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Jean-Paul Sartre

(A noção de beleza)

Conferência de Jean-Paul Sartre - Universidade Mackenzie — 1960

Não dei título a esta conferência, mas seu tema sendo literário como já sabiam, vou referi-la, se me permitem, à noção de beleza. Vamos tentar determinar juntos o que é o belo (particularmente na literatura, sem nos proibirmos entretanto de buscar exemplos em outros campos). Desta forma estarei retomando um determinado assunto pelo lado contrário, pois muitas vezes já falei de literatura engajada e como todos os que já falaram disso, fui acusado de menosprezar a arte e a beleza em favor do engajamento. Nessas condições creio que é necessário inverter o problema: hoje falarei da beleza e vamos ver em que medida esta exigência conclui precisamente pela exigência de engajamento. Para falar de um modo bem comum do que seja o belo, temos todos, se quiserem, esses três tipos de conhecimento. Sabemos que o belo no seu conteúdo varia historicamente — voltaremos a isto; há variações não somente das obras, mas até mesmo das formas literárias ou das formas artísticas que agradam uma determinada época. Por outro lado, quase todos sabemos também o que nos agrada numa obra bela, o que faz com que seja bela. Creio que Valéry foi quem melhor o expressou quando disse que numa obra literária bela as frases não remetiam apenas à frase seguinte, as idéias, os objetos evocados ou os personagens não remetiam apenas a uma. duas ou três determinações do conjunto, mas a todas. Para dizer de outra forma, cada coisa está rigorosamente ligada ao conjunto de todas as outras e isto constitui o que se chama um todo. Mas o que é realmente um todo, ou se preferem, uma totalidade? Ê algo bem diferente de uma soma no sentido em que, na soma há elementos, há unidades que, a menos que as consideremos sem ir muito longe, não se modificam. Acrescentando-se umas às outras, cada unidade permanece uma unidade e só o conjunto é que constitui um número, enquanto o todo é constituído de tal forma que cada uma de suas partes é um reflexo de si mesma, do todo. e ao mesmo tempo é o todo, permanecendo ligada a todas as outras. Quando temos uma verdadeira totalidade podemos sempre considerar uma das partes enquanto tal como representando a totalidade e ao mesmo tempo como uma coisa particular.

Vejamos um quadro: sabemos perfeitamente que, neste azul particular que se opõe a esta outra cor determinada ou ao contrário une-se a ela dando-lhe reforço ou equilíbrio, podemos ver o quadro inteiro, pois seu sentido, sua natureza e sua função seriam totalmente diferentes num outro quadro e, considerado sozinho, talvez não se pudesse dizer sequer que seja uma cor bonita. Ê de fato a expressão do todo, que portanto pode se manifestar, tanto por uma certa dominante de cor ou de valor, como ao mesmo tempo de alguma coisa particular que aí se encontre, seja num quadro, seja num conjunto de palavras que encontram-se aqui ou lá. Ê esta rela-cão, ao mesmo tempo com o todo e com todas as partes de cada parte, que se chama uma estrutura. Uma totalidade contendo estas estruturas: já sabemos o que é o belo; e é justamente por isso que freqüentemente dizemos certas frases que, não fosse isto, não teriam sentido. Fala-se, por exemplo, da sobriedade de certas obras de arte; felicita-se o artista por ter sido sóbrio, por não haver nada em excesso, por ter usado, enfim, o caminho mais direto, com um mínimo de elementos. Tudo isso por quê? Porque se usou o caminho mais direto isso significa que. tendo algo a fazer, ele o fez de modo a estabelecer na obra esta relação com o todo e com todo o resto da obra. não tendo lhe acrescentado nada, porém, que pudesse se isolar. Se, no plano de um edifício fosse necessária uma linha reta. toda realidade curvilínea, toda forma curvilínea que se quisesse inventar aí seria demais, simplesmente porque esta curva não entraria na umidade que se quer dar ao todo. Teria certamente relações com o resto, mas seriam relações exteriores e não relações interiores.

Uma terceira coisa, enfim, que pelo menos os estudantes de filosofia conhecem muito bem e que todo o mundo conhece mais ou menos é a apreciação do próprio Kant, sua doutrina, que não se modificou num certo plano de descrição puramente formal do belo. quando mostra no belo uma universalidade sem conceito e gratuita que exige ser compartilhada. Enfim, diz Kant, e mais tarde volitaremos a isto, uma finalidade sem fim, uma finalidade sem conceito no sentido em que não podemos de modo algum, como num objeto comum, criar uma idéia que possa realmente definir o objeto e ser universal, a nossa exigência para com nossos próximos sendo entretanto universal. Isto significa que. quando vemos um quadro belo exigimos de cada um. por este próprio julgamento, por esta própria definição do belo, que cada um por sua vez também perceba esta beleza. Com o vêem, há portanto no belo. uma espécie de imperativo. A prova disso, aliás, é que se trata de uma noção que desaparece nos ambientes em que nos sentimos bem, pois se eu digo: "esta peça é bela — esta peça de teatro", e você diz: "esta peça é feia, ou é má", há um conflito, um conflito muito pouco agradável para as saciedades. Nesse momento, o belo deverá ser reduzido a uma questão de gosto; e alguém lhe dirá: "eu não gosto disto"; "pois a mim isto agradou". Neste momento foi unicamente por polidez que você suprimiu completamente a verdadeira definição do belo e a sua verdadeira exigência e na realidade quando disse "isto me agradou", com um ar indiferente, foi por polidez para com a dona da casa. mas na realidade você achou isto belo e o outro não o achou nada belo. o que diz também de modo indiferente. Evita-se assim uma disputa, mas o que há no fundo é uma exigência. E é a partir destas três idéias muito superficiais, que vamos tentar compreender um pouquinho melhor o que é o belo, pois afinal, tal como é descrito, é uma coisa estranha.

Às vezes alguém se entusiasma diante de um objeto, de uma música, de uma pintura ou de um livro e exige de seus contemporâneos que o admirem Tanto quanto ele. Quando digo seus contemporâneos é porque embora não pense nos outros, ele próprio ficaria muito decepcionado se lhe dissessem que talvez não venha a ser admirado daqui a cem anos. O que se poderia criticar primeiro em Kant. portanto, considerando que sua teoria da estética foi feita corretamente. é não ter avançado um pouco mais na sua idéia da exigência. Por que então se exige do vizinho que ele tenha este mesmo prazer que constitui o prazer estético? O que há no fundo do fato de que eu sou um individualista, talvez um egoísta preocupado com meus negócios e que de repente vou a um museu ver um quadro, passo bruscamente ao universal? Talvez por outro lado não tenha nenhuma opinião política, talvez seja a única ocasião em que passo ao universal. Assim, se consideramos as coisas desta maneira vemos por outro lado que o universal nada mais é que a utilização de conceitos: na ética é outra coisa, Kant pensava na realização possível do universal, mas não vamos discutir isto, pois não é assim que o problema se coloca. Em todo o caso, no campo da estética cada um pede, cada um exige. Ê preciso ver aí portanto uma espécie de fim absoluto. Kant falou em finalidade sem fim, expressão excelente para indicar, por exemplo, uma flor ou uma paisagem que podem aparecer como animadas de uma finalidade, como se as pessoas tivessem desejado fazer algo disto e que no entanto o fim em si mesmo no seja dado; segundo Kant, o fim e o belo não parecem ter sido dados. Mas por outro lado percebo que o belo me é apresentado, entretanto, de um modo absoluto, quando meu vizinho exige que eu ache este quadro belo. Kant, neste momento, tendo estudado aquele que exige, não estudou o outro, aquele de quem se exige.

