranheza da vida de um
homem e a simplicidade com que este a aceita. Parece que esse natural é o de
Kafka. E é por isso que se sente bem o que O processo quer dizer.
Falou-se de uma imagem da condição humana. Sem dúvida. Mas é ao mesmo tempo
mais simples e mais complicado. Quero dizer que o sentido do romance, no caso
de Kafka, é mais particular e mais pessoal. De certa maneira, é ele quem
fala, é a nós que ele confessa. Vive e é condenado. Fica sabendo-o nas
primeiras páginas do romance que leva adiante neste mundo e, se tenta
remediá-lo, não se revela, no entanto surpreso. Ele nunca se espantará
suficientemente com essa falta de espanto. É nessas contradições que se
reconhecem os primeiros sinais da obra absurda. O espírito projeta no
concreto sua tragédia espiritual. E ele só pode fazê-lo através de um
paradoxo permanente que dá às cores o poder de expressar o vazio e aos gestos
cotidianos a força de traduzir as ambições eternas. De igual modo, O castelo talvez
seja uma teologia em ação, mas é antes de tudo a aventura individual de uma
alma em busca de sua graça, de um homem que procura nos objetos deste mundo
seu segredo real, e nas mulheres os signos do deus que dorme nelas. A
metamorfose, por sua vez, representa certamente a terrível iconografia de uma
ética da lucidez. Mas é também o produto desse assombro inimaginável que
experimenta o homem ao sentir o bicho que ele, sem esforço, se tornou. É
nessa ambigüidade fundamental que está o segredo de Kafka. Essas perpétuas
oscilações entre o natural e o extraordinário, o indivíduo e o universal, o
trágico e o cotidiano, o absurdo e o lógico reaparecem na sua obra inteira e
lhe dão ao mesmo tempo sua ressonância e significado: São esses paradoxos que
é preciso enumerar, são essas contradições que é preciso ressaltar, para
compreender a obra absurda. Um símbolo, com efeito, pressupõe dois
planos, dois mundos de idéias e de sensações, e um dicionário de
correspondências entre um e o outro. Esse léxico é que é o mais difícil de se
fixar. Mas tomar consciência dos dois mundos assim presentes é colocar-se no
caminho de suas relações secretas. Em Kafka, os dois mundos são aqueles da
vida cotidiana, de um lado, e da inquietação sobrenatural, do outro.[32] Parece que se assiste aqui a uma
interminável exploração da palavra de Nietzsche: “Os grandes problemas estão
na rua”. Há na condição humana — é o lugar-comum
de todas as literaturas — uma absurdidade fundamental, ao mesmo tempo que uma
implacável grandeza. As duas coincidem, como é natural. Ambas se apresentam —
repitamo-lo — no divórcio ridículo que separa as nossas intemperanças da alma
e as alegrias perecíveis do corpo. O absurdo é que seja a alma desse corpo
que o ultrapassa tão desmedidamente. Para quem quiser simbolizar essa
absurdidade, é em um jogo de contrastes paralelos que será preciso lhe dar
vida. É assim que Kafka exprime a tragédia pelo cotidiano e o absurdo pela
lógica. Um ator imprime ainda maior força a um personagem
trágico se se abstém de exagerá-lo. Se ele é comedido, o horror que suscita
será descomedido. A tragédia grega, quanto a isso, é rica de ensinamentos.
Numa obra trágica, o destino sempre se faz perceber melhor sob as faces da lógica
e do natural. O destino de Édipo é antecipadamente anunciado. Está
sobrenaturalmente decidido que ele cometerá o homicídio e o incesto. Todo o
esforço do drama é mostrar o sistema lógico que, de dedução em dedução, vai
consumar a infelicidade do herói. Anunciar-nos apenas esse destino inusitado
quase não é apavorante, pois é inverossímil. Mas se a necessidade daquilo nos
é demonstrada no quadro da vida cotidiana, da sociedade, do Estado, da emoção
familiar, aí o pavor se consagra. Nessa revolta que sacode o homem e o faz
dizer: "Isso não é possível" já existe a certeza desesperada de que
"isso" é possível. É todo o segredo da tragédia grega ou,
pelo menos, um de seus aspectos. Pois ocorre um outro que, por um método
inverso, nos permitiria uma melhor compreensão de Kafka. O coração humano tem
uma penosa tendência a chamar destino somente ao que o esmaga. Mas também a
felicidade, à sua maneira, não tem razão de ser, pois é inevitável. O homem
moderno, no entanto, se atribui o método dela, quando não a desconhece.
