<%response.expires = 0%>



Home | Links | Sobre



ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS
PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS


O ESTRANGEIRO

Albert Camus

Segunda parte

I

Logo a seguir à minha prisão, fui interrogado por várias vezes. Mas tratava-se de interrogatórios de identidade, que não duraram muito tempo. A primeira vez, no comissariado, o meu caso parecia não interessar a ninguém. Oito dias depois, ao contrário,. o juiz de instrução olhou-me com curiosidade. Mas, para começar, perguntou-me apenas o nome e a morada, a profissão, a data e o local do nascimento. Depois quis saber se eu já escolhera advogado. Respondi que não e perguntei-lhe se era absolutamente necessário ter advogado. "Por quê?", disse ele. Repliquei, afirmando que achava o meu caso muito simples. Sorriu, dizendo: "É uma opinião. No entanto, a lei é a lei. Se o Senhor não quer quem o defenda, nós nomeamos automaticamente advogado". Achei que era muito cômodo, a justiça encarregar-se desses pormenores. Disse-lho. Concordou comigo e concluiu que a lei estava bem feita.
No começo, não o tomei a sério. Recebeu-me numa sala com reposteiros nas paredes. Tinha em cima da secretária um único candeeiro, que iluminava a cadeira onde me mandou sentar, enquanto ele ficava na sombra. Tinha já lido descrições parecidas em livros, e tudo isto me pareceu uma brincadeira. Depois da nossa conversa, pelo contrário, olhei-o e vi um homem de traços finos, profundos olhos azuis, muito alto, com um comprido bigode grisalho e uma abundante cabeleira quase branca. Afigurou-se-me uma pessoa razoável e, no fim de contas, simpática, apesar dos tiques nervosos que, de quando em quando, lhe deformavam a boca. À saída ia mesmo para lhe estender a mão, mas lembrei-me a tempo de que eu era um assassino.
No dia seguinte, um advogado veio falar comigo à prisão. Era baixo e gordo, bastante novo ainda, os cabelos cuidadosamente penteados com fixador. Apesar do calor (eu estava em mangas de camisa) envergava um traje escuro, um colarinho duro e uma gravata esquisita, com grandes riscas pretas e brancas. Pôs em cima da cama a pasta que trazia debaixo do braço, apresentou-se e disse que estudara o meu processo. O meu caso era delicado, mas se eu tivesse confiança nele, não duvidava do êxito final. Agradeci-lhe e ele disse-me: "Entremos no fundo da questão".
Sentou-se na cama e explicou-me que tinham andado a investigar a minha vida privada. Tinham descoberto que a minha mãe morrera recentemente no asilo. Procedera-se então a um inquérito em Marengo. Os investigadores tinham sabido que eu "dera provas de insensibilidade" no dia do enterro. "Veja se compreende, disse o advogado, custa-me um bocado perguntar-lhe isto. Mas é muito importante. E será um grande argumento para a acusação, se eu não conseguir dar resposta". Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me se eu, nesse dia, tinha tido pena da minha mãe. Esta pergunta muito me espantou e parecia-me que não era capaz de fazê-la a alguém. Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo e que era difícil dar-lhe uma resposta. É claro que gostava da minha mãe, mas isso não queria dizer nada. Todos os seres saudáveis tinham, em certas ocasiões, desejado mais ou menos, a morte das pessoas que amavam. Aqui, o advogado cortou-me a palavra e mostrou-se muito agitado. Obrigou-me a prometer que não diria isto na audiência, nem ao juiz de instrução. Expliquei-lhe, no entanto, que a minha natureza era feita de tal modo que as minhas necessidades físicas perturbavam freqüentemente os meus sentimentos. No dia do enterro, estava muito cansado e com muito sono. De forma que não dei lá muito bem pelo que se passou. O que podia afirmar, com toda a certeza, era que preferia que a mãe não tivesse morrido. Mas o advogado não ficou contente. Disse: "Isso não chega".
Pôs-se a pensar. Perguntou-me se se poderia dizer que, nesse dia, eu reprimira os meus sentimentos naturais. Respondi: "Não, porque não é verdade". Olhou-me de um modo estranho, como se eu lhe inspirasse certa repulsa. Disse-me quase maldosamente que, de qualquer forma, o Diretor e o pessoal do asilo seriam ouvidos como testemunhas, o que "seria sem dúvida muito mau para mim". Fiz-lhe notar que essa história não tinha nenhuma relação com o meu caso, mas ele respondeu-me que se via bem que eu não conhecia a justiça de perto.
Foi-se embora com um ar zangado. Teria querido retê-lo, explicar-lhe que desejava a simpatia dele, não para ser mais bem defendido mas, se assim me posso exprimir, naturalmente. Percebia sobretudo que o punha pouco à vontade. Não me compreendia e desconfiava um pouco de mim. Desejava afirmar-lhe que era como toda a gente, absolutamente como toda a gente. Mas tudo isso, no fundo, não era de grande utilidade e, por preguiça, renunciei a esta intenção.
Pouco tempo depois, fui outra vez levado ao juiz de instrução. Eram duas horas da tarde e, desta vez, o escritório estava cheio de luz, uma luz que a cortina da janela mal conseguia abrandar. O calor apertava. Mandou-me sentar e, muito amavelmente, declarou que o meu advogado, "devido a um contratempo", não pudera comparecer. Mas eu tinha todo o direito de não lhe responder às perguntas, e de esperar até que o advogado pudesse estar presente.
Disse que podia perfeitamente responder sozinho. Apoiou um dedo numa campainha, debaixo da mesa. Um escrivão ainda novo veio colocar-se atrás das minhas costas.
Instalamo-nos os dois confortavelmente nas nossas poltronas. O interrogatório principiou. Disse-me antes de mais nada, que me pintavam como tendo um caráter taciturno e fechado, e quis saber a minha opinião a este respeito. Respondi: "que, como nunca tenho quase nada a dizer, prefiro calar-me". Sorriu como da primeira vez, concordou que era uma razão de peso e acrescentou: "Aliás, não tem importância nenhuma". Calou-se, olhou para mim, e levantou-se bruscamente na cadeira, dizendo: "O que me interessa, é o Senhor!" Não compreendi o que ele queria dizer e não respondi. "Há coisas, acrescentou ainda, que me escapam, no seu gesto. Estou certo de que me ajudará a compreender melhor". Repliquei que era muito simples. Pediu-me para lhe contar o que fizera nesse dia. Voltei a descrever o que já lhe tinha contado: Raimundo, a praia, o banho, a disputa, outra vez a praia, a pequena nascente, o sol e os cinco disparos do revólver.
A cada frase, ele dizia: "Bem, bem". Quando cheguei ao corpo estendido na areia, aprovou-me, dizendo: "Bom." Quanto a mim, estava cansado de repetir sempre a mesma história e tinha a impressão de nunca ter falado tanto. Depois de um silêncio, o juiz levantou-se e disse que me queria ajudar, que o meu caso o interessava e, com a ajuda de Deus, faria qualquer coisa por mim. Mas antes, queria dirigir-me ainda algumas perguntas. Sem transição, perguntou se eu gostava da minha mãe. Redargüi: "Sim, como toda a gente". E o escrivão que, até aqui escrevia em ritmo normal à máquina, enganou-se e teve que voltar atrás. Ainda sem lógica aparente, o juiz perguntou-me então se disparara os cinco tiros a seguir. Pensei um bocado e especifiquei que disparara primeiro um só tiro e, alguns segundos depois, os outros quatro. "Porque fez uma pausa entre o primeiro e o segundo tiro?", disse ele. Mais uma vez, voltei a ver a praia avermelhada e senti na testa a ardência do sol. Mas desta vez, não respondi nada. Durante todo o silêncio que se seguiu, o juiz pareceu agitado. Sentou-se, mexeu nos cabelos, pôs os cotovelos em cima da secretária e debruçou-se um pouco para mim com um ar estranho: "Porque foi o Senhor, porque foi o Senhor disparar contra um corpo caído?" Também não soube responder. O juiz passou a mão pela testa e repetiu a pergunta, com a voz um pouco alterada: "Por quê? É preciso que me diga. Por quê?" Eu continuava calado.
Bruscamente levantou-se, dirigiu-se com grandes passadas para a extremidade da secretária e abriu uma gaveta. Tirou um crucifixo de prata e, agitou-o no ar, voltando para o pé de mim. E, com uma voz completamente diferente, quase trêmula, gritou: "Conhece-O, conhece-O?" Respondi: "Sim, é claro que conheço". Disse-me então muito depressa e de um modo apaixonado que acreditava em Deus, que nenhum homem era suficientemente culpado para que Deus não lhe perdoasse, mas que para isso era necessário que o homem, pelo seu arrependimento, se transformasse como que numa criança, cuja alma está vazia e pronta a acolher tudo. Todo o seu corpo se debruçava sobre a mesa. Agitava o crucifixo diante dos meus olhos. Para dizer a verdade, eu mal seguira o raciocínio dele, primeiro porque tinha calor e porque voavam no escritório grandes moscas que me vinham pousar na cara, e em seguida, porque me assustava um bocadinho.
Reconhecia ao mesmo tempo que esta sensação era ridícula, pois afinal o criminoso era eu. Continuou, no entanto. Compreendi pouco a pouco que, na opinião dele, havia apenas um ponto obscuro na minha confissão, o fato de ter esperado entre o primeiro e o segundo disparo. Quanto ao resto estava bem, mas isso é que ele não conseguia compreender.
Ia dizer-lhe que não valia a pena obstinar-se: Este último ponto não tinha tanta importância como isso. Mas ele interrompeu-me e exortou-me pela última vez, olhando-me de alto e perguntando-me se eu acreditava em Deus. Respondi que não.
Sentou-se indignadamente. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os que não o queriam ver. A convicção dele era essa e, se um dia duvidasse, a vida deixaria de ter sentido. "Quer o Senhor, exclamou, que a minha vida deixe de ter sentido?" Eu achava que não tinha nada com isso, e disse-lho. Mas, através da mesa, estendeu a imagem de Cristo e exclamou: "Eu, sou cristão. Peço perdão pelos teus pecados a Este. Como podes não acreditar que Ele sofreu por ti?"
Reparei que me estava a tratar por tu... mas estava farto. O calor apertava cada vez mais. Como sempre que me quero desembaraçar de alguém que já nem estou a ouvir, fiz menção de aprovar. Com grande surpresa minha, tomou um ar de triunfo: "Vês, vês!" dizia ele. Não é verdade que crês e que te vais confiar a Ele?”É claro que, uma vez mais, disse que não. Voltou a deixar-se cair na cadeira.
Tinha um ar muito cansado. Deixou-se ficar calado durante alguns momentos, enquanto a máquina de escrever, que não deixara de seguir o diálogo, prolongava ainda as últimas frases. Em seguida, olhou-me atentamente e com um bocadinho de tristeza: Murmurou: "Nunca tinha visto uma alma tão empedernida como a sua. Os criminosos que aqui vieram, choraram sempre diante desta imagem da dor". Ia responder que isso sucedia porque, justamente eram criminosos. Mas pensei que, afinal, também eu era como eles. Não me conseguia habituar a esta idéia... O juiz levantou-se então, como se quisesse significar que o interrogatório acabara. Perguntou-me apenas, com o mesmo ar um pouco fatigado, se estava arrependido do meu gesto. Meditei e disse que, mais do que verdadeiro arrependimento, experimentava certo aborrecimento. Tive a impressão de que não me compreendia. Mas nesse dia, as coisas não foram mais longe.
Mais tarde, voltei a estar várias Vezes com o juiz. Mas agora, sempre acompanhado do advogado. Limitavam-se a pedir-me para pormenorizar certos pontos das minhas anteriores declarações. Ou então, o juiz discutia as acusações com o advogado. Mas nesse momento não se ocupavam de mim. Pouco a pouco, em todos os casos, o tom do interrogatório foi-se modificando. Parecia que o juiz já se não interessava por mim e que, de algum modo, classificara já o meu caso. Não voltou a falar-me de Deus e não voltei a vê-lo com a excitação do primeiro dia. O resultado é que as nossas conversas se tornaram mais cordiais. Algumas perguntas, umas frases trocadas com o meu advogado e pronto, o interrogatório acabara. O caso seguia o seu curso, na expressão do juiz. Por vezes, quando a conversa era de ordem geral, eu também entrava. Começava a poder respirar. Ninguém era mau comigo, nesses momentos. Tudo era tão natural, tão bem regulado e tão sobriamente representado, que tinha a impressão ridícula de "fazer parte da família". E ao fim dos onze meses que durou a instrução do processo, posso dizer que quase me espantava de alguma vez ter gostado tanto de uma coisa, como desses raros instantes em que o juiz me levava à porta do gabinete, batendo-me no ombro e dizendo com um ar cordial: "Por hoje acabou, Sr. Anti-Cristo". Entregavam-me então outra vez nas mãos dos policiais.