Puxam-me pela manga; é um dos meus amigos. Ele me diz: "Olhe isto!". Talvez eu esteja distraído, com dor de cabeça, quem sabe: de qualquer forma sou colocado aí e de repente é o próprio objeto que assume o imperativo do meu amigo e que me pede para achá-lo belo. Há portanto de fato uma reclamação absoluta por este objeto de ser tomado como fim. Vemos portanto que o objeto tem uma importância humana particular. Todos sabem que freqüentemente procura-se fazer com que a arte saia do campo estritamente prático e humano para jogá-la em outros caminhos, como um sucedâneo da religião. Na minha opinião esta questão não apresenta dúvidas: c melhor estar real e sinceramente em busca de uma religião ou ter uma religião do que procurar dar uma forma religiosa e transcendental a obras de arte, justamente com o pretexto de que não se tem religião e portanto se gostaria que certas coisas servissem, que se pudesse dar a certas coisas uma função religiosa. Para expressar a verdade da arte é preciso reconhecer que ela tem uma importância humana real pois se exige, não se gostaria de perceber que é belo. mas finalmente se percebe que é belo. E não se trata simplesmente de reconhecê-lo com indiferença, dizendo, por exemplo, "bem, não está mal", porque então se suscitaria a indignação do vizinho: "Como, não está mal, não está vendo que é maravilhoso? etc. etc. Trata-se enfim, em uma palavra, de sentir a coisa profundamente; trata-se de um ponto de vista humano, ou se preferirem, esta exigência é uma das relações, uma das comunicações entre os homens. Mas, nessas condições, deveríamos tentar compreender o que significa este fato, de que o quadro não é um fim, não se apresenta como um fim relativo, mas que se apresenta, na medida em que exige por intermédio de um outro ser reconhecido como belo, como um fim absoluto. Que queremos dizer aqui por absoluto? Evidentemente queremos dizer duas coisas, pois absoluto quer dizer livre, se quiserem, de todas as relações, de todas as relações que poderiam torná-lo então contingente ou relativo, aparecendo aqui, não aparecendo lá. Bem, mas por que há algo neste quadro que exige de mim enquanto absoluto, enquanto fim absoluto, minha adesão? Como já disse, é porque ele se apresenta como uma tonalidade. Mas que espécie de totalidade? Podemos dizer que todas as totalidades são belas? Creio que num certo sentido sim. Parece-me que, efetivamente, cada vez que encontramos um conjunto tal que é estruturado do modo a que cada parte remeta todas as outras ao todo, mesmo se o objetivo não foi a beleza, ele próprio aparece como beleza. E por isso que se pode falar de uma bela batalha. Muitos falam desse modo e foi assim que ouvi falar de operários militantes de uma bela greve; e posso garantir que não foram estetas, O que se queria dizer com isto é que simplesmente tinha havido uma tal disciplina, uma tal coesão na ação que, vitoriosa ou derrotada, esta greve tinha representado um conjunto estruturado, uma totalidade. Mas é bem evidente que não podemos considerar que o belo existe fora da arte. Pode acontecer, é claro, que de repente uma paisagem ou um conjunto nos dêem uma impressão de totalidade. Para dizer de outra forma, podemos bruscamente ter a impressão de que este vermelho e de que este verde que estão aí não vieram, cada qual, por motivos completamente diferentes uns dos outros: o verde porque uma certa semente caiu um dia neste lugar, o vermelho porque algumas pessoas aí construíram, sem nenhuma relação com a semente, uma casa para morar; mas que este vermelho e este verde têm uma relação suplementar entre eles, qualquer que seja, por outro lado. a relação de causalidade que fez com que se edificassem, aqui ou ali, os objetos que vemos. Nesse sentido temos a impressão de que. neste momento, o essencial passa a ser o vermelho, o verde, o sol que ilumina tudo. talvez uma água que corre, ou um céu azul em cima, e que o essencial, ou seja, o que esteve fazendo isto, foi a vontade de tal família ou de tal chefe de família, de aí construir sua casa, e que foram certas condições climáticas ou a terra, que fizeram com que, neste lugar germina tal ou tal semente. Neste momento, como vêem, temos um elemento absoluto, mas, ao mesmo tempo, uma idéia que está sempre aí, a de que este conjunto foi criado por alguém.

Lembro-me de ter estado em "Palmerais d'EIche", que fica na Espanha e que provavelmente é o lugar onde há mais palmeiras na Europa. E levaram-me a uma casinha no alto, de onde se via o topo de todas as palmeiras. Nesse lugar li o livro de ouro, onde todos os viajantes de passagem assinam. Havia um casal, ingênuo sem duvida, mas que evito considerar ridículo, que tinha escrito pouco tempo antes da minha chegada: "Viemos aqui há trinta anos por ocasião da nossa viagem de núpcias. Voltamos agora e as duas vezes encontramos na beleza do lugar, a prova da existência de Deus". Ora, o que lhes censurava realmente, não era encontrar a existência de um demiurgo ou a existência de um deus provadas pelo belo, pois efetivamente estou de acordo com eles: qualquer que seja o belo imediatamente sugere, remete a uma ação de belo. O que lhes censurava, apenas, era terem escolhido mal seu exemplo, porque na minha opinião a "Palmerais d'EIche" é muito feia. A partir daí podemos ver que. sejamos profundamente religiosos ou ateus, o momento de beleza natural é necessariamente um momento imaginário porque nossa percepção das relações das coisas, das imagens e das aparências entre elas nos leva à idéia de que isso foi feito de propósito, e que portanto nada prova que a impressão que no fundo tivemos não seja subjetiva, nada prova que todo o mundo esteja de acordo a esse respeito, nada prova, porque no fundo não se pode ter provas de Deus pelo belo. O que se pode. quando se é religioso é encontrar aí um sentido, apenas, mas não se pode ter provas de Deus pelo belo. Há aí portanto uma espécie de fenômeno hipotético e imaginário. Tudo acontece como se, além dos motivos reais da presença desses objetos, houvesse aí algo mais que de forma alguma se poderia justificar, mas que seria uma construção por um artista. Quando a beleza imaginária, quando a beleza natural se apresenta sob a forma de um conjunto natural que parece belo. caímos num imaginário no momento em que. sem nenhuma prova, sem que ninguém possa nos dizer, sem que nenhum padre possa nos autorizar a dizer, aí vemos uma decisão do entendimento divino. Gostaríamos de ver aí algo que foi criado, mas que foi criado neste nível, ou seja, no nível da "Palmerais d'Elche". Trata-se de algo que aparece nessa "Palmerais d'Elche" como desejado, sem que tivesse outra finalidade que a exigência de ser reconhecido.

