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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS

ALBERT CAMUS

SOBRE EPICURO E LUCRÉCIO





É preciso esperar, na verdade, os últimos momentos do pensamento antigo para ver a revolta começar a encontrar a sua linguagem, entre os pensadores de transição, e em ninguém de maneira mais profunda do que nas obras de Epicuro e Lucrécio.

A terrível tristeza de Epicuro já traz um novo diapasão. Ela nasce, sem dúvida, de uma angústia da morte que não é estranha ao espírito grego. Mas o tom patético que essa angústia assume é revelador. «Podemos nos precaver contra toda espécie de coisas; mas, no que concerne à morte, continuamos como os habitantes de uma cidadela arrasada.” Lucrécio afirma: “A substância deste vasto mun¬do está reservada para a morte e a ruína.” Por que, então, adiar o gozo para mais tarde? “De espera em espera”, diz Epicuro, «consu-mimos nossa vida e morremos todos no sofrimento.” É preciso, portanto, desfrutar. Mas que estranho gozo! Consiste em refazer os muros da cidadela, em garantir, na sombra silenciosa, o pão e a água. Já que a morte nos ameaça, é preciso demonstrar que a morte não é nada.

Como Epicteto e Marco Aurélio, Epicuro vai banir a morte da existência humana. «A morte não é nada em relação a nós, porque aquilo que está destruído é incapaz de sentir; e o que não sente nada é para nós.” Será o nada? Não, porque tudo é matéria neste mundo, e morrer significa apenas retornar aos elementos. O ser é a pedra. A singular volúpia da qual nos fala Epicuro reside sobretudo na ausência de sofrimento; é a felicidade das pedras. Para escapar ao destino, em um admirável movimento que reencontraremos em nossos grandes clássicos, Epicuro mata a sensibilidade; e, já de saída, o primeiro grito da sensibilidade, que é a esperança. O que o filósofo grego diz acerca dos deuses só pode ser entendido dessa forma.

Toda a desgraça dos homens vem da esperança que os arranca do silêncio da cidadela, que os atira às muralhas à espera da salvação. Esses movimen¬tos irracionais têm como único efeito o de reabrir feridas cuidadosamente envoltas em bandagens. É por isso que Epicuro não nega os deuses, ele os afàsta, mas tão vertiginosamente que a alma não tem outra saída a não ser enclausurar-se novamente. “O ser bem-aventurado e imortal não tem negócios e nada cria para ninguém.” E Lucrécio acrescenta: “É incontestável que os deuses, por sua pro¬pria natureza, gozam de imortalidade em meio à paz mais profunda, alheios a nossos negócios, dos quais se desligaram totalmente.» Esqueçamos portanto os deuses, não pensemos mais neles e «nem vos¬sos pensamentos do dia, nem vossos sonhos da noite vos causarao problemas”.

Mais tarde reencontraremos, embora com significativas nuances, o tema eterno da revolta. Um deus sem recompensa nem castigo, um deus surdo é a única imaginação religiosa dos revolta¬dos. Contudo, enquanto Vigny irá maldizer o silêncio da divindade, Epicuro julga que, sendo a morte inelutável, o silêncio do ho¬mem prepara melhor para esse destino do que as palavras divinas. O longo esforço dessa curiosa mente esgota-se erguendo muralhas em volta do homem, refazendo a cidadela e sufocando sem pieda¬de o irreprimível grito da esperança humana. Então, cumprido esse recuo estratégico, e só então, Epicuro, como um deus entre os homens, cantará vitória num canto que marca efetivamente o carater defensivo de sua revolta. “Eu desmontei as tuas cidades, ó destino, fechei todos os caminhos pelos quais podias alcançar-me. Não nos deixaremos vencer nem por ti, nem por nenhuma força nefasta. E, quando soar a hora da inevitável partida, nosso desprezo por todos os que se agarram em vão à existência irromperá neste belo canto: Ah! com que dignidade vivemos!”