II

Há coisas de que prefiro não falar. Quando entrei para a prisão, percebi logo ao fim de poucos dias que não gostaria de falar dessa parte da minha vida. Mais tarde, deixei de atribuir importância a essas repugnâncias. Na realidade, nos primeiros dias não estava verdadeiramente na prisão: Esperava vagamente que surgisse qualquer acontecimento novo. Foi apenas depois da primeira e última visita de Maria que tudo principiou.
A partir do dia em que recebi a carta dela (dizia que não a deixavam vir visitar-me, pois não era minha mulher) a partir desse dia senti que a minha casa era a minha cela, e que a vida parava aí. No dia em que me prenderam, fecharam-me primeiro num quarto onde já havia muitos detidos, a maioria deles Árabes. Ao verem-me, começaram a rir. Depois me perguntaram o que é que eu tinha feito. Disse que tinha morto um Árabe e eles calaram-se todos. Mas uns momentos depois, caiu a noite. Os Árabes explicaram-me como devia arranjar a enxerga onde me havia de deitar. Enrolando uma das extremidades, improvizava-se um travesseiro. Durante toda a noite, passearam-me piolhos pela cara. Alguns dias depois, isolaram-me numa cela, onde me deitava numa cama de madeira. Dispunha de uma bacia de ferro. A prisão ficava na parte de cima da cidade e, da minha pequena janela, podia ver o mar. Foi num dia em que estava agarrado às grades, a cara voltada para a luz, que um guarda entrou, dizendo-me que tinha uma visita. Pensei que era Maria. Era ela, de fato.
Atravessei um corredor comprido, depois umas escadas e, para acabar, outro corredor. Entrei numa sala muito grande, iluminada por uma vasta janela. A sala era dividida em três partes por duas grades que a cortavam no comprimento. Entre as dois grades havia um espaço de oito a dez metros que separava os visitantes dos prisioneiros. Vi que Maria estava em frente de mim, com o seu vestido às riscas e a sua cara queimada pelo sol. Do meu lado havia uma dúzia de presos, quase todos Árabes. Maria estava rodeada de Mouros, entre duas visitantes, uma velhinha de beiços cerrados, vestida de preto e uma mulher gorda, em cabelo, que falava muito alto, com grande abundância de gestos. Por causa da distância entre as grades, os visitantes e os presos viam-se obrigados a falar quase aos gritos. Quando entrei, o barulho das vozes, fazendo eco nas grandes paredes nuas da sala e a luz crua que corria do céu para os vidros e se refletia na sala, causaram-me uma espécie de vertigem. A minha cela era mais calma e mais sombria. Precisei de alguns segundos para me adaptar. Acabei, no entanto, por ver com nitidez cada cara, como se se recortasse no dia claro. Observei que havia um guarda sentado na extremidade do corredor, entre as duas grades. A maioria dos prisioneiros árabes, assim como as suas famílias, estavam de cócoras frente a frente. Estes não gritavam. Apesar do tumulto que ali reinava, conseguiam entender-se, falando em voz baixa. Este murmúrio surdo, vindo de mais baixo, formava como que um contínuo sublinhado das conversas que se cruzavam por cima das suas cabeças. Observei tudo isto muito depressa, e avancei para Maria. Colada às grades, sorria-me com quantas forças tinha. Estava muito bonita, mas não fui capaz de lho dizer. "Então?", disse ela em voz alta. "Então, aqui estou. — Estás bem, tens tudo o que precisas? — Sim, tenho".
Calamo-nos e Maria continuava a sorrir. A mulher gorda berrava com o meu vizinho, o marido possivelmente, um tipo alto e loiro, com um olhar franco. Era o prosseguimento de uma conversa já iniciada.
"A Joana não quis aceitar, gritava ela. "Sim, sim", dizia o homem. "Disse que tu o irias buscar outra vez quando saísses, mas ela não quis aceitar".
Maria gritou por sua vez que o Raimundo me mandava um abraço e eu disse: "Obrigado". Mas a minha voz foi abafada pela do meu vizinho, que perguntou "que tal ia ele". A mulher riu-se, dizendo "que nunca se sentira tão bem. O meu vizinho da esquerda, um rapazinho de mãos muito finas, não dizia nada. Reparei que estava em frente da velhinha e que os dois se olhavam intensamente. Mas não tive tempo de observá-los mais detidamente, pois Maria me estava a dizer que era preciso ter esperança. Disse: "Sim". Ao mesmo tempo olhava-a e sentia vontade de lhe apertar o ombro por cima do vestido. Sentia vontade desse tecido delicado e, fora isso, não sabia muito bem em que é que havia de ter esperança. Mas era isso, sem dúvida, o que Maria queria dizer, pois continuava a sorrir. Via apenas o brilho dos seus dentes e as pequenas rugas junto aos seus olhos. Voltou a gritar: "Vais sair depressa e depois, casamo-nos!”Respondi: "Achas que sim?", mas era sobretudo para dizer alguma coisa. Redargüiu então muito depressa e sempre em voz altíssima que sim,.que eu seria absolvido, que voltaríamos a tomar banhos de mar. Mas outra mulher gritava mesmo ao lado de nós, dizendo que deixara o cesto à porta. Enumerava tudo o que tinha dentro do cesto. Era preciso verificar, pois tudo que lá havia dentro era muito caro. O meu outro vizinho e a mãe continuavam a fitar-se.
O murmúrio dos Árabes também continuava a ouvir-se, abaixo de nós. Lá fora, a luz parecia inchar-se de encontro à janela. Correu por todas as caras, como um sumo novo.
Não me sentia muito bem e gostaria de me ir embora. O barulho incomodáva-me. Mas por outro lado, queria gozar da presença de Maria. Não sei quanto tempo passou. Maria falou-me do seu trabalho, sem parar de sorrir. O murmúrio, os gritos, as conversas entrecruzavam-se. A única ilha de silêncio estava ao meu lado, nas pessoas do rapazinho e da mãe, que olhavam um para o outro. Pouco a pouco, os Árabes foram saindo: Logo que o primeiro saiu, quase todos se calaram. A velhinha aproximou-se das grades e, ao mesmo tempo, um guarda fez sinal ao filho. Este disse: "Adeus, mãe", e ela passou a mão por entre as grades para lhe fazer uma pequena carícia, lenta e prolongada.
A velhinha saiu, e entrou um homem de chapéu na mão, que lhe tomou o lugar: Introduziram um novo prisioneiro e estes começaram a falar animadamente, mas a meia voz, porque a sala estava agora silenciosa. Vieram buscar o meu vizinho da direita e a mulher disse-lhe sem baixar de tom, como se não houvesse notado que já não era preciso gritar: "Trata-te bem e toma cuidado". Depois chegou a minha vez. Maria atirou-me um beijo de longe. Voltei-me antes de sair. Estava imóvel, a cara esmagada contra as grades, com o mesmo sorriso forçado e crispado.
Foi pouco depois que ela me escreveu. E foi a partir desse momento que começaram as coisas de que nunca gostei de falar. De todos os modos, não vale a pena exagerar, e o certo é que me custou menos do que a muitos outros. No início da minha detenção, no entanto, o mais duro, foi virem-me à cabeça pensamentos de homem livre. Por exemplo, sentia de repente desejo de estar numa praia e de correr para o mar. Imaginando o barulho das primeiras ondas sob as plantas dos pés, a entrada do corpo na água, a libertação que era para mim o banho de mar, sentia de repente até que ponto as paredes da prisão me cercavam. Mas isto durou apenas alguns meses. Depois, passei a ter unicamente pensamentos de prisioneiro. Aguardava o passeio quotidiano no pátio ou então a visita do advogado. No resto do tempo, passava menos mal.