Quando vemos um quadro, entretanto, é completamente diferente. Víamos primeiro o real: era a beleza natural, e o Imaginário é que era o artista, nada nos permitindo afirmar, mais uma vez, que esse artista existisse. Só o podíamos imaginar diante da beleza pois a beleza efetivamente pede que o imaginemos. Mas só podíamos imaginá-lo, pois logicamente nada podíamos dizer. Na tela do artista, por outro lado, acontece o contrário, pois para começar, tudo é imaginário. Isto significa que de fato vemos ai uma tela sobre a qual foram colocadas cores, eis a realidade; e depois seu preço, outra realidade: é vendida por tanto, renderá tanto ao marchand de quadros e tanto ao artista, mas quanto ao que se refere à sua beleza, ou seja, ao que ela representa, sabemos simultaneamente que tudo foi feito por alguém real que é um artista, sabemos certamente que essa tela não é efeito de um acaso, mas também sabemos que os objetos que aí vemos são perfeitamente imaginários. Pode acontecer que eu me torne vitima de uma ilusão ótica em alguma feira, mas isso nada tem a ver com a visão de um quadro que cada um reconhece perfeitamente como quadro mas do qual se diz, ao mesmo tempo, que possui um artista. Constatamos então, nesse momento, a verdadeira arte que consiste não em que os acasos reunidos de uma cena maneira nos obriguem a sonhar ou a imaginar que haja um autor, mas que consiste, ao contrário, para um certo autor, em inventar que o acaso tenha sido favorável, pois o que faz um pintor quando vai nesse lugar do qual estou falando, que pode ser uma paisagem nas redondezas de Aíx. por exemplo, onde veja oliveiras, um céu muito azul. casas vermelhas? Conhecemos muito bem nossa primeira reação: "isso é belo, é a beleza natural, é o imaginário de que estamos falando", a menos que isto nos remeta a um único artista, que é ele porque é ele quem diz: "eu quero fazer isto". Mas a partir do momento em que ele olha o objeto. este não é mais belo. £ necessário que justamente tudo o que tínhamos visto com um olho menos exercitado estivesse marcado de imperfeição, porque na verdade era c acaso que o tinha feito. A casa poderia ser de um vermelho muito mais bonito e corresponder melhor ao verde vizinho, mas essa casa tinha sido construída há cem anos. as telhas tinham sido queimadas pelo sol e tudo o que poderíamos fazer era sonhar um pouco sobre a natureza, nesse momento. O artista, justamente, não sonha com c vermelho que conviria a este verde, pois é ele quem põe o verde sobre a tela. é ele quem põe o vermelho, ou seja, ele simplesmente inverte, se supomos que não é abstraio, e é justamente isso que é importante para a história da pintura. Inverte, no sentido em que o que é imaginário na sua tela é o acaso. Isto significa, não sendo um abstrato, que ele vem nos contar: "Imaginem que um indivíduo construiu uma casa na estrada de Aix de um vermelho tal que o plátano e o lilieiro ao lado lhe correspondem perfeitamente quanto às tonalidades, e ao mesmo tempo existe aí uma obra profunda, uma tal estrutura das coisas, que se pode transmitir a luz ou a própria estrutura de todas as maneiras. E foi por acaso, diz, sim, foi na estrada de Aix. Estava passeando por lá, e por acaso vi isto". E o que nos diz o quadro. O quadro inventa o acaso, ou seja. a ordem das causas para submetê-la à ordem dos fins. Para dizer de outro modo, temos num quadro o resultado bem real, bem meditado, bem trabalhado, sobretudo quando se trata de um belo quadro, de um homem que tem anos de experiência e de exercício; é isso o que temos: um conjunto de formas e de cores que deve responder a uma concepção muito geral da pintura, seja a de Cézanne ou a de Gauguin. É tudo isto portanto o que temo*- o mais calculado objeto, aquele que foi realmente para o pintor um fim, um fim absoluto, o fim não sendo estas maçãs de Cézanne. que Cézanne quis pintar, mas o fato de pintar maçãs que estariam reunidas por acaso exatamente como estas e que apresentariam relações de beleza constituindo com as toalhas, com a mesa, com a cadeira, etc., um conjunto.

Como vêem. o artista prefere criar o acaso, retomando-o entretanto por sua própria conta, pois entre o acaso que encontramos numa tela de Van Gogh — "bom, diria Van Gogh, havia aí um café. era em Harle. à noite e depois havia pessoas que consumiam, e era belo" -— e o acaso de Cézanne — "bom, sim, estava passeando pela estrada de Aix. vi aí uma casinha vermelha com oliveiras e era bonito" — podemos preferir qualquer um dos acasos. Para dizer de outro modo, há um acaso assinado Van Gogh e há um acaso assinado Cézanne, pois o que eles querem nos dar é o mundo no encadeamento das causas; é isso o que querem nos dar, mas querem dá-lo como se fosse o mundo no encadeamento dos fins. Esta é a coisa tão particular neste conjunto, ou seja, que primeiro se liberta a ordem dos fins e em seguida se recompõe a ordem dos acasos, de modo que aparece um conjunto que é a ordem dos fins pura, mas que contém em si mesmo, no interior de si mesmo, todos os acasos que encontramos na vida. sendo a beleza de agora em diante, isto, ou seja: a ordem dos fins servida pelo acaso. Isso tem um sentido embora imaginário, s« supomos que Deus existe e que realmente fez isso na natureza, mas quanto à beleza do artista, parece-nos ainda mais curioso, considerando-se que não podemos supor que o artista assume o acaso. No entanto, é bem isto o que ele nos dá: acasos a admirar, acasos que ele mesmo organizou, e quanto ao Mm absoluto é finalmente isto: a unidade total no mundo: onde quer que se esteja, de qualquer coisa que se trate, o mundo se impõe através das séries causais e de seus encontros um pouco bizarros e constitui precisamente o belo. É esta a idéia do belo, é esta a reclamação do artista. Desta forma, como contém a causalidade na finalidade, vemos que o fim é totalmente absoluto no sentido em que dizia há pouco: parte novamente, trazido assim, de lado, por séries causais que se encontram, mas que no quadro entretanto se submetem, essas séries causais que continuam a existir, e se apresentam como... (defeito na gravação).

(O quadro)... exige do homem que o vê. que não esteja sofrendo do estômago nesse momento, ou que pelo menos não esteja preocupado; que não tenha brigado com seu melhor amigo, ou feito algum mau negócio; e até mesmo que não esteja cansado pela visita a algum museu onde viu e admirou outros quadros. Exige dele que se ponha fora da ordem dos acasos, assim como ele mesmo abrangeu essa ordem dos acasos.' Pede dele que se arranque, por assim dizer, à ordem do mundo, por Uberdade, para se pôr diante desta ordem que lhe é apresentada. Reclama dele esta qualidade que Descartes chamava a generosidade e finalmente é esta relação humana que o torna um valor absoluto. Nada de dor de estômago ou de problemas de dinheiro. Não: "Olhe-me", eis o que diz. E, com efeito, quando se esquece tudo isso, vê-se um objeto que é o mesmo que aquele que se vê todos os dias: um caminho ao lado do museu, com casas e árvores, feito pelo acaso, ou seja, pelo encontro de motivos práticos e de clima; mas aparece como tendo se elevado acima disso. Reencontrá-se este fim que é como se este mundo de acasos, e esta é a contradição da beleza, tivesse sido produzido por uma ação, pois são exatamente essas duas coisas que temos juntas. Por um lado, numa tela de Cézanne, temos, digamos, umas oliveiras; bem, foram plantadas aí por motivos válidos, práticos, finais, cujos fins entretanto concernem apenas a um certo camponês que aliás não vemos, numa ordem que concerne à cultura e não à realidade. Por outro lado temos a idéia: "pinto este mundo do acaso, este mundo que não é o mundo do belo, para oferecer-lhes o belo”. Para dizer de outro modo. o belo é sempre algo diferente de si mesmo, no sentido em que é sempre como se o que existe, o que por um motivo qualquer existe, tenha sido feito pelo artista, tenha existido em razão da beleza. Isto significa que o artista retoma o mundo por sua própria conta, no nível em que o mundo não passa de uma encruzilhada de acasos, ou seja, no nível das maiores resistências do mundo e o apresenta como se estes acasos fossem voluntários, exatamente como alguém que tivesse derrubado um objeto e quisesse fazer-nos crer que foi por falta de jeito, e não de propósito. É exatamente isto. Apresentam-nos um mundo de acasos e nos dizem: "eu o fiz de propósito". E é precisamente pelo que o mundo tem de acaso, que o procuramos no mais profundo de sua textura, como por exemplo na pintura, até à materialidade das coisas, para aí encontrar o maior dos acasos, o acaso no nível em que o mineralogista pode observar um pedaço de sílex quebrado ou um pedaço de pedra buscando sua origem. Nesse nível encontramos pintores como Dubuffet, por exemplo, que pinta uma tela do acaso que provém da beleza, o acaso ao nível desta sala, se quiserem, onde diferentes pessoas vieram se reunir. Nesse momento, se em vez de conferencista eu fosse um pintor, faria como se fosse o desejo de realizar belas concordâncias de cores que os teria trazido aqui e finalmente, invertendo os dois temas, diria: "o pretexto foi ouvir uma conferência, mas o objetivo foi colocar cores tais que o Ticiano ou algum outro teria ficado lisonjeado em pintá-lo". Este é o movimento. Vemos portanto duas coisas. Vemos que o belo apresenta o que há de mais inerte ria natureza, o que há de mais discordante, o que há de mais disperso, como se a dispersão, a inércia, a passividade fossem voluntárias e realizadas de propósito por uma práxis. O belo nos apresenta, e este é o fim. o fim real. um objeto belo, que nos mostra tudo o que há no universo de válido, mas também de hostil ao homem; tudo e, particularmente, as dispersões e o mundo das causas, dizendo entretanto: é humano, é a práxis humana. O homem torna-se responsável, através do belo, por todo o universo, e exige daquele que olha as coisas que faça o mesmo, que realize o mesmo ato, sua generosidade ao olhar, pois num quadro nunca se receberá sem se lhe ter dado. Sua liberdade é igual à liberdade do artista que nos apresenta um objeto que se deve olhar como uma realidade livre, livremente feita. Minha adesão ao belo, o modo como vou perceber que é belo é uma atividade.