Haveria muito a dizer, ao contrário, sobre os destinos privilegiados da
tragédia grega e os preferidos da lenda que, como Ulisses, no meio das piores
aventuras, se encontram a salvo deles próprios. Em todo o caso, o que é preciso reter é
essa cumplicidade secreta que une ao trágico o lógico e o cotidiano. Eis aí
por que Samsa, o herói de A metamorfose, é um caixeiro-viajante. Eis
aí por que a única coisa que o aborrece na singular aventura que faz dele um
inseto repugnante é que seu patrão ficará descontente com sua ausência.
Crescem-lhe patas e antenas, sua espinha se arca, pontos brancos se lhe
espalham pelo ventre e não direi que isso não o surpreende: o efeito seria
falho - isso lhe causa uma "leve chateação". Em sua obra central, O
castelo, são os detalhes da vida cotidiana que voltam à tona e, no
entanto, nesse estranho romance em que nada se conclui e tudo recomeça, a
aventura essencial que se configura é a de uma alma em busca de sua graça.
Essa tradução do problema para o ato, essa coincidência do geral e do
particular, reconhecemos também nos pequenos artifícios peculiares a todo
grande criador. Em O processo, o herói teria podido chamar-se Schmidt
ou Franz Kafka. Mas ele se chama Joseph K... Não é Kafka e é ao mesmo tempo.
É um europeu médio. É como todo o mundo. Mas é também a entidade K que
apresenta o x dessa equação de carne. Da mesma forma, se Kafka quer exprimir o
absurdo, é da coerência que ele se servirá. Conhece-se a história do louco
que pescava numa banheira: um médico que tinha suas idéias sobre os
tratamentos psiquiátricos lhe perguntava "se isso mordia" e recebeu
a resposta rigorosa: "Mas claro que não, seu imbecil, pois se é uma
banheira”. Essa história é do gênero barroco. Mas se capta aí, de maneira
sensível, como o efeito absurdo está ligado a um excesso de lógica. O mundo
de Kafka, na verdade, é um universo inexprimível em que o homem se dá ao luxo
torturante de pescar em uma banheira sabendo que nada sairá dali. Reconheço, pois, nesse caso uma obra
absurda em seus princípios. Sobre O processo, por exemplo, posso mesmo
dizer que o êxito é total. A carne triunfa. Nada falta ali, nem a revolta
inexpressa (e é ela, porém, que escreve), nem o desespero lúcido e mudo (e é
ele, porém, que cria), nem essa assombrosa liberdade de atitude que os
personagens do romance respiram até a morte final. No entanto, esse mundo não é tão fechado
quanto parece. Nesse universo sem progresso, Kafka vai inserir a esperança de
uma forma singular. A esse respeito, O processo e O castelo não
tomam a mesma direção. Eles se completam. A insensível progressão que se pode
notar de um para o outro representa uma conquista descomunal na ordem da
evasão. O processo apresenta um problema que O castelo, de
certo modo, resolve. O primeiro descreve, segundo um método quase cientifico,
mas sem concluir. O segundo, à sua maneira, explica. O processo
diagnostica e O castelo imagina um tratamento. Mas o remédio ali
proposto não cura. Ele só faz a doença retornar à vida normal. Ajuda a
aceitá-la. Num certo sentido (pensemos em
Kierkegaard), ele a leva à cura. O agrimensor K... não pode imaginar outra
preocupação além da que o devora. Até aqueles que o cercam se apaixonam por
esse vazio e essa dor que não tem nome, como se o sofrimento revestisse assim
um rosto privilegiado. "Como preciso de você", diz Frieda a K...
"Como me sinto abandonada, desde que o conheço, quando você não está
junto de mim”. Esse remédio sutil, que os faz amar o que nos esmaga e faz
nascer a esperança num mundo sem saída, esse "salto" brusco pelo
qual tudo se acha mudado, é o segredo da revolução existencial e do próprio O
castelo. Poucas obras são tão rigorosas em seu
andamento quanto O castelo. K... é nomeado agrimensor do castelo e
chega à aldeia. Mas da aldeia ao castelo é impossível a comunicação. Ao longo
de centenas de páginas, K... se obstinará em achar o seu caminho, tomará
todas as providências, se fará sagaz e ardiloso, jamais se zangará e, com uma
fé desconcertante, quererá assumir a função que lhe foi confiada. Cada
capítulo é um fracasso. E também um recomeço. Não é lógica, mas senso de concatenação.