Nessa altura pensei muitas vezes que, se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação, além de olhar a flor do céu por cima da minha cabeça, ter-me-ia habituado pouco a pouco. Observaria a passagem das aves ou os encontros entre as nuvens, tal como aqui observava as extraordinárias gravatas do advogado e como, num outro mundo, esperava até sábado para apertar nos meus braços o corpo de Maria. Ora a verdade, afinal de contas, é que eu não estava dentro de um tronco de árvore. Havia pessoas mais infelizes do que eu. Acabamos por nos habituar a tudo, gostava a minha mãe de dizer.
Geralmente eu não ia tão longe, aliás. Os primeiros meses foram difíceis. Mas justamente o esforço que fui obrigado a fazer ajudou-me a passá-los. Atormentava-me, por exemplo, o desejo de uma mulher. Era natural, eu era um rapaz novo. Não pensava especialmente em Maria. Mas pensava tanto numa mulher, nas mulheres, em todas as que tinha conhecido um dia, em todas as circunstâncias em que as amara, — que a cela ficava cheia de todas essas caras femininas e se povoava com todos os meus desejos. Isto desiquilibrava-me, de certo modo. Mas por outro lado, fazia passar o tempo. Acabara por conquistar a simpatia do guarda que, à hora das refeições, acompanhava o moço da cozinha. O primeiro que me falou de mulheres, foi ele. Disse que era a primeira coisa de que os outros se queixavam. Redargúi que era como os outros e que achava injusto este tratamento. "Mas é precisamente para isso," disse ele, que os prendem. — Para isso? — Pois claro, a liberdade é isso mesmo. A vocês, privam-nos da liberdade". Nunca me lembrara de semelhante coisa. Aprovei-o: "É verdade, disse eu, onde estaria então o castigo? — Sim, Vê-se que você compreende as coisas. Os outros não compreendem. Mas acabam por resolver o problema de qualquer maneira". O guarda foi-se embora. No dia seguinte, eu era como os outros. Houve também o caso dos cigarros. Quando entrei para a prisão, tiraram-me o cinto, os cadarços dos sapatos, a gravata e tudo quanto trazia nos bolsos, especialmente os cigarros. Uma vez na minha cela, pedi que mos devolvessem. Mas responderam-me que era proibido. Os primeiros dias foram terríveis. Foi talvez isso o que mais me abateu. Chupava pedacinhos de madeira, que arrancava das tábuas da cama. Uma náusea permanente acompanhava-me durante o dia inteiro. Não percebia por que razão me privavam de coisas inocentes como os cigarros, que não faziam mal a ninguém. Mais tarde, compreendi que também pertenciam ao castigo. Mas nesse momento, habituara-me já a deixar de fumar e deixara de ser um castigo.
Aparte estes aborrecimentos, não me sentia muito infeliz. Todo o problema, repito-o, estava em matar o tempo. Por último, acabei por já não me massar, a partir do instante em que aprendi a recordar. Punha-me às vezes a pensar no meu quarto e, em imaginação, partia de um canto e dava a volta ao quarto, enumerando mentalmente tudo o que encontrava pelo caminho. Ao princípio, isto durava pouco. Mas, cada vez que recomeçava, ia durando mais, pois lembrava-me de cada móvel e, para cada móvel, de cada objeto que lá havia e, para cada objeto, de todos os pormenores e, para os próprios pormenores, de uma incrustação, de uma racha, de um bordo quebrado, da cor que tinham, ou da qualidade de que eram feitos. Tentava ao mesmo tempo não perder o fio a este inventário e fazer uma enumeração completa. De tal forma que, ao fim de algumas semanas, passava horas, só a catalogar tudo o que havia no meu quarto. Assim, quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se massar. De certo modo, isto era uma vantagem.
Havia também o sono. No começo dormia mal de noite e de dia, nunca. Pouco a pouco, as noites melhoraram e consegui também dormir de dia. Posso dizer que, nos últimos meses, dormia dezesseis a dezoito horas por dia. Restavam-me seis horas a matar, com as refeições, as necessidades naturais, as recordações e a história do Tchecoslovaco.
Entre a enxerga e as tábuas da cama, eu encontrara, com efeito, um velho pedaço de jornal, amarelecido e transparente, quase colado ao pano. Relatava um acontecimento cujo início faltava, mas que devia ter sucedido na Tchecoslováquia. Um homem partira de uma aldeia para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, rico, regressara casado e com um filho. A mãe dele, juntamente com a irmã, tinham uma estalagem na aldeia. Para lhes fazer uma surpresa, deixara a mulher e o filho noutra estalagem e fora visitar a mãe, que não o reconheceu. Por brincadeira, tivera a idéia de se instalar num quarto como hóspede. Mostrara o dinheiro que trazia. De noite, a mãe e a irmã tinham-no assassinado à martelada e atirado o corpo para o rio. No dia seguinte de manhã, a mulher do desgraçado viera à estalagem e revelara, sem saber, a identidade do viajante. A mãe enforcara-se. A irmã atirara-se a um poço. Devo ter lido esta história milhares de vezes. Por um lado, era inverosímil. Por outro lado, era natural. De todos os modos, achava que o viajante merecera até certo ponto a sua sorte e que nunca se deve brincar com estas coisas.
E assim, com as horas de sono, as recordações, a leitura do meu jornal e a alternância da luz e da sombra, o tempo foi passando.
Tinha lido que na prisão se perde a noção do tempo. Mas para mim, isto não fazia sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos, que acabavam por se sobrepor uns aos outros e por perder o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam sentido.
Quando, um dia, o guarda me disse que estava preso há cinco meses, acreditei, mas não compreendi. Para mim era sempre o mesmo dia, que caía na minha cela, e era sempre a mesma tarefa, que eu perseguia sem cessar. Nesse dia, depois do guarda ter saído, olhei-me ao espelho na bacia de esmalte. Pareceu-me que a minha cara ficava séria, mesmo quando tentava sorrir. Agitei-a diante de mim. Sorri, mas a imagem conservou o mesmo ar severo e triste. O dia acabava e era a hora de que não quero falar, a hora sem nome, em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão, num cortejo de silêncios. Aproximei-me da clarabóia e, à última luz do fim da tarde, contemplei uma vez mais a minha imagem. Continuava séria, o que não era de admirar, pois nesse instante, também eu estava sério. Mas ao mesmo tempo, e pela primeira vez, ouvi distintamente o som da minha voz.
Reconhecia-a por aquela que ressoava há tantos dias aos meus ouvidos e compreendi que, durante este tempo, falara sozinho em voz alta. Lembrei-me então do que dizia a enfermeira no enterro da mãe. Não, não havia saída possível, e ninguém, ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões.


