Colaboladores|Links|Sobre|home




« voltar




A CIDADE DE DEUS COMO FUNDADORA
DA HEGEMONIA CATÓLICA NA IDADE MÉDIA

Glauber Freire

Aluno do Curso de Filosofia da Universidade Mackenzie


A partir do século III, o império Romano começa a passar por profundas e significativas mudanças na sua ordem estrutural, sobretudo no coração da sua administração política, Roma. Gradativamente, as províncias começam a passar da posição de conquistadas à de conquistadoras: espanhóis, gauleses e orientais iniciam sua “invasão” no senado; no mesmo espírito, com o Edito de Caracalla, promulgado em 212, todos os provincianos conquistados ascendem ao posto de cidadãos romanos, o que corrobora para a ascensão política de Trajano e Adriano, ambos de origem espanhola, e Antonino de cultura e naturalidade gaulesa, este e aqueles, futuros imperadores. Do mesmo modo, a dinastia dos severos foi composta por imperadores africanos e imperatrizes sírias. Mesclado por culturas e conivente com o processo de mutação estrutural, Roma experimentará nos séculos porvir a mudança de posição da sua artimanha política para se perpetuar no poder, tornando-se a razão de sua desgraça, inconcebível para seus compatriotas que, ao exemplo de São Jerônimo, exilado na Palestina proferiu a sentença derradeira: “A voz fica-me na garganta e os soluços interrompem-me ao ditar essas palavras. Foi conquistada a cidade que conquistou o universo”.

Na mesma perspectiva, antes do total declínio do Império, a última grande guerra vitoriosa foi encabeçada por Trajano e a última reserva financeira fora a conquista, em 107, do ouro dos Drácios. Por esse prisma, considerando que o Império se nutria, substancialmente, das conquistas de guerra, dos saques e da prisão de escravos, além da dominação de novos territórios, Roma começa a passar por uma crise que, inevitavelmente, desembocará na derrocada total do império com a conquista efetiva dos bárbaros que, por essa época, já se encontravam circundando o interior da magnífica fortaleza dos césares.

Os ataques que terão resultado efetivo a partir do século V, porém, não se apresentaram como novidade para os romanos. Desde Marco Aurélio, entre 161 a 180, se têm notícias das tentativas inglória para a dominação de parte do território romano, fato que levaria à depressão do século III. Francos e Alemanos no ano 276 devastaram o território dos espanhóis anunciando assim o massacre e a tomada do Império Romano que se concretizaria, por fim, no século V, com a tomada da Cidade Eterna por parte de Alarico em 410.

Em meio a todas essas circunstancias históricas resta-nos, porém, compreender de que maneira a Igreja Católica, já constituída como religião dominante no Estado, se firmou como o poder ideológico supremo de todo o mundo circunscrito ao antigo império, agora pertencente aos bárbaros.

Conforme sabemos, o período medieval, conseqüência imediata do fim do Império Romano, é marcado pela concentração dos homens em feudos, cultivando e produzindo o necessário para a subsistência das suas respectivas famílias, dízimo oferecido à Igreja e percentual do trabalho destinado aos senhores, detentores das terras concedidas ao trabalho. Para tanto, nos será preciso ainda, recorrer à autoridade de um dos mais influentes pensadores do Ocidente e, concomitantemente, articulador de um ideal cristão que se perpetuou por dez séculos em todo o território da cristandade: Santo Agostinho de Hipona.

Já na abertura de sua De Civitates Dei, Santo Agostinho, ao tentar encontrar uma explicação plausível para a queda do Império Romano, se utilizará da argumentação de que nada é gratuito, o fim do império, portanto, cumpriria de maneira vigorosa os desígnios de Deus. O que doravante Santo Agostinho fará, dentro da “Cidade de Deus” e, se valendo das Sagradas Escrituras, é mesclar duas realidades justapostas, uma dando sustentação à outra e, simultaneamente, alicerçando o poder a ser fundado na terra para que se encontre o lugar merecido, por meio dos atos, o reino dos diletos filhos de Javé.

Com efeito, o que se perceberá é uma relação complementar e intercambiável de poder político, fundado na ordem do Estado e poder clerical, fundamentando-se na “interpretação” da palavra divina que aos sacerdotes é revelada cabendo a eles designar as atitudes corretas a serem praticadas pelos fiéis, clero aqui entendido como os detentores da “sapiência” divina e guardiões dos textos sagrados.