Desejaria que nunca tivessem sido convidados por um pintor que lhes diria: "Bom. agora você vai olhar as telas e julgá-las". É algo terrível a menos que também sejamos pintores, porque somos obrigados a fazer um esforço de espírito considerável para julgar enquanto o pintor nos julga, pois afinal nos diz: "Mas roce não compreende nada da minha pintura", por exemplo. Então timidamente você diz: "Gosto muito desta". — "Não, esta é muito ruim, e aquela, você gosta?" Então dizemos: "... menos..." — "Pois é a minha melhor!".

Não digo que seja ele necessariamente quem tem razão, mas o que é certo é que temos aí um diálogo muito difícil entre dois trabalhadores: o que fez o quadro e o infeliz que é obrigado a trabalhar para se pôr no nível daquele que fez o quadro. E este encontro dos dois se dá, em suma, na livre construção.

Mas o que representa o quadro? Ou não representa nada, é a arte abstrata, ou representa no seu conjunto, de qualquer maneira o mundo desejado; nos dois casos representa o que nos é dado, o que nos envolve no nível da mais viva e impossível das encruzilhadas.

A arte aparece em suma como uma espécie de práxis imaginaria que diz ao homem apresentando-lhe o mundo: eis aí o que fizemos, e que exige do homem que a pense, exige do criador que este criador crie, do mesmo modo como exige do espectador que também este espectador tome a coisa neste sentido, como Proust por exemplo, quando fala do pequeno muro de Vermeer. Vocês devem conhecê-lo. Trata-se de um pequeno muro numa tela de Vermeer. muito pequeno e cuja textura profunda, cuja constituição, poder-se-ia dizer, tanto da tela como do interior da pedra nos é dada como bela, não só no conjunto mas bela em si mesma, embora o fosse menos não houvesse o conjunto total, porque as relações de cores e de formas no interior desta pequena forma são extraordinárias. Temos nesse momento um muro que obviamente foi construído para o belo. Mas o muro de que se trata aqui era certamente uma maneira de dizer aos espectadores: "Vejam bem, quando vocês procuram o prático, o que acontece além disso? Fazem o belo. Quando encontram-se perdidos no que não se pode dominar completamente, ou seja, a matéria que jamais se domina completamente e que ao mesmo tempo transforma quem a transforma, quando estão perdidos nessa matéria, na realidade recuperam-na, pois ei-la totalmente dada numa relação igualmente prática, ou seja, numa relação que a pintou. Ê assim que se dá a exigência daquilo que se considera como fim absoluto, o mundo; não que o tenhamos criado, mas enquanto responsáveis por ele. E é assim que este quadro exige, através do artista, evidentemente, mas de cada um que o vê, de todos os outros, como disse Kant. Dizendo de outra forma, quando vejo este pequeno muro de Ver¬meer, penso o mundo como se uma liberdade humana o tivesse criado e assumido sua responsabilidade, e exijo de todos os meus próximos que aí encontram esta liberdade humana, o que só pode acontecer sendo eles próprios livres, colocando aí, como já disse, o melhor da sua generosidade. E neste momento, de alguma forma eles e eu, todos nós e o artista comunicamos, através desta ficção, deste imaginário, um mundo cujo acaso teria sido construído de propósito numa determinada direção, para um determinado fim, pelo homem. Mas aí ainda podemos ver que Kant é um tanto abstraio, pois o que significa que decifremos um objeto: quadro, música, literatura ou drama, como se fossem humanos, qualquer que seja sua natureza? Significa que aprendemos a percebê-lo como percebemos o homem. Ora, não percebemos, não vemos os homens como vemos as criaturas inanimadas. Vemo-los num certo plano, como vemos os animais, aliás, certos animais, mas não os vemos como por exemplo, uma bola rolando, ou este cinzeiro. Por quê? Porque, geralmente, quando se trata, por exemplo, de um objeto rolando sobre a mesa, lançado e rolando sobre uma mesa. vemo-lo a partir do passado, ou seja. referimos todas as presenças sucessivas do objeto que rola, ao impulso que o lançou. Não se pode vê-lo de outra forma. Quanto ao seu futuro, não o tem, Tem apenas um destino, ou seja, se o vemos rolar e percebemos o limite da mesa, sabemos conseqüentemente que deverá cair, mas este futuro não é diferente do desenvolvimento rigoroso das causas e dos encadeamentos que nos conduzem do passado a uma série presente. Quando olhamos um homem, entretanto, se quisermos compreender qualquer coisa que faça, é preciso começar pelo futuro, ou seja, é o inverso. Se vemos um senhor que faz uma série de gestos, como por exemplo: tem as mãos escondidas, está numa estação ferroviária e só vemos o fato de que está curvado, não compreendemos o que faz. Basta observar porém, que naquele instante tira uma valise, e verificar as horas para saber que procura suas provisões para comer; o que efetivamente acontece. Observem que, nesse momento, partimos da idéia do alimento, das necessidades, para chegarmos ao ato, ao sentido do momento que olhamos. Da mesma forma, quando pego um cigarro, todos sabem que sentido isso tem e se não souberem, podem perguntar o que tenho nas mãos e a partir do gesto ficarão sabendo assim como podem compreender este movimento ao contrário, ou seja: não como uma espécie de objeto inerte que esfrega a caixa e que cai, mas como um desejo de fumar que vem acender um fósforo a partir da chama, um fósforo que acende este cigarro. Como vêem. compreenderam-no no sentido inverso, ou seja, a partir do futuro. E é assim que se deve compreender o belo, a partir do futuro, e os objetos do acaso, que se seguem a partir do que ainda não existe como se fosse o fim que os atraísse desde o começo e que os fizesse sair da sombra enquanto sua sucessão no tempo comum é percebida no sentido Inverso. Uma sucessão de barulhos é uma sucessão devida ao acaso. Uma sucessão de sons em qualquer música só pode ser compreendida já estamos pelo ouvido, adiante do som que ouvimos, ao mesmo tempo que atrás, para poder localizá-lo na séria sonora que constitui a melodia. Não se pode conceber ouvir uma melodia nota após dota. Isto não significa nada, assim como não se lê uma frase palavra por palavra: a frase é lida conjuntamente, voltando-se às vozes a alguma palavra para uma orientação. Como todos sabem, é muito mais demorado ler em voz alta do que ler sem falar, mesmo que com toda a atenção, porque o olhar e sintético e é a partir dá frase terminada que se decifra o enigma. Na musica do mesmo modo há uma decifração, assim como em todas as artes em movimento ou nas outras, porque no fundo todas as artes estão em movimento, o único não citando nesse movimento sendo nós mesmos, que nos movemos ao redor e conseqüentemente não na sua harmonia, mas ao contrario, ai onde se tolera menos, justamente neste acaso que pode nos fazer morrei: a telha que cai do teto sobre a cabeça de alguém ao acaso, o automóvel é o acaso, à ponte que cai sobre a água justamente quando estamos nos banhando, tudo isso é o acaso. É portanto, neste nível que o belo reaparece. E vemos ao mesmo tempo que este belo, que esta finalidade aparecem sem causa, não a um indivíduo que a exigisse do seu próximo e este de um outro, mas a toda a coletividade* ou seja, a exigência não é tanto ao meu vizinho mais próximo, pois este pode ser alguém que não estimo e que encontro num museu, ou alguém que é muito inteligente mas não compreende a pintura, enquanto eu a compreendo e, ao exigir dele que também a compreenda, fico decepcionado porque não é a ele, que não passa de um elemento, de um médium. Ó que é que eu peco realmente? Peco que a comunidade da qual faço parte ame este objeto. Peço que encontre esta finalidade retomada e conseqüentemente é a própria coletividade que no fundo tenta nesse momento reencontrar no belo um mundo cuja responsabilidade assume. Tenta reencontrar e recuperar a passividade, a inércia, a alienação e u dores, a morte, o fracasso, a dispersão, a solidão é o abandono, ao mesmo tempo aliás que o heroísmo, seguido da morte ou heroísmo feliz. Tenta recuperar tudo o que escapa à sua necessidade atual, à sua capacidade atual e real de recuperação, ou seja: tudo o que aparece como uma coisa que não se pode evitar. Há homens que perdem a vida, que vivem miseravelmente e que morrem por sua própria, culpa ou por culpa dos outros. Há seres que são privados do mínimo, outros que. fizeram um empreendimento que fracassou e eles morreram em conseqüência, outros ainda que trabalham para outros e outros que se perdem em algum deserto que quiseram explorar. É a condição humana do homem no que ela tem de mais duro, e isto não se pode recuperar. Se um homem morre de fome em meio a um sofrimento atroz porque fez uma expedição ao Saara ou em algum outro lugar e os viveres acabaram, ninguém pode recuperar esta morte desesperada; não há nenhum jeito, está morto; acabou. Talvez possa se recuperar num outro mundo, isto concerne à fé cristã, mas neste mundo certamente nunca poderemos recuperá-lo: nunca. Do mesmo modo nunca poderemos pagar pelas pessoas que se sacrificaram por uma causa qualquer e que morreram, e que morreram mal, sofrendo, etc. Esta recuperação é portanto impossível; mas a comunidade não pode suportar que esta recuperação seja impossível. Parece então que, justamente, a recuperação se dê sob a forma da arte. Dir-se-ia que a arte é como a "cifra" da luta humana, que apresenta o mundo num dado momento como uma totalidade a ser compreendida pelo seu futuro e pelo seu fim. Por quê? Porque assim são todas as nossas ações, nossas ações são totalidades em si mesmas, ou seja. quando realizamos um ato, todas as partes deste ato estão ligadas entre elas para constituir finalmente uma organização total, e compreenda-se, do futuro. Mostram-nos o mundo como tendo um futuro humano, indo para um fim que não é outro além de si mesmo. Podemos perceber qual é o tipo de mistificação, quando este mundo aparece, de repente, pela arte, como benevolente, familiar; ele é belo, isto é, belo, agradável à vista. No entanto não é nada além dele mesmo, no seu aspecto mais selvagem. Como se pode pintar o Saara, precisamente o Saara onde acaba de morrer este viajante, pinta-se um quadro do Saara. Ê neste nível que se diz que ele é humano, apesar de tudo. Ê, como lhes digo, uma espécie de afirmação, a de que o homem se sente em casa, justamente onde ainda não chegou. Há aí se quiserem uma certa maneira pela qual se poderia dizer que a arte é fundamentalmente uma espécie de ato, de projeto que representa o homem inteiro na sua realização no mundo. No momento em que nos encontramos em plena história e em que o homem ainda não está muito longe, ele não possui o mundo, não domina as forças do mundo, não domina nem mesmo suas próprias forças ou as forças sociais, a arte já lhe dá, e há milhares de anos, uma recuperação, ou seja. mostra-lhe, de uma só vez, este mundo hostil como apreendido na estética; não se fará nada com isto, mas ele será belo. Nesse momento, podemos nos perguntar se não haverá uma mistificação. Considerando que a arte não é mais que uma maneira de apresentar como humanizadas e recuperadas certas coisas que são de fato irrecuperáveis, não haverá aí uma mistificação? Não seria melhor, então, que a arte não existisse? Talvez se lembrem do que Lênin dizia: "os músicos, temos vontade de beijá-los pelas coisas lindas que encontram, mas o mundo é mau e eles não deveriam encontrá-las. Elas não correspondem ao estado do mundo". Parece-me quê o que ele não via entretanto é que, com efeito, elas estão ai, precisamente porque o mundo é mau, estão aí como uma espécie de testemunho nu do futuro. Mas se compreendemos o sentido da frase de Lênin, vemos que ele quer dizer: "o que significa então esta infelicidade que finalmente é dada, é apresentada de uma maneira agradável?". De fato, é uma das coisas mais chocantes, freqüente em Ticiano quando apresenta seus personagens em meio a uma batalha e ai só encontramos as relações entre as cores, os volumes, as formas, os gestos, os movimentos; transforma a guerra num bale. Nesse caso, se a arte deve transformar a guerra num bale, há uma mistificação. Do mesmo modo, é possível admitir que uma história nos seja contada, uma história penosa, de uma morte, de uma vida sinistra, mas num estilo tão bem escolhido, com palavras tão belas, arrumados os acasos desta vida de uma forma tal, que, comovidos pela totalidade que compõe o livro, derramamos doces lágrimas no final, quando na realidade trata-se de uma "vida de cão"? Não há ai uma mistificação Se alguém sofresse um acidente, estivesse sangrando, seria admissível que se dissesse: "Ah, sim, é claro, mas este verde vai tão b«m com este vermelho, não é?". Há uma coisa, evidentemente, que é o estetismo puro, que representa, um esforço para apresentar nossos sofrimentos humanos recuperados pelo belo mas que na realidade não faz nada mais que suprimi-lo. Não se pode supor que dar ao real e a este acaso uma harmonia imaginária, retomar como elementos do nosso prazer universal os defeitos do nosso mundo, possa ser diferente de uma mistificação, pois afirmo que certos elementos não podem ser recuperados. Se uma mulher viveu toda a sua vida, todo o fim da sua vida, enlutada pela morte do seu filho, a mais bela pintura desta velha mulher na sua cadeira, não poderá recuperá-la para nós, num certo sentido. Conseqüentemente, se a recuperação existe, existe para Deus, ou fora deste nosso mundo. Mas no nosso mundo não existe.