A magnitude dessa teimosia produz o trágico da obra. Quando K... telefona
para o castelo, são vozes confusas e misturadas, risos vagos ou apelos
longínquos o que ele distingue. Isso basta para alimentar sua esperança, como
esses vagos sinais que aparecem nos céus do verão, ou essas promessas da
tarde que nos trazem uma razão de viver. Encontra-se aqui o segredo da melancolia
peculiar a Kafka. A mesma, na verdade, que se respira na obra de Proust ou na
paisagem plotiniana: a nostalgia dos paraísos perdidos. "Eu fico muito melancólica",
diz Olga, "quando Barnabé de manhã me diz que vai ao Castelo: esse
trajeto provavelmente inútil, esse dia provavelmente perdido, essa esperança provavelmente
vã". "Provavelmente": com esse mesmo toque Kafka envolve sua
obra inteira. Mas nada o explicita, e a procura do eterno é meticulosa. E
esses autômatos inspirados que são os personagens de Kafka nos passam a
própria imagem do que seríamos sem os nossos divertimentos.[33] E inteiramente entregues às humilhações
do divino. Em O castelo essa submissão ao
cotidiano se torna uma ética. A grande esperança de K... é conseguir que o
Castelo o adote. Não tendo como chegar a isso sozinho, todo o seu esforço é
de merecer essa graça tornando-se um habitante da aldeia e perdendo sua
qualidade de estrangeiro que todo o mundo lhe faz sentir. O que ele quer é um
ofício, um lar, uma vida de homem normal e são. Está cansado de sua loucura.
Quer ser razoável. Quer se desembaraçar da maldição particular que o torna
estrangeiro na aldeia. O episódio de Frieda, quanto a isso, é significativo.
Essa mulher conheceu um dos funcionários do castelo e, se ele a faz sua
amante, é por causa de seu passado. Ele extrai dela alguma coisa que o supera
— ao mesmo tempo que tem consciência daquilo que a torna para sempre indigna
do castelo. Sonhase aqui com o amor singular de Kierkegaard por Regina
Olsen. Em certos homens, o fogo da eternidade que os devora é tão grande que
eles chegam a queimar o próprio coração dos que o cercam. O funesto erro que
consiste em dar a Deus o que não é de Deus é também o principal assunto desse
episódio de O castelo. Mas, para Kafka, parece muito não ser um erro. É uma doutrina
e um "salto" Não existe nada que não seja de Deus. Mais significativo ainda é o fato de o
agrimensor se desligar de Frieda e ir para as outras irmãs Barnabés. Porque a
família Barnabé é a única da aldeia que está completamente abandonada pelo
castelo e pela própria aldeia. Amália, a irmã mais velha, recusou as
propostas indecorosas que lhe fazia um dos funcionários do castelo. A
maldição imoral que se seguiu eliminou-a para sempre do amor de Deus. Ser
incapaz de perder a honra por Deus é tornar-se indigno da sua graça.
Observa-se um tema familiar à filosofia existencial: a verdade que centraria
a moral é uma coisa que vai longe. Pois o caminho que o herói de Kafka
realiza, o que vai de Frieda às irmãs Barnabés é aquele mesmo que vai do amor
confiante à deificação do absurdo. Aqui também o pensamento de Kafka volta a
se encontrar com Kierkegaard. Não é surpreendente que o "relato
Barnabé" se situe no fim do livro. A última tentativa do agrimensor é a
de encontrar Deus através do que o nega, de reconhecê-lo não segundo as
categorias de bondade e de beleza, mas atrás dos rostos vazios e hediondos de
sua indiferença, sua injustiça e seu ódio. Esse estrangeiro que solicita ao
castelo para adotá-lo está no fim da viagem um pouco mais exilado, pois,
desta vez, é a si próprio que é infiel e que abandona lógica, moral e
verdades espirituais para tentar entrar, rico somente de sua esperança
insensata, no deserto da graça divina.[34] A palavra esperança, aqui, não é
ridícula. Ao contrario, quanto mais trágica é a condição relatada por Kafka,
mais rígida e provocante se torna essa esperança. Quanto mais O processo é
verdadeiramente absurdo, mais o "salto" exaltado de O castelo se
mostra comovente e ilegítimo. Mas redescobrimos então, em estado puro, o
paradoxo do pensamento existencial tal como, por exemplo, é expresso por
Kierkegaard: "Deve-se ferir mortalmente a esperança terrena — só então é
que nos salvamos pela esperança verdadeira",[35] e que se pode traduzir assim: "É
preciso ter escrito O processo para empreender O castelo." A maior parte dos que falaram de Kafka
realmente definiram sua obra como um grito desesperador em que nenhum recurso
é deixado ao homem. Mas isso requer uma revisão. Há esperanças e esperanças.
A obra otimista do Sr. Henry Bordeaux me parece singularmente desencorajadora.