III

No fundo, um Verão depressa substituiu outro Verão. Sabia que, com a chegada dos primeiros calores, surgiria qualquer coisa de novo.
O meu caso estava inscrito na última sessão do tribunal e esta sessão terminaria em fins de Junho. Os debates iniciaram-se num dia de sol.
O meu advogado assegurara-me que não durariam mais do que dois ou três dias "Aliás, acrescentara, "O caso será despachado rapidamente, porque não é o mais importante da sessão. Logo a seguir, será julgado um parricida".
Vieram-me buscar às sete e meia da manhã, e camionete de segurança levou-me ao tribunal. Os dois polícias mandaram-me entrar para uma salinha sombria. Aguardamos, sentados ao pé de uma porta, por detrás da qual se ouviam vozes, chamamentos, barulhos de cadeiras, numa confusão de ruídos que me recordou essas festas de bairro em que, depois do concerto, se organiza a sala para a dança. os policiais disseram-me que tínhamos que esperar pelos juizes e um deles ofereceu-me um cigarro, que recusei. Perguntou-me, pouco depois, se estava com medo. Respondi que não. E mesmo, sob um certo aspecto, interessava-me observar um julgamento. Nunca tivera ocasião para ver nenhum: "Sim, disse o segundo policial, mas acabamos por nos cansar".
Não muito tempo depois, uma campainha retiniu na sala onde estávamos. Tiraram-me as algemas. Abriram a porta e introduziram-me no pequeno quadrado dos réus. A sala estava cheia a abarrotar. Apesar das persianas, o sol infiltrava-se aqui e ali e o ar estava já muito quente. Tinham deixado os vidros fechados. Sentei-me e os policiais puseram-se um de cada lado da cadeira. Foi nesse momento que, diante de mim, distingui uma fila de caras. Todas me olhavam: percebi que eram os membros do júri. Mas não sou capaz de dizer o que os distinguia uns dos outros. Tive apenas uma impressão: eu estava no banco de um bonde e todos estes passageiros anónimos espiavam o recém-chegado para lhe observar os ridículos. Sei perfeitamente que esta idéia era parva pois aqui não era o ridículo que eles procuravam, era o crime. Porém a diferença entre as duas coisas não se me afigurava muito grande e, de qualquer modo, foi a idéia que me veio à cabeça.
Estava um pouco atordoado, por tanta gente amontoada numa sala. Voltei a olhar para o júri e não consegui distinguir especialmente nenhuma fisionomia. Parece-me bem que, ao princípio, não tinha percebido que toda esta gente estava aqui para me ver. Geralmente, as pessoas não se interessavam pela minha pessoa. Tive que realizar um esforço, para compreender que a causa de toda esta agitação era eu. Disse ao policial: "Quanta gente!" Respondeu-me que era por causa dos jornais e mostrou-me um grupo que estava em volta de uma mesa, por debaixo do banco do júri. Disse: "Ali estão eles". Perguntei: "Quem?" e ele repetiu: "Os jornais".
Conhecia um dos jornalistas, que nesse momento o viu e que se dirigiu em nossa direção. Era um homem já de certa idade, simpático, com uma cara vincada. Apertou calorosamente a mão do policial. Notei nesse instante que toda a gente se interpelava e conversava, como num clube em que se gosta de encontrar pessoas do mesmo meio. Foi assim que interpretei uma impressão bizarra de estar a mais, de ser como que um intruso. No entanto, o jornalista falou-me com um ar sorridente. Disse que esperava que tudo corresse bem, para mim. Agradeci-lhe e ele acrescentou: "Sabe, tivemos que "fazer" um pouco o seu caso. O Verão é uma época morta, para os jornais. As únicas histórias que valiam alguma coisa, eram a sua e a do parricida". Mostrou-me em seguida, no grupo que acabara de deixar, um homenzinho gordo, com uns grandes óculos de aros negros. Disse-me que era o enviado especial de um jornal de Paris: "Não veio, aliás, por sua causa. Mas como está encarregado de fazer uma reportagem sobre o parricida, pediram-lhe para se ocupar também do seu caso". Estive quase para lhe agradecer, mas pensei que seria ridículo. Fez-me com a mão um cordial gesto de despedida e deixou-nos. Esperámos ainda alguns minutos.
Por fim chegou o meu advogado, com o traje da ocasião, rodeado de muitos outros colegas. Dirigiu-se aos jornalistas e apertou várias mãos. Gracejaram, riram e tinham um ar perfeitamente à vontade até que tocou a campainha. Foram todos ocupar os seus lugares. O meu advogado veio ter comigo, apertou-me a mão e aconselhou-me a responder com brevidade às perguntas que me fizessem, a não tomar iniciativas e, quanto ao resto, a ter confiança nele.
Ouvi, à minha esquerda, o barulho de uma cadeira arrastada e vi um homem alto e magro, vestido de encarnado, com monóculo, que se sentava dobrando cuidadosamente a toga. Era o procurador. Um oficial de justiça veio anunciar os juizes. Ao mesmo tempo, dois grandes ventiladores começaram a girar. Os três juizes, dois de preto e o terceiro de vermelho, entraram com as pastas do processo e dirigiram-se muito depressa para a tribuna que dominava a sala. O homem da toga vermelha sentou-se na cadeira do meio, colocou a gorra em frente dele, limpou o crânio sem cabelos com um lenço e declarou que estava aberta a sessão.
Os jornalistas tinham já as canetas na mão. Tinham todos o mesmo ar indiferente e um pouco trocista. Porém um deles, muito mais novo do que os outros, com um traje de flanela cinzenta e uma gravata azul, deixara a caneta em cima da mesa e fitava-me. Na sua cara um pouco assimétrica, eu não via senão os olhos, muito claros, que me examinavam atentamente, sem nada exprimir de definível. E senti a estranha impressão de estar a ser examinado, não pelo que parecia, mas pelo que era realmente. Foi talvez por isso, e também porque não conhecia os hábitos dos tribunais, que não compreendi lá muito bem o que depois se passou, a tiragem à sorte dos jurados, as perguntas feitas pelo presidente ao advogado, ao procurador e ao júri (de cada vez, as caras dos membros do júri voltavam-se ao mesmo tempo para a tribuna dos juizes) uma rápida leitura do ato de acusação, onde reconheci nomes de lugares e de pessoas e novas perguntas, feitas ao meu advogado.
Mas o presidente disse que ia proceder à chamada das testemunhas. O bedel leu nomes que me despertaram a atenção. Do seio deste público informe, vi que surgiam, um a um, para em seguida desaparecerem por uma porta lateral, o velho Tomás Perez, Raimundo, Masson, Salamano e Maria. Esta fez-me um sinal ansioso. Ainda não desaparecera a surpresa de não os ter visto mais cedo, quando a última das testemunhas, o Celeste, se levantou. Reconheci ao lado dele a mulherzinha do restaurante, com o seu casaco e o seu ar exato e decidido. Mas não tive tempo de pensar, pois o presidente tomou a palavra. Disse que os verdadeiros debates iam principiar e que julgava inútil recomendar calma ao público.
Na sua opinião, estava ali para dirigir imparcialmente os debates de um caso que queria considerar com toda a objectividade. A sentença dada pelo júri seria tomada com espírito de justiça e, se fosse preciso, mandaria evacuar a sala ao mínimo incidente.
O calor aumentava e reparei que, na sala, várias pessoas se abanavam com jornais. Isto provocava um barulho contínuo de papel amarrotado. O presidente fez um sinal e o bedel trouxe três leques de palha entrançada que os três juizes começaram imediatamente a utilizar.
O meu interrogatório começou quase imediatamente. O presidente fez-me as perguntas com um ar calmo e mesmo, pareceu-me, com um fio de cordialidade: Obrigaram-me outra vez a dizer a minha identidade e, apesar de isto já me estar a aborrecer, pensei que era no fundo natural, pois seria muito sério julgar um homem por outro. Em seguida o presidente começou a descrever o que eu tinha feito, interpelando-me de três em três frases e perguntando: "Foi assim, não foi?" De cada vez, seguindo as instruções do meu advogado, respondi: "Sim, Senhor Presidente". Isto durou muito tempo, pois o presidente relatava a história com todos os pormenores. Durante este tempo todo, os jornalistas escreviam. Eu sentia sobre mim os olhares do mais novo, assim como da mulher do restaurante. O banco do bonde estava todo ele, voltado para o presidente. Este tossiu, folheou o processo e voltou-se para mim, não deixando de se abanar.
Disse-me que ia agora abordar questões aparentemente estranhas ao meu caso, mas que talvez o tocassem de muito perto. Percebi que me iam outra vez falar da minha mãe e senti até que ponto isso me aborrecia. Perguntou-me por que razão a mandara para o asilo. Respondi que era por que não ganhava o bastante para a ter comigo e para cuidar dela como devia ser. Perguntou-me se, pessoalmente, sofrera com o fato e respondi que nem a minha mãe, nem eu, esperávamos já alguma coisa um do outro, nem aliás de ninguém, e que os dois nos havíamos habituado às nossas novas vidas. O presidente disse então que não queria insistir neste ponto e perguntou ao procurador se tinha alguma pergunta a fazer-me.
Este estava quase de costas para mim e, sem me olhar, declarou que, com a autorização do presidente, gostava de saber se eu voltara à nascente com a intenção de matar o Árabe: "Não", respondi. "Então, porque estava ele armado e porque regressara precisamente, àquele lugar?" Repliquei que fora o acaso que lá me levara. E o procurador concluiu, com uma expressão malévola: "Por agora, é tudo". O que em seguida se passou foi um pouco confuso, pelo menos para mim. Mas depois de alguns conciliábulos, o presidente declarou a audiência suspensa e adiada até logo à tarde, para serem ouvidas as testemunhas.
Não tive tempo para pensar. Levaram-me, mandaram-me entrar para o carro celular e fecharam-me outra vez na minha cela, onde almocei. Ao cabo de muito pouco tempo, apenas o bastante para perceber que me sentia cansado, vieram-me buscar, começou tudo outra vez de princípio, e dei comigo na mesma sala, diante das mesmas caras. Simplesmente o calor era muito maior e, como por milagre, cada um dos jurados, o procurador, o meu advogado e alguns jornalistas, estavam também munidos de leques de palha. O jovem jornalista e a mulherzinha continuavam nos mesmos lugares. Mas não se abanavam e continuavam a fitar-me em silêncio.
Enxuguei o suor que me cobria a cara e só retomei consciência do lugar e de mim mesmo, quando ouvi chamar o Diretor do asilo. Perguntaram-lhe se a minha mãe se queixava de mim e ele disse que sim, mas que todos os pensionistas tinham um pouco a mania de se queixar da família. O presidente disse-lhe para especificar se ela me censurava por eu a ter metido no asilo e o Diretor respondeu que sim. Mas desta vez, não acrescentou nada. A uma outra pergunta, redarguiu que a minha calma no dia do enterro o surpreendera. Perguntaram-lhe o que entendia ele por "calma". O Diretor olhou então para as pontas dos sapatos e disse que eu não quisera ver o corpo da minha mãe, que não chorara uma única vez e que partira logo a seguir ao enterro, sem me recolher sequer uns momentos no cemitério. Espantara-o uma outra coisa: um empregado da Agência Funerária dissera-lhe que eu não sabia a idade da minha mãe. Houve uns instantes de silêncio e o presidente perguntou se era de fato a meu respeito que ele acabara de falar. Como o Diretor não compreendesse a pergunta, disse-lhe: "a lei". Depois o presidente perguntou ao advogado de acusação se não tinha mais nenhuma pergunta a fazer à testemunha e o procurador respondeu: "Ah, não, isto já chega!", com uma tal veemência e um tal olhar de triunfo na minha direção que, pela primeira vez há já muitos anos, tive uma vontade estúpida de chorar, porque senti até que ponto toda esta gente me detestava.