Santo Agostinho se valerá de alguns conceitos, para fundamentar suas afirmações, que se nos apresentam como chaves explicativas para a compreensão, desde os textos e as fundamentações teológicas, até a efetiva influência política que elas exercerão sobre o poder, tornando a própria Igreja detentora maior do poderio político-econômico, a saber, a idéia de intelecto finito.

Segundo De Civitates Dei, o fato curioso, não para os que detêm um conhecimento da verdade revelada, é que os bárbaros que invadiram Roma tiveram misericórdia de todos os refugiados nas catedrais cristãs. Todavia, cumpre asseverar que o grande fautor que teria levado o império à decadência seria a própria Roma, pelo apego à temporalidade da vida, afastando-se de Deus. Do mesmo modo, os inocentes que sofreram por conta dos erros alheios, segundo Agostinho, sofreram para serem testados quanto à sua dignidade de passar para a outra vida; os injustos, por sua vez, sofreram para verem já na vida presente o que futuramente terão de experimentar. Por qual motivo Deus faria isso, nos é impossível determinar, posto que temos um intelecto finito, impossível seria , portanto, apreender os desígnios de Deus. “O conhecimento do mundo daí resultante será, pois”, nos lembraria Denis Rosenfield, “fundado nos axiomas da fé”.

O que Santo Agostinho inaugura é um curioso vínculo entre o mundo a ser alcançado depois da morte, pelos merecimentos próprios de cada indivíduo, tendo por base as práticas no mundo presente, e a realidade política em vigor, a necessidade de adaptação de um contingente rebelde e grupos provenientes do poder, para que ambas as esferas possam coabitar mesclando-se para legitimar o poder de Deus na terra, representado pela sua Igreja; ao contrário de Pascal, por exemplo, ele não se retira deste mundo preparando-se para o outro, Agostinho vê na passagem por ele uma missão concreta a ser desempenhada, missão essa que é, há um só tempo, política e religiosa. Baseando-se nesses axiomas que, em primeira instância, são retirados da Bíblia, Agostinho frisa a necessidade do desapego à realidade temporal e aos bens da terra que, de alguma maneira, afastam o homem de Deus. A prisão pela satisfação pessoal à vida na terra poderia custar-lhes a salvação na outra vida, na eternidade.

Por fim, duas características históricas ainda mereceriam nossa atenção, a primeira é a relação entre as palavras de Agostinho e o desenrolar do processo do feudalismo na Europa, manifestação cultural, aliás, que só estará definitivamente extinto após a Revolução Francesa em 1789; a outra, e conseqüência desta, é o poderio que a Igreja Católica pôde exercer durante mais de mil anos na história, como tutora absoluta da revelação divina. O que, finalmente, poderíamos conjecturar é a maneira como o catolicismo após a queda do Império Romano do Ocidente, se firmou no poder; na mesma linha, como a obra agostiniana tem uma estreita relação teórica com o que foi a prática na Idade Média no referente à organização dos homens e, de que maneira, tais fatos se relacionam e corroboram reciprocamente para a instauração de um reino de Deus na cidade dos homens, enquanto os homens abdicam da sua condição de humanos em sua plenitude para viverem à espera de poderem habitar a Cidade de Deus.

Ora, o que aqui se quer defender, longe de teorias que se valham de argumentos fictícios, é uma relação causal estreita e claramente manifesta na história; de um lado, uma crise causada pela falta de elementos coerentes dentro da política administrativa romana e; por outro lado, uma teologia que, embora comungando com toda uma tradição e inspirada no “livro da revelação divina”, se fundamentou em uma manifestação específica e, simultaneamente, influenciou os séculos posteriores da historia do Ocidente. A Cidade de Deus de Santo Agostinho, portanto, no que tange ao estudo e ao entendimento da Idade Média, apresenta-se como uma das obras magistrais que explicam a razão passada, o contexto presente e o desenrolar daquele processo ou, como nos diria Jorge Luis Borges em outro contexto, no seu Avelino Arredondo, no que se refere à Cidade de Deus é preciso percorrer “página por página, às vezes com interesse, às vezes com tédio”, nos impondo “o dever de aprender de cor algum capítulo” para entendermos mais de nós mesmo.







« voltar

Colaboladores|Links|Sobre|home