Como é possível compreender então que a arte tenha um valor humano se ela mistifica? Pois bem, aqui de fato devemos introduzir uma terceira noção da qual já lhes falei, que é a noção histórica. A arte recuperou, primeiramente porque não se dirigia tanto ao homem, como a Deus, Ai pinturas do fim da Idade Média até o começo da descoberta da perspectiva e algumas durante mais tempo, todas esas pinturas representavam, para Deus, o mundo que tinha feito. Naquele, momento acreditava-se realmente na unidade e na beleza do mundo. Atualmente, mesmo para um cristão as coisas são muito mais duras, muito mais contraditórias. Nessa época, o pequeno mundo da Idade Média pintava-se a si mesmo como recuperado, até nos seus sofrimentos, porque efetivamente se supunha que havia uma recuperação total. Em seguida a arte cai, da apresentação do homem a Deus, para a apresentação do homem e do seu universo ao próprio homem, e se o Ticiano, por exemplo, recupera, não é mais por um motivo válido, de fé, mas em razão de uma mistificação verdadeira e política, porque a classe que pinta, a classe dos príncipes, dos imperadores e dos chefes das cidades quer nos apresentar, através dos seus quadros, um mundo harmonioso onde tudo seja recuperado. Ê ela que exige que o Ticiano faça da guerra um bale, porque é dessa forma que s* esconde a realidade da guerra. Mas assim que a burguesia aparece realmente como aquela classe que comanda ou que favorece os quadros, constatamos que as coisas mudam, como, por exemplo, a perspectiva. Durante anos a perspectiva tornou-se o irrecuperável num quadro. Quando na Idade Média pintava-se personagens eram pintados com (suas gorduras, mostrando-se seus defeitos... (defeito na gravação),