E que nada, ali, é permitido aos corações um pouco difíceis.[36] O pensamento de Malraux, ao contrário,
se mantém sempre estimulante. [37] Mas nos dois casos não se trata nem da
mesma esperança nem do mesmo desespero. Vejo apenas que a própria obra absurda
pode levar à infidelidade que desejo evitar. A obra que só era a repetição
sem perspectiva de uma condição estéril, uma exaltação inteligente do
perecível se torna agora um berço de ilusões. Ela explica, ela dá uma forma â
esperança. O criador não pode mais se separar disso. Ela não é o jogo trágico
que devia ser. Dá um sentido à vida do autor. É singular, em todo caso, que obras
aparentadas na inspiração como aquelas de Kafka, Kierkegaard ou Chestov, e
aquelas — para ser breve — dos romancistas e filósofos existenciais
inteiramente voltados para o absurdo e suas conseqüências culminam afinal
nesse enorme grito de esperança. Eles abraçam o Deus que os devora. É
pela humildade que a esperança se introduz. Porque o absurdo dessa existência
lhes assegura um pouco mais da realidade sobrenatural. Se o caminho desta
vida termina em Deus, há, pois uma saída. E a perseverança, a obstinação com
as quais Kierkegaard, Chestov e os heróis de Kafka repetem seus itinerários
são uma garantia singular do poder entusiasmante dessa certeza.[38] Kafka recusa a seu deus a grandeza
moral, a evidencia, a bondade, a coerência, mas é para melhor se lançar em
seus braços. O absurdo é reconhecido e aceito, o homem se resigna a isso e,
desde esse instante, sabemos que ele não é mais absurdo. Nos limites da
condição humana, que esperança é maior do que aquela que permite escapar a
essa condição? Uma vez mais percebo que o pensamento existencial, contra a
opinião dominante, é composto de uma esperança desmesurada, aquela mesma que,
com o cristianismo primitivo e a anunciação da boa nova, sublevou o mundo
antigo. Mas nesse salto que caracteriza todo o pensamento existencial, nessa
obstinação, nessa agrimensura de uma divindade sem superfície, como não ver a
marca de uma lucidez que se renega? Vê-se somente que é um orgulho que abdica
para se salvar. Essa renúncia seria fecunda. Mas isso não muda aquilo. A meu
ver, não se diminui o valor moral da lucidez declarando-a estéril como todo
orgulho. Porque também uma verdade, por sua própria definição, é estéril.
Todas as evidências o são. Em um mundo em que tudo se dá e nada se explica, a
fecundidade de um valor ou de uma metafísica é urna noção vazia de sentido. Seja como for, vê-se aqui em que a
tradição de pensamento se inscreve a obra de Kafka. De fato, não seria
inteligente considerar rigorosos os passos que levam de O processo a O
castelo. Joseph K... e o agrimensor K... são apenas os dois pólos que
atraem Kafka.[39] Falarei com ele e direi que sua obra
provavelmente não é absurda. Mas isso não nos impede de ver sua grandeza e
sua universalidade. Elas provêm de ele ter sabido representar com tanta
amplitude essa passagem cotidiana da esperança para o desgosto e da prudência
desesperada para a cegueira voluntária. Sua obra é universal (uma obra
efetivamente absurda não é universal), no sentido de que representa nela a
face comovedora do homem que foge da humanidade e destila em suas
contradições razões de crer, razões de esperar em seus fecundos desesperos,
chamando de vida o seu terrível aprendizado da morte. Ela é universal porque
de inspiração religiosa. Como em todas as religiões, o homem se livra, aí, do
peso de sua própria vida. Mas se fico sabendo disso, se posso também
admirá-lo, sei também que não procuro o que é universal, mas o que é
verdadeiro. Os dois podem não coincidir. Entenderemos melhor essa maneira de ver
se digo que o pensamento verdadeiramente desesperador se define precisamente
pelos critérios opostos, e que a obra trágica, uma vez exilada toda a
esperança futura, poderia ser aquela que descreve a vida de um homem feliz.