Lucrécio é o único em sua época que vai levar bem mais adiante essa lógica, fazendo-a desembocar na reivindicação moderna. No fundo, nada acrescenta a Epicuro, recusando, igualmente, qual¬quer princípio de explicação que não se enquadre no sentido. O átomo é o último refúgio em que o ser; reduzido aos seus elementos primários, prosseguirá numa espécie de imortalidade surda e cega, de morte imortal, que, tanto para Lucrécio quanto para Epicuro, configura a única felicidade possível. No entanto, ele precisa admitir que os átomos não se agregam sozinhos e, para não fazer uma concessão a uma lei superior; conseqüentemente, ao destino que de¬seja negar; Lucrécio admite um movimento fortuito, o clinâmen, segundo o qual os átomos se encontram e se agregam. É interessante observar que já se coloca o grande problema dos tempos modernos, em que a inteligência descobre que subtrair o homem ao destino equivale a entregá-lo ao acaso. E por isso que ela se esforça para tornar a dar-lhe um destino, desta vez histórico.

Lucrécio não chegou até esse ponto. Seu ódio ao destino e à morte se satisfaz com esta terra ébria, na qual os átomos fazem o ser por acidente e na qual o ser por acidente se dissipa em átomos. Mas seu vocabulário comprova uma nova sensibilidade. A cidadela cega torna-se praça forte, Moenia mundi, muralhas do mundo, uma das expressões-chave da retórica de Lucrécio. Sem dúvida, a grande preocupação nessa praça é fazer calar a esperança. Mas a renúncia metódica de Epicuro transforma-se em uma ascese vibrante, coroada às vezes por maldições. A pieda¬de, para Lucrécio, é certamente “poder tudo olhar com um espírito que nada perturba”. No entanto, esse espírito treme diante da injus¬tiça que é feita ao homem. Sob a pressão da indignação, novas no¬ções de crime, de inocência, de culpa e de castigo percorrem o gran¬de poema sobre a natureza das coisas. Nele, fala-se do “primeiro crime da religião”, de Ifigênia e de sua inocência degolada; desse traço divino que “muitas vezes passa ao largo dos culpados e, por um castigo imerecido, vai tirar a vida a inocentes”.

Se Lucrécio ridiculariza o medo dos castigos do outro mundo, não é absolutamente como Epicuro, no movimento de uma revolta defensiva, e sim por um movimento agressivo: por que o mal seria castigado, se temos visto exaustivamente que o bem não é recompensado O próprio Epicuro, na epopéia de Lucrécio, tornar-se-á o re¬belde magnífico que não era. “Enquanto aos olhos de todos a hu¬manidade levava na terra uma vida abjeta, esmagada sob o peso de uma religião cujo rosto se mostrava do alto das regiões celestiais, ameaçando os mortais com seu aspecto horrível, o primeiro, um grego, um homem, ousou levantar contra ela os seus olhos mortais, e contra ela insurgir-se... E assim a religião foi derrubada e pisoteada, e, quanto a nós, a vitória nos eleva aos céus.”

Sente-se aqui a diferença que pode haver entre a nova blasfêmia e a maldição antiga. Os heróis gregos podiam desejar tornarem-se deuses, mas ao mesmo tempo em que os deuses já existentes. Tratava-se de uma promoção. O homem de Lucrécio, pelo contrário, procede a uma revolução. Ao negar os deuses indignos e criminosos, ele as¬sume o seu lugar. Sai da praça forte e dá início aos primeiros ataques contra a divindade em nome do sofrimento humano. No uni-verso da antiguidade, o assassinato é o inexplicável e o inexpiável. Já no caso de Lucrécio, o assassinato de um homem é apenas uma resposta ao assassinato divino. E não é por acaso que o poema de Lucrécio termina com uma prodigiosa imagem de santuários divinos cheios de cadáveres da peste.









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