Depois de ter perguntado ao juri e ao meu advogado se queriam fazer algumas perguntas, o presidente chamou o porteiro do asilo. Para este, como para os outros, repetiu-se o mesmo cerimonial.
Ao aparecer, o porteiro olhou-me e depois afastou os olhos, respondendo às perguntas que lhe dirigiram. Disse que eu não tinha querido ver a minha mãe, que tinha fumado, que tinha dormido e que tinha tomado café com leite. Senti então que qualquer coisa se levantava na sala e compreendi pela primeira vez que era culpado. Pediram ao porteiro para repetir a história do café com leite e a do cigarro. O advogado de acusação olhou-me com um brilho irônico no olhar. Nesse momento, o meu advogado perguntou ao porteiro se não tinha fumado também um cigarro comigo. Mas o procurador reagiu violentamente contra esta pergunta: "Quem é aqui o criminoso e que métodos são estes, que consistem em denegrir as testemunhas de acusação para lhes diminuir depoimentos que nem por isso ficam menos esmagadores?!"
Apesar de tudo, o presidente disse ao porteiro para responder à pergunta. O velho replicou, com um ar embaraçado: "Sei que não andei bem, mas não ousei recusar o cigarro que este Senhor me ofereceu". Em última instância, perguntaram-me se queria acrescentar alguma coisa. "Nada", respondi, "a não ser que a testemunha fala verdade. É certo que lhe ofereci um cigarro". O porteiro olhou-me um pouco espantado e com uma espécie de grati dão. Hesitou e em seguida disse que fora ele, que me oferecera café com leite. O meu advogado triunfou ruidosamente e declarou que os jurados saberiam formar a sua opinião. Mas o procurador, gritando mais alto, disse: "Sim. Os Senhores jurados saberão formar a sua opinião. E não deixarão de concluir que um estranho podia oferecer café, mas que um filho devia recusá-lo diante do corpo daquela que o deu à luz". O porteiro regressou ao seu lugar.
Quando chegou a vez de Tomás Perez, um bedel teve que o ajudar a ocupar o lugar das testemunhas. Perez disse que conhecera sobretudo a minha mãe e que a mim, só me vira uma única vez, no dia do enterro. Perguntaram-lhe o que tinha eu feito nesse dia e ele respondeu: "Não sei se compreendem, mas eu estava com um grande desgosto. Por isso, não vi nada. O desgosto impedia-me de ver. Porque para mim, era um grande desgosto. Cheguei mesmo a desmaiar. Por isso, não pude ver este Senhor". O advogado de acusação perguntou-lhe se, ao menos, me vira chorar. Perez respondeu que não. O procurador disse por sua vez: "Os Senhores jurados saberão formar a sua opinião". Mas nesta altura, o meu advogado zangou-se. Perguntou ao velho Perez, num tom que se me afigurou exagerado "se tinha visto que eu não estava a chorar". Perez disse: "Não". O público riu-se. E o meu advogado, arregaçando uma das mangas, disse num tom peremptório: "Eis aqui a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade". O procurador mostrava uma fisionomia fechada e rabiscava com o lápis nos papéis que tinha em frente.
Após cinco minutos de suspensão, durante os quais o meu advogado me disse que tudo corria pelo melhor, foi ouvido o Celeste, que era citado pela defesa: A defesa, era eu.
Celeste deitava, de tempos a tempos, olhares na minha direção e rodava o panamá nas mãos. Trazia o traje novo que punha aos domingos, quando ia comigo às corridas de cavalos. Mas julgo que não conseguira pôr o colarinho, pois apenas um botão de metal lhe conservava a camisa fechada. Perguntaram-lhe se eu era seu cliente e ele respondeu: "Sim, mas era também meu amigo", o que pensava de mim, e ele respondeu que eu era um homem, o que queria dizer com isso, e ele declarou que toda a gente sabia o que isso queria dizer, se notara que eu era taciturno, e ele reconheceu apenas que eu não falava por falar. O advogado de acusação perguntou-lhe se eu pagava regularmente as minhas despesas. Celeste riu-se e declarou: "Isso era entre mim e ele". Perguntaram-lhe ainda o que pensava do meu crime. Pôs então as duas mãos na barra e via-se que preparara qualquer coisa. Disse: "Para mim, foi uma desgraça. Toda a gente sabe o que é uma desgraça. Pois bem, na minha opinião, foi uma desgraça". Ia continuar, mas o presidente disse que estava bem e que muito lhe agradecia. Celeste ficou um pouco atrapalhado. Mas declarou que queria dizer mais coisas. Pediram-lhe para ser breve. Voltou a repetir que era uma desgraça. E o presidente disse-lhe: "Está bem, estamos entendidos. Mas nós estamos aqui justamente para julgar as desgraças deste gênero. Muito obrigado". Como se tivesse chegado ao fim da sua ciência e da sua boa vontade, Celeste voltou-se então para mim. Parecia-me que tinha os olhos brilhantes e os lábios trêmulos. Tinha o ar de perguntar a si mesmo o que poderia ainda fazer. Quanto a mim, não disse nada, não esbocei um único gesto, mas foi a primeira vez na minha vida que tive vontade de beijar um homem. O presidente disse-lhe que se podia ir embora. Celeste foi sentar-se no seu lugar. Durante o resto da audiência ali se deixou ficar, um pouco inclinado para a frente, os cotovelos nos joelhos, o panamá nas mãos, escutando tudo o que se dizia.
Chegou a vez de Maria. Pusera um chapéu e estava muito bonita. Mas gostava mais dela com os cabelos soltos. Do sítio onde estava, eu adivinhava-lhe o peso ligeiro dos seios e reconhecia-lhe o lábio inferior, sempre um pouco inchado. Parecia muito nervosa. Perguntaram-lhe imediatamente há quanto tempo me conhecia. Indicou a época em que trabalhava lá no escritório. O presidente quis saber que relações tinha comigo. Disse que era minha amiga. A uma outra pergunta, respondeu que, de fato, fazia tenção de casar comigo. O procurador, que folheava o processo, perguntou-lhe bruscamente quando começara a nossa ligação. Maria indicou a data. O procurador observou com um ar indiferente que lhe parecia ser apenas um dia depois da morte da minha mãe. Depois disse, com uma certa ironia, que não queria insistir numa situação delicada, que compreendia perfeitamente os escrúpulos de Maria (e aqui o tom da sua voz endureceu), mas que o seu dever o impelia a elevar-se acima das conveniências. Pediu-lhe, por conseguinte, para resumir o dia em que se dera o nosso encontro. Maria não queria falar mas, em face da insistência do procurador, contou o nosso banho, a nossa ida ao cinema e o encontro em minha casa. O advogado de acusação disse que, em consequência das declarações de Maria durante a instrução do processo, consultara os programas dessa data. Acrescentou que a própria testemunha diria que filme tinham ido ver. Com uma voz trêmula, Maria indicou que era um filme de Fernandel. Quando ela acabou, o silêncio na sala era completo. O procurador levantou-se então, muito sério e com uma voz que me pareceu autenticamente emocionada apontou o dedo para mim e articulou lentamente: "Meus Senhores, um dia depois da morte da sua mãe, este homem tomava banhos de mar, iniciava relações com uma amante e ia rir às gargalhadas, num filme cómico. Não tenho nada a acrescentar". Sentou-se, no meio do silêncio geral. De repente Maria começou a soluçar, exclamou que não era isso, que a obrigavam a dizer o contrário do que pensava, que me conhecia muito bem e que eu não tinha feito nada de mal. Mas, a um sinal do presidente, o bedel levou-a e a audiência prosseguiu.
Depois disto, mal ouviram Masson declarar que eu era uma pessoa honesta, "direi mesmo mais, uma excelente pessoa". Mal escutaram Salamano, quando recordou que eu fora muito bom para o cão dele e quando respondeu a uma pergunta a meu respeito, dizendo que eu metera a minha mãe no asilo porque já não tinha nada a dizer-lhe. "É preciso compreendê-lo, dizia Salamano, é preciso compreendê-lo". Mas ninguém parecia compreender-me. Levaram-no.
Chegou depois a vez de Raimundo, que era a última testemunha. Raimundo fez-me um pequeno sinal e disse imediatamente que eu estáva inocente. Mas o presidente lembrou-lhe que não lhe pediam apreciações, pediam-lhe fatos. Convidou-o a esperar as perguntas e depois responder. Pediram-lhe que especificasse as suas relações com a vítima:
Raimundo aproveitou para dizer que era a ele, que o Árabe assassinado odiava, desde que lhe esbofeteara a ir mã. O presidente perguntou então se a vítima não tinha nenhuma razão para me odiar. Raimundo disse que a minha presença na praia fora um mero acaso. O procurador perguntou-lhe então porque é que, se assim era, a carta que estava na origem do drama, fora escrita para mim. Raimundo respondeu que fora também um acaso. O procurador retorquiu que o acaso tinha costas largas, nesta história toda. Quis saber se fora por acaso que eu não interviera quando Raimundo esbofeteara a amante, por acaso que servira de testemunha no comissariado, por acaso ainda que as minhas declarações nessa altura se tinham revelado sem fundamento sério. Para acabar, perguntou a Raimundo o que fazia na vida e, como este respondesse que era "lojista" o advogado de acusação declarou aos jurados que a testemunha exercia uma profissão mais do que duvidosa. Eu era seu cúmplice e amigo. Tratava-se de um drama crapuloso da pior espécie, agravado pelo fato de estarmos em presença de um monstro moral. Raimundo quis defender-se e o meu advogado protestou, mas disseram-lhes que deixassem o procurador acabar o que estava a dizer. Este disse: "Pouco tenho a acrescentar. O acusado era seu amigo?", perguntou a Raimundo. "Sim, respondeu este, era meu amigo". O advogado de acusação fez-me então a mesma pergunta e eu olhei para Raimundo, que não desviou os olhos. Respondi: "Sim". O procurador voltou-se então para o júri e declarou: "O mesmo homem que, um dia depois da mãe ter morrido, se entregava à mais vergonhosa devassidão, matou por razões fúteis e para liquidar um inqualificável caso crapuloso".
Voltou então a sentar-se. Mas o meu advogado, a paciência esgotada, gritou levantando os braços, de tal forma que as mangas, caindo para trás, descobriram as pregas de uma camisa engomada: "Enfim, estão a acusá-lo de ter assassinado um homem ou de lhe ter morrido a mãe?"
O público riu-se. Mas o procurador levantou-se outra vez, ajustou a toga e declarou que era preciso ter a ingenuidade do ilustre defensor para não sentir que entre as duas ordens de fatos, havia uma relação profunda, patética, essencial. "Sim, exclamou ele com força, acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso". Esta declaração parece ter provocado um efeito considerável sobre o juri e sobre o público. O meu advogado encolheu os ombros e limpou o suor que lhe cobria a testa. Mas ele próprio parecia abalado e compreendi nesta altura que as coisas não iam muito bem para mim.
Em seguida, tudo se passou muito depressa. A audiência foi suspensa. À saída do tribunal e ao subir para o carro, reconheci durante breves instantes o cheiro e o calor das tardes de verão. Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que tantas vezes me sentira contente. O pregão dos vendedores de jornais no ar já mais fresco, os últimos pássaros no largo, o grito dos vendedores de sandwiches, o queixume dos bondes nas curvas íngremes da cidade e este rumor do céu antes da noite tombar sobre o porto, tudo isto reconstituía aos meus olhos um cego itinerário que já conhecia muito antes de entrar para a prisão. Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que então me aguardava, era sempre um sono ligeiro e sem sonhos. E no entanto alguma coisa se modificara, pois com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela, que reencontrei enfim. Como se os caminhos familiares traçados nas noites de verão pudessem conduzir, tanto às prisões, como aos sonos inocentes.