Quanto mais apaixonante é a vida, mais absurda é a idéia de perdê-la. Talvez
esteja nisso o segredo dessa aridez soberba que se respira na obra de
Nietzsche. Nessa ordem de idéias, Nietzsche parece ser o único artista a ter
chegado às últimas conseqüências de uma estética do Absurdo, visto que sua
mensagem final reside em uma lucidez estéril e conquistadora, e numa negação
obstinada de toda consolação sobrenatural. O que acima examinamos terá sido suficiente,
no entanto, para mostrar a importância capital da obra de Kafka no panorama
deste ensaio. É aos confins do pensamento humano que somos agora
transportados. Dando à palavra seu sentido pleno, pode-se dizer que nessa
obra tudo é essencial. Ela apresenta, além do mais, o problema absurdo em
todos os seus aspectos. Se quisermos, pois reunir essas conclusões a nossas
observações iniciais, o fundo da forma, o secreto senso em O castelo
da arte natural em que se passa, a busca apaixonada e orgulhosa de K... do
cenário cotidiano em que caminha, compreenderemos o que pode ser sua
grandeza. Porque, se a nostalgia é a marca do humano, talvez ninguém tenha
dado tanto relevo e carne a esses fantasmas do arrependimento. Mas ao mesmo
tempo se perceberá qual a singular grandeza que a obra absurda exige e que
talvez não se encontre ali. Se for próprio da arte ligar o geral ao
particular, a eternidade perecível de uma gota de água aos jogos de suas
luzes, é mais verdadeiro ainda avaliar a grandeza do escritor absurdo na
separação que ele sabe interpor entre os dois mundos. Seu segredo é o de
saber achar o ponto exato em que eles se tornam a juntar em sua maior
desproporção. E para dizer a verdade, os corações
puros sabem ver em toda parte o lugar geométrico do homem e do inumano. Se
Fausto e Don Quixote são eminentes criações da arte, é graças às grandezas
ilimitadas que eles nos mostram com as mãos terrenas. No entanto, há sempre
aquele momento em que o espírito nega as verdades que essas mãos podem tocar.
Sempre aquele momento em que a criação não é mais elevada ao trágico: é
apenas levada a sério. O homem, então, se ocupa de esperança. Mas não é sua
tarefa. Sua tarefa é desviar do subterfúgio. Ora, é ele que reencontro no fim
do veemente processo que Kafka instaura contra o universo inteiro. Seu
veredicto inacreditável absolve, para terminar, esse mundo hediondo e
desconcertante em que as próprias toupeiras se atrevem a esperar.
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Tradução e Apresentação de Mauro Gama, Editora Guanabara, 1989.
Copyright by Éditions Gallimard, 1942
SUMÁRIO
O mito e a realidade — Mauro Gama
Introdução à edição original.
UM RACIOCÍNIO ABSURDO.
O absurdo e o suicídio.
Os muros absurdos.
O suicídio filosófico.
A liberdade absurda.
O HOMEM ABSURDO.
O donjuanismo.
A comédia.
A conquista.
A CRIAÇÃO ABSURDA.
Filosofia e romance.
Kirílov.
A criação sem amanhã.
O MITO DE SÍSIFO.
Anexo
A ESPERANÇA E O ABSURDO NA OBRA DE FRANZ KAFKA.
Entre as maiores
manifestações da consciência crítica neste século, a presença de Camus é
certamente uma das mais generosas. Sobretudo agora, no final do milênio, quando tantas das
suas reflexões podem ser redescobertas como advertências ou ‘diagnósticos’ de
espantosa acuidade e rigor intelectual. Não há como duvidar de que o homem
dos nossos dias tem tudo para abrigar conflitos ainda mais intensos — e mais
devastadores, ou mais fecundos — que os de todas as outras épocas. É certo
que ele contou com enormes precursores, mestres que foram ao fundo do
desenvolvimento moderno de suas emoções — e suas razões — como Nietzsche,
Dostoiévski, Proust, Kierkegaard, Kafka (para só ficarmos em alguns dos nomes
mais caros a Camus), e chega, hoje em dia, aos desdobramentos efetivos e
consistentes das revoluções de Darwin, Marx, Freud, Einstein. Mas, até mesmo
por isso tudo, ‘os homens presentes’, n’ “a vida presente”, estão ainda mais
sós e dilacerados. Há uma busca desesperada — mas persistente — de novos
valores. Como toda possibilidade dos sistemas mágicos ou metafísicos se
encontra pulverizada, como só insiste ou resmunga nos desvãos do medo, nos
laboratórios da psicopatologia ou em sinistros desvios de igreja e
dissimulação, esse homem presente só pode contar consigo mesmo, seu cérebro,
seus sentidos, suas mãos, seus meios. Daí o encontro — cada vez mais
freqüente — com o absurdo. E face a face com a sua condição, esse homem tem
muito poucos amigos. Um deles, de extraordinária inteligência e lealdade, é
Albert Camus.
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO ORIGINAL
O MITO DE SÌSIFO
UM RACIOCÍNIO
ABSURDO
O ABSURDO E O SUICÍDIO
Os muros absurdos
O suicídio filosófico
A liberdade absurda
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NOTAS