Quando Tintoreto quis pintar seus primeiros, verdadeiros, grandes quadros, suscitou escândalos; o "Milagre de São Marcos", particularmente suscitou um grande escândalo. Por quê? Porque encontrava-se num momento em que esta profundidade de que falamos, afastando os homens uns doa outros, criava um mundo de desordem ou de afastamento, justamente onde tinha havido um mundo unido. Nessa época a América tinha sido descoberta e o ouro espanhol começava a gerar muito, quando se despejava no mercado italiano. Veneza tinha concorrentes por toda parte, e arriscava perder em terra o domínio que já perdera no mar. Ainda sonhava com um mundo fechado, o velho mundo mediterrâneo, que correspondesse aproximadamente ao seu próprio mundo de comércio e ao mesmo tempo seu ninho. Compreende-M que tenha amado o Ti¬ciano, porque este, com habilidade, é claro, ainda a divertia um pouco. Mas quando Tintoreto pintou a desordem do espaço e todos esses quadros, temos a impressão de que algo entrou com o vento dentro de um ambiente, como um turbilhão, ou como uma forma totalmente descentralizada, excêntrica que lutasse no quadro. Nesse momento, sem que percebesse, pintava a infelicidade de Veneza, a ruína que estava por vir. E pintou essa América, a mudança das relações, essa mudança que realmente aconteceu. E Veneza detestou este pintor, que foi entretanto o maior entre os seus pintores. Detestou-o tranqüilamente, porque ele lhe apresentou um mundo de desordens dominado pela arte. mas justamente quando ela queria um mundo de ordem. Conseqüentemente, a burguesia perdeu a oportunidade de recuperar um fracasso, através da pessoa de Tintoreto. O resultado, conhecido, é que Tintoreto morreu, sem nunca ter tido direito à centésima parte da glória do Ticiano. Consta, aliás, que morreu sem dinheiro, ou pelo menos sem muito dinheiro, como um funcionário que fizeram trabalhar muito no Palácio, ou como um artesão que muitos burgueses fizeram trabalhar mas sem estimá-lo exagerada-mente. E, finalmente, quando este mundo burguês se torna mais preciso, quando a burguesia é levada a pintar seus próprios dramas, suas próprias lutas com a feudalidade, por exemplo, nesse momento o problema da recuperação se coloca e vai desembocar numa terrível contradição, a mesma que levou Goya à loucura, como podemos recordar, este foi o seu problema. Quem esteve em Madri, certamente deve ter visto os fuzilados de Goya. Este quadro, sem nenhuma dúvida, é belo, mas ao mesmo tempo é terrível, considerando-se que, pela beleza, não salva aquilo que mostra. Vê-se homens impiedosamente fuzilados, caídos nas fossas que já estão prontas para recebê-los, c não há nenhum futuro, nada além destes saldados de Napoleão, que são pintados de um modo bastante selvagem, quase sem cabeça com seus capacetes e chapéus, e que atiram. Vemos esses homens que morrem sem nenhuma exaltação heróica e patriótica, mas realmente numa espécie de horror, a maioria sem saber sequer se não teria sido escolhida ao acaso. Pois bem, não há nada a recuperar e no entanto há no quadro uma contradição. É um dos mais belos quadros de Goya e ao mesmo tempo dos mais contraditórios. A contradição está aí: o que fazer? O que fazer, parecia pensar Goya. para pintar esta guerra que me repugna, que quero que repugne aos outros, e ao mesmo tempo, o que fazer para pintá-la, ou seja, para fazer dela uma obra de arte? O que fazer para apresentar ao mundo, e esta é a contradição, como algo a se responsabilizar, o fuzilamento destes infelizes camponeses por soldados armados, tornando-o belo c ao mesmo tempo provocando indignação? Há, como vêem, uma contradição, pois se levamos ao horror, o que efetivamente deve ser o que se sente ao se ver fuzilar camponeses inocentes por soldados, o belo desaparece, mas se guardamos o belo, o horror é contido. Vocês sabem que esta contradição encontra-se na base da loucura de Goya e que este foi um dos últimos quadros que pintou com uma mente sã; em seguida refugiou-se numa visão terrível, aliás cada vez mais irreal, que representava justamente sua incapacidade de ser o pintor de tudo isso com beleza, e ao mesmo tempo de indignar-se contra tudo isso. E por quê? É nesse momento que podemos ver em que consiste a contradição do belo que faz com que não haja aqui verdadeiramente uma mistificação, mas de fato uma contradição que pode e deve ser superada. Vemos que Goya, enquanto personalidade burguesa, não passava de um indivíduo que não tinha laços consideráveis, seja com o campesinato, seja com a burguesia à qual entretanto pertencia, seja com os reis de quem tinha pintado, como sabemos, retratos pouco lisonjeiros e a quem não tinha um amor muito grande. Tratava-se conseqüentemente de um homem só, pintando só para si próprio, horrorizado mas não tendo a força e o poder, embora fosse um dos maiores pintores que já houve, não tendo entretanto, por estar só, a força e o poder para recuperar isto de alguma maneira. O que podemos compreender aqui é que o belo só é mistificação quando o artista enquanto indivíduo, quer dizer, na solidão burguesa, resolve recuperar para toda uma sociedade, porque ou estará do lado do esteta e acabará finalmente pintando ou contando história mais ou menos tristes, ocupando-se sobretudo no entanto das belas cores na palheta ou das belas palavras na língua ou na caneta, ou desejará mostrar o horror, mas não tendo em si mesmo o elemento coletivo, só poderá mostrar sempre o seu horror pessoal, ao mesmo tempo em que fará o seu trabalho pessoal. De modo que a última questão que podemos colocar, aqui, é saber quem recupera, no belo.