IV

Mesmo do lugar dos réus, é sempre interessante ouvir falar de nós mesmos. Durante os arrazoados do procurador e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim e talvez até mais de mim, que do meu crime. Eram aliás assim tão diferentes, estes discursos? O advogado levantava os braços e pleiteava culpado, mas com atenuantes. O procurador estendia as mãos e pleiteava culpado, mas sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações, apetecia-me por vezes intervir e o meu advogado dizia-me então: "Cale-se, para seu bem é melhor que se cale". De algum modo, tinham todo o ar de tratar deste caso à margem da minha pessoa. Tudo se passava sem a minha intervenção. Jogava-se a minha sorte sem que me pedissem a opinião. De tempos a tempos, tinha vontade de interromper toda a gente e de dizer: "Mas quem é afinal o acusado? É importante ser o acusado. E tenho coisas a dizer!" Mas, pensando bem, não tinha nada a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o interesse que se tem em ouvir as pessoas, não dura muito tempo. Por exemplo, o discurso do procurador depressa me fatigou. Apenas me impressionaram ou despertaram a atenção alguns fragmentos, gestos ou tiradas inteiras, mas desligadas do conjunto.
O fundo do seu pensamento, se bem o compreendi, é que o meu crime fora premeditado. Pelo menos, tentou demonstrá-lo. Como ele próprio dizia: "Darei a prova do que afirmo, meus Senhores, e dá-la-ei duplamente. Sob a crua claridade dos fatos em primeiro lugar e em seguida sob a iluminação sombria que me será fornecida pelo perfil psicológico desta alma criminosa". Resumiu os fatos a partir da morte da minha mãe, relembrou a minha insensibilidade, a minha ignorância da idade dela, o meu banho de mar, no dia seguinte, com uma mulher, o cinema, Fernandel e por fim o caso com Maria. Levei tempo a compreender nesse momento, porque dizia "a amante" e para mim, ela chamava-se Maria. Chegou, em seguida, à história de Raimundo. Achei que tinha uma maneira de ver as coisas bastante clara. O que dizia não deixava de ser plausível. Eu escrevera a carta de combinação com Raimundo para atrair a amante deste e a entregar aos maus tratos de um homem "de moralidade duvidosa". Provocara, na praia, os adversários de Raimundo. Este ficara ferido. Eu pedira-lhe o revólver. Voltara atrás para me servir dele, sozinho. Tal como projectara, dera depois cabo do Árabe. Disparara uma vez. Esperara. E, "para ter a certeza de que o trabalho ficara bem feito", disparara mais quatro tiros, calmamente, conscientemente, pela certa. "E aqui está, meus Senhores, disse o advogado de acusação. Acabo de traçar o fio dos acontecimentos que levaram este homem a matar com pleno conhecimento de causa. Insisto neste ponto. Pois não se trata de um crime banal, de um ato impensado que poderia ser atenuado por certas circunstâncias. Este homem, meus Senhores, é um homem inteligente. Ouviram-no falar, não é verdade? Sabe responder. Conhece o valor das palavras. E não se pode dizer que tenha agido sem dar pelo que estava a fazer".
Eu ouvia, e percebia que me consideravam inteligente. Mas não compreendia por que motivo as qualidades de um homem vulgar podiam erguer-se esmagadoramente contra um culpado. Era isto, pelo menos, o que mais me impressionava e deixei de ouvir o procurador até ao momento em que o ouvi dizer: "Podemos dizer, em sua defesa, que este homem exprimiu algum arrependimento? Nunca, meus Senhores. Nem uma só vez no decurso da instrução do processo, pareceu emocionado com o seu crime abominável". Nesse momento voltou-se para mim e apontou-me com o dedo, continuando a fulminar-me, sem que na realidade eu compreendesse muito bem porquê. Não posso deixar de reconhecer, sem dúvida, que ele tinha razão. Não me arrependia muito do que tinha feito. Mas espantava-me uma atitude tão encarniçada. Gostaria de lhe poder explicar cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Estava sempre dominado pelo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã. Mas evidentemente, no estado a que me haviam levado, não podia falar a ninguém neste tom. Não tinha o direito de me mostrar afetuoso, de ter boa vontade. E tentei continuar a escutar, pois o procurador começou a falar da minha alma.
Dizia que se debruçara sobre ela e que nada encontrara, Senhores jurados. Dizia que, em boa verdade, eu não tinha alma e que nada de humano, nem um único dos princípios morais que existem no coração dos homens, me era acessível. "Não poderíamos sem dúvida censurar-lhe uma coisa destas, acrescentou. O que ele não teria possibilidades de adquirir, não podemos queixar-nos de que lhe falte. Mas no que se refere a este caso, a verdade negativa da tolerância deve transformar-se na virtude menos fácil, mas mais elevada, da justiça. Sobretudo quando o vazio de um coração como o que descobrimos neste homem se torna num abismo onde a sociedade pode sucumbir". Foi então que começou a falar outra vez da minha atitude para com a mãe. Repetiu o que já dissera durante os debates. Mas falou muito mais longamente nisto, do que a respeito do crime, tão longamente que, a certa altura, passei a sentir apenas o calor do dia. Até ao instante, pelo menos, em que o advogado de acusação se deteve e, depois de um momento de silêncio, continuou numa voz baixa e compenetrada: "Este mesmo tribunal, meus Senhores, vai julgar amanhã o mais abominável dos crimes: o assassínio de um pai". Na opinião dele, a imaginação recuava diante deste atroz atentado. Ousava esperar que a justiça dos homens saberia castigar sem piedade. Mas não receava afirmar que o horror que esse crime lhe inspirava quase cedia diante da minha insensibilidade. Ainda na opinião dele, um homem que matava moralmente a mãe devia ser afastado da sociedade dos homens, exactamente como aquele que levantava uma mão criminosa contra o autor dos seus dias. Em todos os casos, o primeiro preparava os atos do segundo, anunciava-os de algum modo e legitimava-os. "Estou persuadido, meus Senhores, acrescentou elevando a voz, de que não acharão o meu pensamento excessivamente audacioso, se lhes disser que o homem ali sentado naquele banco é igualmente culpado do crime que o tríbunal vai julgar amanhã. E como tal deverá ser castigado". Aqui, o procurador enxugou a cara brilhante de suor. Disse por fim que o seu dever era doloroso, mas que o cumpriria firmemente. Declarou que eu nada tinha a fazer numa sociedade cujas regras mais essenciais desconhecia e que eu não podia apelar para o coração dos homens, cujas reações elementares ignorava. "Peço-vos a cabeça deste homem, disse, e é sem escrúpulos que vos dirijo este pedido. Pois no decurso da minha longa carreira, tem-me acontecido pedir várias penas de morte, mas nunca como hoje, eu senti este penoso dever tão compensado, equilibrado, iluminado pela consciência de um imperativo sagrado e pelo horror que tenho a esta fisionomia humana onde nada leio que não seja monstruoso". Quando o procurador se sentou, houve uns longos momentos de silêncio. Quanto a mim, sentia-me atordoado pelo calor e pelo espanto. O presidente tossiu um pouco e, em voz não muito alta, perguntou-me se eu queria acrescentar alguma coisa. Levantei-me e, como tinha vontade de falar, 145 disse, aliás um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o Árabe. O presidente respondeu que era uma afirmação, que até aqui não percebia lá muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Redargui rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala. O meu advogado encolheu os ombros e, logo a seguir, deram-lhe a palavra. Mas ele declarou que era tarde, que precisava de muito tempo e que pedia o adiamento até logo à tarde. O tribunal concordou.
À tarde, os grandes ventiladores continuavam a agitar a atmosfera espessa da sala, como os leques multicolores dos jurados continuavam a ser abanados na mesma direção. O discurso do meu advogado parecia não ter fim. Num momento dado, no entanto, ouvi-o dizer: "É certo que matei". Depois prosseguiu no mesmo tom, dizendo "eu", cada vez que falava de mim. Eu estava muito admirado. Debrucei-me para um dos policiais e perguntei-lhe porquê. Mandou-me calar e, instantes depois, acrescentou: "Todos os advogados fazem o mesmo". Mas a mim, parecia-me que isso era afastar-me ainda um pouco mais do caso, reduzir-me a zero e, de um certo ponto de vista, substituir-se à minha pessoa. O certo é que eu, no fim de contas, estava já muito longe deste tribunal. O meu advogado, aliás, pareceu-me ridículo. Depois de ter falado rapidamente da provocação, pôs-se igualmente a falar da minha alma. Mas creio que tinha muito menos talento do que o procurador. "Também eu, afirmou, me debrucei sobre esta alma, mas ao contrário do eminente representante do Ministério Público, encontrei alguma coisa e posso dizer que li como num livro aberto". Lera que eu era um bom homem, um trabalhador metódico, infatigável, fiel à casa que me empregava, amado por todos, comparticipando das misérias dos outros. Para ele, eu era um filho modelo, que sustentara a mãe até mais não poder. Finalmente, esperara que uma casa de recolhimento desse à velha Senhora o conforto que os meus meios não permitiam oferecer-lhe. "Muito me espanto, acrescentou, que tenham feito tanto barulho em volta desse asilo. Porque afinal, se fosse preciso dar uma prova da utilidade e da grandeza destas instituições, teríamos que acentuar que são subvencionadas pelo próprio Estado".
Não falou, porém, no enterro e eu senti que isto era uma lacuna da defesa. Mas por causa de todas estas extensas frases, de todos estes dias e horas intermináveis durante os quais tanto se tinha falado da minha alma, tive a impressão que tudo se transformava como que numa água incolor que me causava vertigens.
Para o fim, lembro-me unicamente de que na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto o meu advogado continuava a falar, eu ouvia a buzina do vendedor de gelados. Assaltaram-me as recordações de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: Odores do verão, do bairro que eu amava, um certo céu ao anoitecer, o riso e os vestidos de Maria. Tudo quanto neste lugar eu fazia de inútil subiu-me então à garganta e só tive uma pressa: acabar depressa com isto e voltar à minha cela, onde ia poder dormir. Mal ouvi o advogado gritar, para concluir, que os jurados não quereriam certamente condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario, e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais severo dos castigos, eu trazia já comigo. O tribunal suspendeu a audiência e o advogado sentou-se, com um ar estafado. Mas os colegas foram nesta altura apertar-lhe a mão. Ouvi:
"Esplêndido, meu caro". Um deles voltou-se mesmo para mim, como a pedir a minha opinião: "Hem?" Assenti, mas não era sincero, porque estava extremamente cansado.
No entanto a hora declinava, lá fora, e o calor não era tão grande. A certos barulhos da rua que chegavam até mim, adivinhava já a doçura do fim de tarde. Estávamos ali, todos, à espera. E o que esperávamos todos juntos, na realidade só me dizia respeito a mim. Voltei a olhar para a sala.
Estava tudo no mesmo estado do primeiro dia.
Cruzei com os olhares do jornalista de cinzento e da mulher-autômato. Isto lembrou-me que, durante todo o processo, não olhara uma única vez para Maria. Não a esquecera, mas estivera muito ocupado. Estava entre Celeste e Raimundo. Fez-me um pequeno sinal, como se dissesse: "Enfim!" e vi surgir um sorriso, na sua cara ansiosa. Mas sentia-me com o coração fechado, e nem sequer fui capaz de lhe corresponder ao sorriso.
Os juízes regressaram. Leram aos jurados, muito depressa, uma série de pontos principais do processo. Ouvi "culpado de crime"... "provocação"... "circunstâncias atenuantes". Os jurados saíram e levaram-me para a salinha onde já tinha estado à espera. O meu advogado veio ter comigo: estava muito eloqüente e falou-me com mais confiança e mais cordialidade do que nunca. Pensava que tudo correria bem e que me sairia com alguns anos de prisão. Perguntei-lhe se havia probabilidades de derrogação, no caso de uma sentença desfavorável. Respondeu que não. A tática que seguira, fora a de não indispor o júri. Explicou-me que não se derroga um processo sem mais nem menos, por nada! Isto me pareceu evidente e inclinei-me diante destas razões. Considerando friamente a coisa, era perfeitamente natural. Caso contrário, haveria uma sobrecarga de papeladas inúteis. "De todos os modos, disse-me o meu advogado, pode-se apelar. Mas estou convencido de que o desfecho será favorável".
Esperamos muito tempo, julgo que bem uns três quartos de hora: Ao fim deste tempo, retiniu a campainha. O meu advogado deixou-me, dizendo: "O presidente do júri vai ler as respostas. Só o mandarão entrar quando a sentença for pronunciada". Ouviram-se portas a bater. Corriam pessoas por escadas abaixo, não sei se longe, se perto de onde eu estava. Depois escutei uma voz surda ler qualquer coisa na sala. Quando a campainha tocou e que a porta se abriu, subiu até mim o silêncio da sala, o silêncio e a singular sensação que experimentei quando olhei para o jovem jornalista e reparei que pela primeira vez afastava os olhos de mim. Não olhei para o lado de Maria. Não tive tempo, aliás, pois o presidente disse-me de um modo estranho que me cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês. Pareceu-me então reconhecer o sentimento que lia em todas as caras. Julgo que era a consideração. Os policiais mostravam-se muito amáveis comigo. O advogado pôs-me a mão num pulso. Já não conseguia pensar. Mas o presidente perguntou se eu queria declarar alguma coisa. Refleti. Disse: "Não". Foi então que me levaram.


