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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS

A PESTE - ALBERT CAMUS

TEXTOS SOBRE DEUS
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1º sermão do Padre Paneloux

“Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes”, a assistência se tumultuou. Logicamente, o que se seguiu não parecia estar de acordo com este exórdio patético. Só a seqüência do discurso fez compreender aos nossos concidadãos que, por um hábil processo oratório, o padre tinha dado de uma só vez, como um golpe que se desfecha, o tema de todo o seu sermão. Logo depois desta frase, Paneloux citou o texto do Êxodo relativo à peste no Egito e disse: “A primeira vez que este flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos e a peste o faz então cair de joelhos. Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isto e caí de joelhos.”

E continuou, num tom mais veemente: “Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem teme-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que o joio se separe do grão. Haverá mais joio que grão, mais chamados que eleitos e esta desgraça não foi desejada por Deus. Por longo tempo, este mundo compactuou com o mal, repousou na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem, todos se sentiam fortes. Chegado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar-se levar; a misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isto não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na sua eterna esperança, acaba de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste!”

“Sim, chegou a hora de refletir. Pensaste que vos bastaria visitar Deus aos domingos para ficardes com os vossos dias livres. Pensastes que algumas genuflexões pagariam suficientemente o vosso desleixo criminoso. Mas Deus não é fraco. Essas atenções espaçadas não bastavam à sua ternura devoradora. Ele queria ver-vos mais tempo, é a sua maneira de vos amar, que é, a bem dizer, a única maneira de amar. Eis por quê, cansado de esperar a vossa vinda, deixou que o flagelo vos visitasse, como visitou todas as cidades do pecado desde que os homens têm história. Sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, Faraó e Jô e também todos os malditos. E, como esses o fizeram, é um olhar novo que lançais sobre os seres e as coisas, desde o dia em que esta cidade fechou os seus muros em torno de vós e do flagelo. Sabeis agora, finalmente, que é preciso chegar ao essencial.”...... Este mesmo flagelo que vos aflige vos eleva e vos mostra o caminho.

“Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, para alcançar a Eternidade. Os que não eram atingidos enrolavam-se nas roupas contaminadas para terem a certeza de morrer. Sem dúvida, esta fúria de salvação não é recomendável. Ela revela uma precipitação lamentável, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais apressado que Deus, e tudo o que pretende acelerar a ordem imutável que ele estabeleceu de uma vez para sempre conduz à heresia.

O Padre Paneloux esperava, contra toda a esperança, que, a despeito do horror destes dias e dos gritos dos agonizantes, os nossos concidadãos dirigiriam ao céu a única palavra que era cristã e que era de amor. Deus faria o resto.


Referente a Jean Tarrou, morador do hotel do centro, amigo do médico Rieux

A Tarrou, que parecera admirar-se da vida enclausurada que ele levava, tinha mais ou menos explicado que, segundo a religião, a primeira metade da vida de um homem era uma ascensão e a outra um declínio; que, no declínio, os dias do homem já não lhe pertenciam, que lhe podiam ser arrebatados a qualquer momento, eu ele nada podia fazer deles, e que o melhor, justamente, era não fazer nada. A contradição, aliás, não o assustava, pois tinha dito pouco depois a Tarrou que, certamente, Deus não existia, já que, de outro modo, os padres seriam inúteis.


Rieux narrando a cidade

....Todas as tardes nas avenidas, um velho inspirado, com um chapéu de feltro e gravata esvoaçante, atravessa a multidão, repetindo sem cessar: ‘Deus é grande, vinde a Ele.’ Todos se precipitam, pelo contrário, para qualquer coisa que conhecem mal ou que lhes parece mais urgente que Deus. A princípio, quando achavam que era uma doença como as outras, a religião tinha prestígio. Mas quando viram que o caso era sério, lembraram-se do prazer. Toda a angústia que se pinta durante o dia nos rostos se dissolve então, no crepúsculo ardente e poeirento, numa espécie de excitação desvairada, numa liberdade desajeitada que inflama todo um povo.


Diálogo entre Tarrou e Rieux

- Que pensa do sermão de Paneloux, doutor?

- Vivi demais nos hospitais para gostar da idéia de castigo coletivo. Mas, como sabe, os cristão falam às vezes assim, sem que realmente o pensem. São melhores do que parecem.

- Pensa então, como Paneloux, que a peste te o seu lado bom, que abre os olhos, que obriga a pensar? O médico sacudiu a cabeça com impaciência.

- Como todas as doenças deste mundo. Mas o que é verdade em relação aos males deste mundo é também verdade em relação à peste. Pode servir para engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste.

Tarrou perguntou:

- Acredita em Deus, doutor?

De novo, a pergunta fora feita naturalmente. Mas desta vez Rieux hesitou.

Não, mas que quer dizer isso? Estou nas trevas e tento ver claro. Há muito que deixei de achar isto original. ....Paneloux é um estudioso. Não viu morrer bastante e é por isso que fala em nome de uma verdade. Mas o mais modesto padre de aldeia que cuida dos seu paroquianos e que ouviu a respiração de um moribundo pensa como eu.