Se temos diante de nós um ato, um trabalho, algum conto, música, poema ou romance que remetem de uma forma ou de outra a fatos — suponhamos os fatos atrozes da última guerra, tomando como exemplo a obra de Schónberg. o músico que é sobrevivente de Varsóvia — nesse momento, se temos esta obra, sabendo que seu conteúdo é penoso e doloroso e sabendo também, porque nos foi dito que visa à beleza, ou que é bela, devemos nos perguntar quem recupera e por conta de quem. Vimos que o artista se dirige a todos e que tem com relação a todos a mesma exigência de que seja belo. Pode estar errado, mas este é o objetivo da sua pesquisa: que as pessoas do público digam umas às outras, isto é belo, você deve achá-lo belo. Vimos que se tratava ai de uma recuperação, que tentávamos pelo belo uma certa recuperação livre da encruzilhada dos acasos. Mas quem quer recuperar. Evidentemente, uma sociedade estruturada e inteira, e não indivíduos. Se tomamos como exemplo, aliás, indivíduos em qualquer lugar, sem nenhuma cultura, sem nenhuma ralação com o contexto e cora o objeto que lhes é mostrado, por que teriam o mesmo julgamento e por que exigiriam uns dos outros que seja belo? A força social, portanto, o imperativo c que seja de fato ao mesmo tempo individual e coletivo. Cada qual o expressa, não em nome de qualquer universal abstraio, mas em nome da sociedade que o produziu e da qual se considera um membro, e a partir daí começamos a compreender o que é esta sociedade que quer recuperar, através de seus membros, este elemento não recuperável que se lhe apresenta. Podemos dizer que no fundo o artista é uma espécie de médium, considerado quase como os sábios que desapareciam da ciência como algo ínessencial, uma vez feita sua descoberta. Assim, Mallarmé imaginava, por exemplo, grandes poetas trágicos que descreveriam, contariam, mostrariam numa peça que seria quase como uma cerimônia religiosa, o destino do homem diante dos homens, ou seja, diante do povo, mas que permaneceriam anônimos como se nesse momento a verdadeira relação fosse a da obra com todos os homens e que o artista, como dizia, pudesse vir, anônimo, assistir ao acontecimento como um outro, pois não é mais que um outro, mas simplesmente alguém que aprendeu a ser o médium disto. Exagerava um pouco, sem dúvida, tanto mais que esta unidade social a que me refiro é difícil de se atingir, nossas sociedades não sendo totalidades tão bem estruturadas como as obras de arte. mas, ao contrário, sociedades estruturadas, sem dúvida, mas igualmente dilaceradas por lutas que destroem suas estruturas, que as quebram, etc. De modo que encontramo-nos de fato no mundo atual, por exemplo, diante de indivíduos que representam as classes mais favorecidas, pois nas classes mais favorecidas, na alta burguesia e na classe média. há forças que agem para individualizar as pessoas e para separá-las. Essas pessoas, chegando sozinhas diante de uma obra de arte pintada por um burguês da sua espécie, igualmente só, não poderão nos fazer experimentar nada além da sua própria solidão. E todos os males do homem devidos ao acaso assim recuperados, será para eles uma mistificação ou lhes dará horror, porque o artista não os terá realmente recuperado, não tendo condições para fazê-lo. Só uma espécie de grupo social pode de fato recuperar uma obra: é o grupo social unido, e atualmente só se encontram grupos sociais unidos peia luta, pela miséria, pela guerra civil ou pelos combates. De modo que, neste nível, há algo como uma unidade que reclama do artista uma recuperação válida. O artista pode pintar homens que morrem de fome ou por trabalhos demasiados duros que lhes foram impostos, ou que morrem numa guerra, mas nesse caso se o artista pode servir para uma recuperação é justamente porque estas classes, elas próprias, querem recuperar isto para elas. É a sua própria história. Aquele, por exemplo, não morreu de fome, mas tem fome, e se quer ver alguma coisa, ou se lhe contam alguma coisa, ou, se sabe ler, se quer ler alguma coisa sobre uma morte de fome, é porque a história da morte de fome leva ao limite a sua própria história; e é isto o que quer recuperar. De modo que, neste nível, é toda a prática, toda a ação lenta e paciente de um povo unido nas suas camadas mais desfavorecidas, que leva o artista a pintar e a fazer para ele um certo esforço de recuperação de todos os acasos que sofrem e que os esmagam. Pintar uma guerra para reis é, como vimos, forçosamente, pintar um bale. Pintar uma guerra para o povo que a fez não pode ser isto. mas por outro lado também não pode ser Goya. porque Goya sentia o horror da guerra, mas o sentia sozinho. Deverá ser uma outra coisa. Primeiramente, deverá ser deste povo, ou seja. a primeira característica desta nova espécie de exigência da qual falamos agora é que o artista não só pinte ou escreva para o povo, mas que o artista seja o povo, que por ele. através dele. o próprio povo pinte ou escreva. E nesse momento deve lhe apresentar o que pôde recuperar ou assimilar. Entretanto, o que entendemos, nesse caso. por recuperar? Sob pretexto de escrevermos no povo e para o povo. somos obrigados a recuperar fazendo desaparecer justamente os fracassos irremediáveis que existem em quase todas as vidas? Se contamos a história de uma mulher que perdeu seu filho na guerra e que nunca se reanimou, deveríamos fazer alguns "amanhãs que cantam" no fim das histórias de vitória e triunfo para minimizar este luto, para fazê-lo desaparecer na alegria do triunfo, ou quem sabe deveríamos tentar dar à própria mãe um sentimento heróico que talvez desconheça e fazê-la alegrar-se finalmente por ter perdido seu filho? É evidente que não. È isto o que seria, no nível do povo, uma mistificação como a do Ticiano no nível da corte e dos príncipes. Na realidade, pude compreender uma vez esse problema, a propósito de uma das minhas peças. Chama-se La p... respectueuse. Nela encontramos uma jovem mulher, que está de mau humor porque é obrigada a dar um falso testemunho, e é obrigada porque as pessoas da cidade confundem-na com uma bela linguagem, e, em estado de contradição, assina; imediatamente se arrepende; ainda não é tarde demais. Mas, justamente, como as mulheres de má vida são muito respeitosas de uma virtude que não praticam, teve que pagar em nome desta mesma virtude e recai no seu falso testemunho que pode ter como efeito fazer matar um negro. Este era o tema da peça. Quando estive em Moscou os soviéticos propuseram levá-la, mas queriam um fim um pouco mais otimista, disseram-me "porque isto não agradará na nossa terra". Concordei em cortar a última réplica, pois me interessava que a peca fosse vista lá, mas não fiquei muito contente com isto, e pensava comigo mesmo: "é óbvio que esses ai não vão nada bem com suas idéias; precisam de histórias otimistas, etc., etc.". Mas um ano e meio depois um pequeno grupo operário que não tinha nenhuma tendência política particular, um pouco de esquerda, talvez, simplesmente porque estavam interessados em criar grupos de teatro operários, representou, na França, a mesma peça, La p... respectueuse. num grande campo de veraneio, onde as pessoas das construções e pessoas de todas as tendências vinham passar as férias, E o que me surpreendeu foi que a crítica dos russos foi feita com enorme violência, por todos os trabalhadores, que declararam: "Bem, de acordo, a história, nós podemos compreendê-la, mas por que acaba numa resignação?". Com efeito, quando se tem duras lutas a levar, e os operários sempre as têm, e ainda um trabalho penoso, quando se perde nas lutas sem saber quando novamente se ganhará, porque o processo é lento e quando finalmente se vai, à noite, ver uma peca desencorajadora na qual se mostra personagens que não têm sequer a coragem de resistir, realmente é desmoralizara te. Assim, compreendi os motivos da atitude dos russos, quaisquer que sejam eles. Em todo o caso, um público popular na França suportava dificilmente este fim que entretanto não incomodava em absoluto as classes média diante das quais a peça tinha sido antes representada. O público popular achava impossível; teria facilmente admitido uma morte heróica, não se tratava disto, ou seja, era uma comédia, não havia morte. Mas o que não podiam admitir é o que poderíamos chamar de um esvaziamento. Temos que reconhecer aqui, entretanto, que estávamos todos errados, no sentido em que, quanto a mim, esta peça tinha sido escrita certamente por burgueses, e por um burguês — e pouco importa que seja mais ou menos burguês, trata-se simplesmente de saber onde se enraíza —, mas no caso era certamente uma peça escrita por burgueses, por um burguês, para burgueses. O que eu queria mostrar nela era justamente uma sátira contra os burgueses. O que me importava era denunciar o racismo e não tinha pensado suficientemente, ao escrevê-la, nas pessoas que na história eram as vítimas desta sociedade e deste racismo. Se tivesse tido uma verdadeira preocupação de fazer a peça total, estes personagens nunca teriam agido assim. Mas, por outro lado, eles também estavam errados, no sentido em que não se pode exigir de um artista ou de um escritor, ou de um romancista, que pinte otimista, quando é pessimista. Nessa época não tinha nenhum motivo para prever que a consciência negra iría despertar nos Estados Unidos, como efetivamente aconteceu. Nessa época era a resignação e por outro lado todos sabem também que as mulheres de má vida não são propriamente, digamos, revolucionárias. Não se poderia supor que um negro acuado para ser linchado e uma mulher que sonha sobretudo com seus próprios interesses, que tem um pequeno memento de consciência mas depois sendo novamente tomada por respeitos, medos, etc., não se poderia supor aí uma unidade combatente. E também não ** poderia exigir de mim que pusesse aí o bom operário, o herói positivo que teria dito: "Não; eu não quero este testemunho e vou defender o negro", o que evidentemente teria sido completamente desclassificado. O que acontece portanto é que de fato trata-se de uma peça escrita com sentido satírico e de rejeição, sem solidariedade, por um indivíduo burguês chocado com a realidade burguesa, quando deveria ter sido escrita em comunidade com as pessoas para quem eu escrevia, e com quem escrevia. Uma parte do erro provinha aliás, em grande parte, de ter escrito sobre os Estados Unidos quando conhecia menos sobre os negros dos Estados Unidos que sobre os franceses. Tudo isso implica que tivesse menos simpatia por estas pessoas, que conhecesse melhor um negro da França, ou pelo menos que fale francês e que tenha sido em outros tempos de alguma colônia francesa; em que o conhecesse melhor, que soubesse melhor quem é. do que a um negro americano, etc. Podem ver portanto que os nossos dois erros eram mais ou menos os seguintes: da minha pane leria bastado, deixando, sem recuperar, a conclusão que deixei, ou seja. essa mulher abandonando a atitude limpa que tivera no começo e o medo de que o negro fosse preso, teria bastado simplesmente que eu fosse dos deles ou que eles fossem dos meus, que fôssemos todos do mesmo grupo e que eu escrevesse esta história de um outro ponto de vista; precisamente deste ponto de vista do futuro do qual lhes falava há pouco que é necessário na beleza mas que não deve ser fixado; um futuro que não é o futuro de "amanhãs que cantam", nem o socialismo realizado, ou algo semelhante, mas simplesmente o futuro do movimento, o futuro que faz com que hoje, por exemplo, possa se considera os negros de 45 como não tendo ainda despertado em certos casos, enquanto os negros da Europa de 60 já despertaram totalmente. Se nesse momento tivesse tido este fim das coisas, teria expressado o respeito do povo por estas pessoas que, mesmo tendo perdido, mesmo tendo abandonado, ou tentado e depois desistido, são dos seus e seus fracassos são os próprios fracassos desse povo. Mais tarde, aliás, quando a peça foi levada ao cinema, já instruído, mudei simplesmente isto: quando finalmente o negro e a prostituta são conduzidos num carro de polícia, sem que se saiba como ela testemunhará, nem o que fará, nada, simplesmente, no final, ao mesmo tempo como uma mulher que tem medo e como alguma coisa racial que desaparece, ela põe sua mão sobre a dele. Ê tudo. Isso basta para que o filme não seja pessimista e ao mesmo tempo isso basta também para que não haja aí uma verdadeira recuperação, onde, de qualquer forma, não há recuperação possível. Trata-se aqui, como vemos, simplesmente, de manifestar, digamos, perdas nítidas como a morte e a dor. etc.. trata-se de manifestar num romance ou mesmo num quadro que pinte isto. o respeito de um povo unido por uma série de reivindicações e de vontades, que reconhece todos estes fracassos como sendo seus. Nada mais. Ê recuperado no sentido em que são fracassos individuais que lhe são descritos e que ele. em coletividade. pode pensar, lendo este livro ou olhando estas coisas: "São coisas minhas; há traidores entre os meus. mas os traidores não são também pessoas tão felizes. Há mortes desesperadas, há isto, há aquilo. mas tudo isso. sou eu. somos nós". Assim, como vimos parece que atualmente encontramo-nos, depois do período burguês da literatura e da arte, diante de um período em que o público, o artista e o conjunto da sociedade, unidos numa luta não são mais que um, em que a retomada do mundo no que este mundo tem de mais sombrio e de mais hostil ao homem, pela práxis, não é mais nesse momento pedida ao artista, simplesmente para mostrar com otimismo que o mundo é belo, mas, ao contrário, para representar no instante, parque a obra de arte é sempre mais ou menos o instante, mesmo se está em movimento, a recuperação do homem pelo homem, ou se quiserem, a recuperação do mundo por uma verdadeira práxis. pela gesta épica, pelo que Brecht. no seu teatro que visa precisamente a isto, tenta chamar o gestus social, ou seja. o fato de os homens serem ao mesmo tempo empurrados e transformados pela história, feitos pela história; e os homens fazendo a história que os faz.