V

Recusei-me, pela terceira vez, a receber o capelão. Não tenho nada a dizer-lhe, não tenho vontade de falar, tenho muito tempo para o ver. O que neste momento me interessa, é fugir à engrenagem, saber se o inevitável pode ter uma saída.
Mudaram-me de cela. Desta, quando me estendo na cama, vejo o céu, apenas o céu. Os meus dias inteiros, passo-os a olhar na sua face, o declínio das cores que conduz o dia à noite. Deitado, ponho as mãos debaixo da cabeça e espero. Já não sei quantas vezes perguntei a mim próprio se havia exemplos de condenados à morte que tivessem escapado ao mecanismo implacável, desaparecido antes da execução e fugido ao cordão de policiais. Censurava-me por não ter prestado atenção suficiente às histórias de execuções. Devíamos interessar-nos sempre por estas questões... Nunca se sabe o que pode acontecer. Lera, como todo o mundo, reportagens sobre o assunto. Mas havia com certeza livros especializados, que nunca tivera a curiosidade de consultar. Talvez aí eu pudesse ter achado narrativas de evasões. Poderia ter sabido que, pelo menos num caso, a roda se tinha detido e que, nesta irresistível precipitação, o acaso e a sorte, uma única vez, haviam desempenhado um papel. Uma única vez! Por um lado, creio bem que isto me chegaria. O meu coração faria o resto. Os jornais falam muitas vezes de uma dívida para com a sociedade. Para eles, era preciso pagá-la. Mas isto não diz nada à imaginação. O que contaria, seria uma possibilidade de fuga, um salto para fora do rito implacável, uma louca corrida, com todas as probabilidades da esperança. A esperança, possivelmente, seria ser abatido em plena corrida, por uma bala. Mas, bem vistas as coisas, nada me permitia este luxo, tudo mo proibia, a engrenagem reconquistava-me.
Apesar da minha boa vontade, eu não era capaz de aceitar esta certeza insolente. Por que afinal de contas, existia uma ridícula desproporção entre o julgamento que a fundamentara e o seu imperturbável desenvolvimento, a partir do instante em que a sentença fora pronunciada. O fato de a sentença ter sido lida, não às cinco da tarde, mas às oito horas da noite, o fato de que podia ter sido outra completamente diferente, de que fora resolvida por homens que mudam de roupa de baixo e de que fora dada em nome de uma noção tão imprecisa como o povo francês (ou alemão, ou chinês) tudo isto me parecia tirar seriedade a uma decisão tão grave. Era obrigado a reconhecer, no entanto que, a partir do instante em que fora tomada, os seus efeitos se tornavam tão certos, tão sérios como a presença desta parede ao longo da qual eu me estendia.
Lembrei-me nestes momentos de uma história que a mãe costumava contar-me, a respeito do meu pai. Eu nunca o conhecera. Tudo o que sabia de preciso a respeito deste homem, era talvez o que a minha mãe então me dizia: fora assistir á execução de um assassino. A idéia de ir punha-o doente. Mas não deixara de ir, e à volta vomitara durante quase todo o dia. Isto me desgostava dele. Agora, porém, compreendia-o, a reação era tão natural... Como não percebera eu que não havia nada mais importante do que uma execução capital e que, sob um determinado ponto de vista, era mesmo a única coisa verdadeiramente interessante para um homem?! Se por acaso saísse da prisão, iria assistir a todas as execuções capitais. Fazia mal, julgo eu, em pensar nesta possibilidade. Pois à idéia de me ver livre uma destas manhãs, atrás de um cordão de polícias e do outro lado, à idéia de ser o espectador que veio assistir, uma onda de alegria envenenada me subia ao coração. Mas não era razoável. Andava mal em abandonar-me a estas suposições porque, uns instantes depois, vinha-me um frio tão horrível, que tinha que me encolher debaixo dos cobertores e batia os dentes sem conseguir dominar-me.
Evidentemente, nem sempre nos podemos manter razoáveis. Outras vezes, por exemplo, fazia projetos de lei. Reformava os castigos a aplicar. Observara já que o essencial era dar ao condenado uma oportunidade. Para as coisas correrem melhor, bastava uma sobre mil. Parecia-me, por conseguinte, que se podia obter um composto químico cuja absorção mataria o paciente nove vezes em dez. Este estaria a par de tal possibilidade. Porque, pensando bem, considerando as coisas com calma, verificava que o que havia de defeituoso na guilhotina era não existir nenhuma possibilidade de salvação, absolutamente nenhuma. A morte do paciente, em suma, era decidida de uma vez para sempre. Era um caso arrumado, uma combinação que não mais se podia desfazer, um acordo resolvido e sobre o qual não se podia voltar atrás. Se, por exceção, o maquinismo falhava, recomeçava-se do princípio. Como conseqüência, o aborrecido é que isto levava o condenado a desejar o bom funcionamento da máquina. Digo que é o lado defeituoso da coisa. O que, num determinado sentido, é verdade. Mas por outro lado, via-me obrigado a reconhecer que residia aí todo o segredo da boa organização. Numa palavra, o condenado sentia-se obrigado a colaborar moralmente. Era do seu interesse que tudo marchasse sem empenos. Via-me também obrigado a verificar que até aqui tinha tido sobre todos estes problemas, idéias que não eram certas. Julguei durante muito tempo — não sei por que — que para ir à guilhotina era preciso subir uns degraus. Creio que por causa da Revolução de 1789, quer dizer, por causa de tudo quanto me ensinaram ou me mostraram em semelhante matéria. Mas veio-me à idéia numa destas manhãs, a fotografia de uma execução retumbante, publicada nos jornais da época. Na realidade a máquina estava simplesmente no chão. Era muito mais estreita do que eu julgava. É engraçado como não me lembrei disto há mais tempo. Na fotografia, a máquina impressionara-me como uma obra de precisão, brilhante e acabada. Exageramos sempre as coisas que não conhecemos. Verifiquei,ao contrário, que era tudo muito simples: A máquina estava ao mesmo nível do que o homem que para ela se dirige. Vai ter com ela, precisamente como iria ter com uma pessoa. Sob um dado aspecto, também isto era aborrecido. A imaginação poderia agarrar-se à subida ao cadafalso, à ascensão para o céu. Enquanto aqui, o maquinismo mais uma vez esmagava tudo: Era-se morto discretamente, talvez com um pouco de vergonha, mas com muita precisão.
Havia duas coisas que nunca me saíam da cabeça: a madrugada da execução e o recurso da sentença. Não deixava, no entanto, de discutir comigo mesmo e de tentar pensar noutras coisas. Estendia-me, olhava através da janela, procurava interessar-me pelo que via. O céu tornava-se verde, a noite chegava. Voltava a fazer um esforço para mudar o curso dos meus pensamentos. Punha-me a escutar o coração. Não era capaz de imaginar que este barulho compassado que me acompanhava há tanto tempo podia um dia cessar. Nunca tive verdadeira imaginação. Mas tentava imaginar, não obstante, o segundo em que o batimento do coração já se me não prolongaria na cabeça. Em vão. A madrugada e o recurso não me abandonavam. Acabava por chegar à conclusão que o mais razoável era ainda não me tentar dominar.
Sabia que vinham de madrugada. Ocupei as minhas noites, em suma, a esperar por esta madrugada. Nunca gostei que me surpreendessem. Quando me acontece alguma coisa, prefiro estar presente: Eis porque, no final, acabei por dormir um pouco de dia, enquanto, durante toda a noite, esperava pacientemente que a luz nascesse no negro do céu.
O mais difícil, era a flora duvidosa em que eles geralmente operavam. Depois da meia-noite, esperava e escutava. Nunca a minha orelha sentiu tantos ruídos e distinguiu sons tão tênues. Aliás posso afirmar que, de certo modo, tive sorte durante todo este período, pois nunca cheguei a ouvir passos. A mãe costumava dizer que nunca se é completamente infeliz. Mesmo na prisão continuava a concordar com ela, quando o céu se coloria e que um novo dia entrava na minha cela. Porque, logo que ouvisse passos, o meu coração era capaz de rebentar. Mesmo se o mínimo som me atirasse de encontro à porta, mesmo se, a orelha colada à madeira, eu esperasse desvairadamente até ouvir a minha própria respiração, assustado por achá-la tão rouca, e se, tal a agonia de um cão, ao fim desse período o meu coração rebentasse, tinha ganho ao menos mais vinte e quatro horas.
Durante todo o dia, podia pensar no recurso da sentença. Julgo que tirei o melhor partido possível desta idéia. Calculava os meus efeitos e obtinha assim destas reflexões o melhor dos rendimentos.
Começava sempre pela suposição mais pessimista: O recurso é rejeitado. "Pois bem, morrerei". Mais cedo do que os outros, mas sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que morrer aos trinta, aos setenta anos tanto faz, pois em qualquer dos casos outros homens e outras mulheres viverão, e isto durante milhares de anos. No fim de contas isto era claro como a água. Hoje ou daqui a vinte anos, era à mesma eu que morria. Neste momento, o que me incomodava um pouco no meu raciocínio era esse frêmito terrível que me percorria, ao pensar nesses vinte anos para frente. O que tinha a fazer, era abafar esta sensação, imaginando o que seriam os meus pensamentos daqui a vinte anos, quando chegasse outra vez à hora da morte. Desde o momento que se morre, é evidente que não importa como e quando. Portanto — e o difícil era não perder de vista o que este "portanto" representava no meu raciocínio — portanto, o melhor era aceitar a rejeição do meu recurso.
Neste momento, apenas neste momento, conquistava, por assim dizer o direito, dava a mim mesmo licença de abordar a segunda hipótese: a de anularem a sentença capital. O aborrecido, era que tinha de tornar menos fogoso esse impulso do sangue e do corpo que me picava os olhos e me comunicava uma alegria insensata. Era preciso que me aplicasse a reduzir esse grito, a vencê-lo pela lógica. Era preciso que eu estivesse natural, mesmo nesta hipótese, para tornar mais plausível a minha resignação na primeira hipótese. Quando o conseguia, ganhara uma hora de calma. E isto era importante.