....Tarrou sorriu, sem se mexer na poltrona.....

- ....Porque o senhor mesmo demonstra tanta dedicação, já que não acredita em Deus? ....o médico disse que já respondera e que, se acreditasse num Deus todo-poderoso, deixaria de curar os homens, deixando a ele esse cuidado. Mas que ninguém no mundo, não, nem mesmo Paneloux, que julgava acreditar, acreditava num Deus desse gênero, já que ninguém se entregava totalmente, e que nisso ao menos ele, Rieux, julgava estar no caminho da verdade, lutando contra a criação tal como ela era......No momento, há doentes e é preciso curá-los.

- Afinal?... – perguntou suavemente Tarrou.

- Afinal... – continuou o médico, e voltou a hesitar, holhando para tarrou com atenção. – É uma coisa que um homem como o senhor consegue compreender, não é verdade? Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu, onde ele se cala.


O jornalista Rambert, na tentativa de sair da cidade, para encontrar-se com sua amada, conversa com a velha espanhola que o acolhe

- Ela é simpática? Perguntava a velha, sorrindo.

- Muito simpática.

- Bonita?

- Acho que sim.

- Ah! – dizia ela. – É por isso. Rambert refletia. Era sem dúvida por isso, mas era impossível que fosse só por isso.

- Não acredita em Deus? Perguntou a velha, que ia à missa todas as manhãs.

Rambert reconheceu que não e a velha disse ainda que era por isso.

- Tem razão, é preciso ir ao encontro dela. Senão, o que lhe restaria?


Padre Paneloux, no hospital assiste a morte de uma criança, e dialoga com Rieux

Paneloux olhou para a boca infantil, conspurcada pela doença, cheia desse grito de todas as idades. E deixou-se cair de joelhos e todos acharam natural ouvi-lo dizer, com uma voz pouco abafada, mas nítida, por detrás do lamento anônimo que não cessava: “Meu Deus, salvai esta criança”

-... – murmurou Paneloux – Isto é revoltante, pois ultrapassa a nossa compreensão. Mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender.

Responde Rieux – Como sabe, o que eu odeio é a morte e o mal. E quer queira, quer não estamos juntos para sofrê-los e combate-los – Rieux segurava a mão de Paneloux. – Como vê – disse, evitando fixa-lo -, nem mesmo Deus pode nos separar a gora.


2º Sermão de Paneloux, ao qual Rieux assistiu.

O interesse de Rieux fixou-se quando Paneloux disse vigorosamente que havia coisas que se podiam explicar em relação a Deus e outras que não se podiam. Havia, certamente, o bem e o mal e, geralmente, as pessoas sabiam explicar o que os distinguia. A dificuldade começa porém no interior do mal. Havia, por exemplo, o mal aparentemente necessário e o mal aparentemente inútil. Havia Dom Juan mergulhado nos Infernos e a morte de uma criança. E, na verdade, nada havia de mais importante sobre a terra que o sofrimento de uma criança e o horror que esse sofrimento traz consigo e as suas razões que é preciso descobrir. No resto da vida, Deus nos facilitava tudo e, até então, a religião não tinha méritos......Quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante da dor humana?

Mas a religião do tempo da peste não podia ser a religião de todos os dias e se Deus podia admitir, e mesmo desejar, que a alma repouse e se rejubile nos tempos de felicidade, desejava-a excessiva nos excessos da desgraça. Deus concedia hoje às suas criaturas a graça de coloca-las numa desgraça tal que lhes era necessário reencontrar e assumir a maior virtudo, que é a do Tudo ou Nada.’ Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil – que era preciso quere-la, porque Deus a queria. Os tumores que se formavam eram o caminho natural por onde o corpo rejeitava a infecção......e diziam “Meu Deus, daí-nos tumores”, o cristão saberia abandonar-se à vontade divina ainda que incompreensível. O mal era enviado por Deus.

......”Meus irmãos”, disse por fim Paneloux, anunciando que ia terminar, “ o amor de Deus é ..um amor difícil. Ele pressupõe o abandono total de si mesmo e o menosprezo da pessoa. Mas soe ele pode apagar o sofrimento e a morte das crianças, só ele, em todo o caso pode torna-la necessária, pois é impossível compreende-la e não podemos senão deseja-la. Eis a difícil lição que desejava compartilhar convosco. Eis a fé, cruel aos olhos dos homens, decisiva aos olhos de Deus de quem é preciso nos aproximarmos. Diante desta imagem terrível, é preciso que nos igualemos.


O Padre Paneloux adoece e o diagnóstico de Rieux é:

- O senhor não tem nenhum dos sintomas principais da doença – disse-lhe o médico – mas, em todo o caso, há dúvidas e tenho de isola-lo

- O padre sorriu estranhamente, como por delicadeza, mas calou-se. Rieux saiu para telefornar e voltou. Olhava para o padre.

- Ficarei perto do senhor – disse-lhe, suavemente.

-......Obrigado. Mas os religiosos não têm amigos. Concentraram tudo em Deus...









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