É neste nível que se encontra a exigência da beleza, e é neste nível que a encontrarão em Mãe Coragem, por exemplo, ou em A Boa Alma de Sé-Tsuan. Neste nível, temos a totalidade diante de nós; neste nível, podemos tomar qualquer um por aquilo que ele é. A "Mãe Coragem" não é nem boa nem má, é os dois ao mesmo tempo, é uma contradição. Ê uma infeliz que morre por causa da guerra e que vive dela ao mesmo tempo: as duas coisas. E assim se segue. Ela acompanha esta guerra interminável de trinta anos, enve¬lhecendo e empurrando uma cabana. Às vezes traidora, numa certa medida às vezes heróica, o que quiserem, sem ainda, no entanto, uma verdadeira consciência, mas reclamada pelo povo corno alguém dele. Nesse momento, temos realmente a contradição profunda que há na beleza enquanto se pinta a beleza, enquanto não importa o que pode ser belo segundo o modo como se trata não importa qual assunto. A contradição que existe entre o prazer estético que dá a beleza e ao mesmo tempo o horror de certas coisas e a infelicidade do homem que ainda não saiu da sua infelicidade, pode agora encontrar sua solução, no sentido em que a obra de arte que atual-mente falaria dos infelizes, dos mortos ou dos homens que sofrem, aparece, ela própria, de qualquer maneira que seja feita, qualquer que seja a técnica que se utilize, se for feita por um homem do povo e que vive com o seu povo, aparece, de algum modo, como uma cerimônia fúnebre, como um respeito dado pelo povo a si mesmo e conseqüentemente que o artista não passa de um médium numa cerimônia coletiva onde o belo torna-se simplesmente a evocação imediata da práxis humana no nível real e ao mesmo tempo da história, assim como da matéria onde esta práxis se exerce. Assim, a obra de arte torna-se ao mesmo tempo uma retomada imaginária em nome do povoe pelo artista do que acontece e do que aconteceu, e a prefigu¬ração profética de uma sociedade que ainda não existe, mas que se retoma a ponto de se dominar mesmo nas suas relações com o tra¬balho e a matéria. Que esta sociedade deva existir ou não, é uma coisa que ignoramos e, aliás, aqui não fazemos política, é preciso lutar para que uma tal sociedade exista. Mas o que é certo é que, e é a única coisa que vou lhes mostrar, cada obra de arte é uma espécie de testemunho desta sociedade.

Já antigamente, mas na ignorância, houve um a espécie de apelo em todas as artes, uma espécie de idéia do valor da práxis, do valor do ato, representada por toda parte. Se abrirem um poema como a Ilíada já verão aí que o encontro de Heitor e de Andrômaca é contado por uma coletividade; não porque Homero é alguém que talvez, muito possivelmente, tenha sido muitos, talvez houvesse diversos adidos; não por isso, mas porque mesmo que fosse um único homem, é contado como se um povo o tivesse contado. E há uma espécie de piedade respeitosa pela relação, seja a de Andrômaca e Heitor, ou a de Príamo e Aquiles, uma certa maneira de envolver, de compreender todos os lados petos quais se opõem e acabarão apenas por se fazerem mal uns aos outros: um fazendo-se matar e deixando uma viúva que se tornará cativa, o outro suplicando para ter seu filho, e humilhando, quando é um rei. Tudo isso, portanto, que não é recuperável, é contado com uma linguagem tão numerosa, com uma linguagem tão comum, que não evoca um único indivíduo que vê a coisa, mas uma sociedade que a vê, e uma sociedade estrutu¬rada que a vê. Mas para se ter uma verdadeira consciência disto, é preciso chegarmos na nossa época. Ê preciso realmente termos ul¬trapassado a época burguesa que quebrou certa ingenuidade, certa atitude ingênua da arte que determinou a solidão e a mistificação, para chegarmos ao momento em que o povo começa a ter neces¬sidade de seus próprios artistas, e freqüentemente os cria. Esta con¬tradição interna, que justamente faz a obra de arte, ou seja, a reto¬mada da práxis quando está alienada desapareceria se um dia esta sociedade ideal da qual fosse realizada? ou seja. Se um dia os sofri¬mentos fossem reduzidos ao mínimo e a vida coletiva fosse verdadei¬ramente humana? Certamente não, embora, é claro, isto não me concerne, mas quero apenas citar a esse respeito a reflexão de um escritor soviético que dizia: "Quando tudo for dado — no que acre¬ditava totalmente — quando houver abundância na terra, quando não tenhamos mais nada a fazer, senão realizar a vida comunista na terra, quando já a tenhamos realizado, nesse momento começará a verdadeira tragédia do homem, sua finitude, ou seja, o fato de ser finito; o fato de ser. lá, aqui, longe, perto, nem maior nem menor do que é, e de se arrastar para uma morte que necessariamente alcan¬çará, esta, dizia, é a verdadeira tragédia." Antes, eram tragédias do desumano, porque muitas coisas intervêm que são desordens, desor¬ganizações, lutas do homem, uns contra os outros. Nesse momento teremos a tragédia propriamente humana. Nesse momento haverá ainda, no próprio nível desta tragédia, uma recuperação, ou seja uma beleza que é precisamente uma arte que pinte, entre homens que estão reconciliados, sua finitude. Ê por isso, como vêem, que podemos considerar que as exigências da beleza sempre, e mais particularmente hoje. Conduzem a uma literatura da totalidade popular e, conseqüentemente, a uma literatura engajada.



Tradução de Maria Porto



Texto publicado originalmente na Revista
Discurso
REVISTA DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA FFLCH DA USP
Editora polis 1987

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