Foi num momento assim que mais uma vez me recusei a receber o padre da prisão. Estava estendido e adivinhava a chegada da noite de verão a certa tonalidade loira do céu. Acabava de rejeitar o recurso e podia sentir as ondas do sangue circularem regularmente no meu corpo. Não tinha necessidade nenhuma de receber o capelão. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei em Maria. Há muitos dias que não me escrevia. Pus-me a pensar, e disse de mim para mim que ela talvez se tivesse cansado de ser a amante de um condenado à morte. Veio-me à cabeça que ela era capaz de estar doente ou de ter morrido, o que pertencia à ordem das coisas. Como o poderia eu saber, aliás, já que, além dos nossos corpos agora separados, nada nos ligava, nada nos lembrava um ao outro. A partir desse momento, a recordação de Maria passaria a ser-me indiferente. Morto, deixava de interessar. Afigurava-se-me normal esta atitude, assim como compreendia muito bem que as pessoas me esquecessem depois da minha morte. Já não tinham nada a fazer comigo. Nem sequer podia dizer que me custava pensar em semelhante possibilidade. Não há, no fundo, nenhuma idéia a que não nos habituemos.
Foi neste instante preciso que o capelão entrou na minha cela. Quando o vi, senti um pequeno estremecimento. Ele deu por isso e disse-me para não ter medo. Redargúi que, habitualmente, o capelão vinha noutra altura.
Respondeu-me que era uma visita amigável, que nada tinha a ver com o meu recurso, a respeito do qual nada sabia: Sentou-se na minha cama e convidou-me a ir para o pé dele. Recusei-me. Achei que tinha, no entanto, um ar muito doce.
Ficou uns momentos sentado, os cotovelos sobre os joelhos, a cabeça baixa, a olhar para as mãos. Estas eram finas e musculosas, lembravam-me dois animais ágeis: Esfregou-as lentamente:uma contra a outra. Depois assim ficou, sempre de cabeça baixa, durante tanto tempo que, por instantes, tive a impressão de tê-lo esquecido.
Mas pouco depois levantou bruscamente a cabeça e olhou-me de frente: "Porque recusa as minhas visitas?" Respondi que não tinha fé. Quis saber se tinha a certeza e eu respondi que não valia a pena fazer-me essa pergunta. Deixou-se cair para trás e encostou-se à parede, as mãos postas em cima das coxas. Quase sem ter o ar de me falar, observou que às vezes nos julgávamos certos de alguma coisa quando, na realidade, não tínhamos certeza nenhuma. Eu não dizia nada. Olhou-me e interrogou-me: "Qual é a sua opinião a este respeito?" Repliquei que era possível. Em todo o caso, eu não estava talvez certo do que realmente me interessava, mas estava certo do que não me interessava. E justamente, este assunto era dos que não me interessavam. Afastou os olhos e, sempre sem mudar de posição, perguntou-me se eu não falava assim por excesso de desespero. Expliquei-lhe que não me sentia desesperado. Tinha apenas medo, como era natural. "Deus o ajudará, afirmou então. Todos os que conheci no seu caso se voltavam para ele". Reconheci que estavam no seu direito. Isso provava também que tinham tempo. Quanto a mim, que ninguém me ajudasse e justamente faltava-me tempo para me interessar pelo que não me interessava.
Neste momento, esboçou com as mãos um gesto de irritação, mas levantou-se e arranjou as pregas da sotaina. Quando acabou, dirigiu-me a palavra. Tratando-me por "meu amigo": se me falava desta forma, não era por eu ser um condenado à morte, em sua opinião, todos nós éramos condenados à morte. Mas eu interrompi-o, dizendo que não era a mesma coisa e que, de qualquer modo, não me consolava com isso. "Decerto, aprovou ele. Mas se não morrer agora, morrerá mais tarde: Voltará a pôr-se o mesmo problema. Como irá abordar a terrível prova?" Respondi que a abordaria exatamente como agora.
Ouvindo isto se levantou e fitou-me nos olhos: Era uma experiência que eu bem conhecia. Realizava-a muitas vezes com Manuel ou com Celeste e, em geral, eram eles quem desviavam os olhos. Percebi logo que o capelão também a conhecia perfeitamente: o olhar não lhe tremia. E a voz também não lhe tremia, quando disse:
"Não tem então nenhuma esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer inteiramente?" "Sim", respondi eu. Baixou então a cabeça e voltou a sentar-se. Disse que me lamentava. Achava que tal atitude era impossível de suportar. Quanto a mim, começava a estar cansado. Desviei-me por minha vez e fui pôr-me debaixo da clarabóia. Estava encostado à parede. Sem o seguir com muita atenção, percebi que recomeçava a interrogar-me. Falava com uma voz inquieta e apressada. Compreendi que estava emocionado e escutei-o melhor.
Dizia-me ter a certeza de que o meu recurso seria aceite, mas que levava aos ombros o peso de um pecado de que devia desembaraçar-me. Na opinião dele, a justiça dos homens não era nada e a justiça de Deus era tudo. Observei que fora a primeira que me condenara. Respondeu-me que ela nem por isso me lavara do meu pecado. Disse-lhe então que não sabia muito bem o que era um pecado. Tinham-me apenas dito que era culpado. Se estiver culpado, ia pagá-lo e nada mais me podiam pedir. Neste momento levantou-se e eu pensei que, nesta cela tão estreita, se quisesse mover-se, não tinha por onde escolher: Só podia era sentar-se.
Eu olhava para o chão. O padre deu um passo para mim e deteve-se, como se não ousasse avançar: Olhava o céu através das grades. "Está enganado, meu filho, disse ele, poderiam pedir-lhe ainda mais. E talvez lho peçam. — Mas o quê? — Poderiam pedir-lhe para ver. — Ver o quê?" O padre olhou em sua volta e respondeu, com uma voz subitamente muito fatigada: "Sei que todas estas pedras suam dor. Mas, no fundo do coração, sei também que os mais miseráveis de vós viram sair da obscuridade uma face divina.
É esta face que lhe pedem para ver".
Animei-me um pouco. Disse-lhe que olhava estas paredes há meses e meses. Não havia nada no mundo que eu conhecesse melhor. Talvez, de fato, há muito tempo, eu houvesse procurado nelas uma face. Mas essa face tinha a cor do céu e a chama do desejo: era a de Maria. Procurara-a em vão. Agora, acabara-se. E, em qualquer caso, nunca vira esse suor surgir da pedra.
O capelão olhou-me com uma espécie de tristeza. Eu estava agora completamente encostado à parede.O dia escorria-me pela testa. Disse algumas palavras que não percebi e pediu-me, muito depressa, se podia abraçar-me: "Não", respondi. Voltou-se de costas e dirigiu-se para a parede, sobre a qual passou lentamente a mão. "Gosta assim tanto desta terra?" Não respondi nada.
Deixou-se ficar voltado muito tempo. A sua presença pesava-me e irritava-me. Ia dizer-lhe para se ir embora, quando, virando-se para mim, exclamou de repente: "Não, não posso acreditá-lo. Tenho a certeza de que já lhe aconteceu desejar outra vida". Respondi-lhe que com certeza, mas isso era o mesmo do que desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais bem feita. Era da mesma ordem. Mas ele deteve-me e quis saber como imaginava eu essa outra vida. Repliquei: "Uma vida onde me pudesse lembrar desta vida". E disse-lhe que já bastava. Queria continuar a falar destas coisas, mas eu avancei para ele e expliquei-lhe pela última vez que já não tinha muito tempo à minha frente. Não queria perdê-lo com discussões. Tentou mudar de assunto, perguntando-me por que motivo eu o tratava por "Senhor", e não por "meu pai". Isto me enervou e respondi que ele não era meu pai: e estava do lado dos outros.
"Não, meu filho, disse ele pondo-me a mão no ombro. Estou ao seu lado, mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si". Então, não sei por que, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um Inferno não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu, parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto. Mas ao menos segurava esta verdade, tanto como esta verdade me segurava a mim. Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera uma coisa e fizera outra. E depois? Era como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto... e dessa madrugada em que seria justificado. Nada, nada tinha importância e eu sabia bem porquê.
Também ele, sabia por quê. Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava na sua passagem tudo o que me propunham nos anos, não mais reais, em que eu vivia. Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem já que um só destino podia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que, diziam como ele, serem meus irmãos? Compreendia, compreendia o que eu queria dizer? Toda a gente era privilegiada. Só havia privilegiados. Também os outros seriam um dia condenados. Também ele seria um dia condenado. Que importava se, acusado de um crime, era executado por não ter chorado no enterro da minha mãe? O cão de Salamano valia tanto como a mulher dele. A mulher autômato era tão culpada como a Parisiense que não se casara, ou como Maria, que queria que eu casasse com ela. Que importava que fosse meu amigo, ao mesmo título que Celeste,— valia mais do que ele? Que importava que oferecesse hoje a sua boca a um novo Meursault? Compreendia, compreendia ele este condenado? E que do fundo do meu futuro... quase engasgava, ao gritar estas coisas. Mas já me arrancavam o padre das mãos, já os guardas me ameaçavam. Foi ele, no entanto, quem os acalmou. Olhou-me uns instantes em silêncio. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Voltou-se e foi-se embora.
Sentia-me agora outra vez calmo. Estava estafado e deixei-me cair sobre a cama. Julgo que dormi, pois acordei com estrelas por sobre a minha cabeça. Subiam até mim ruídos do campo. Cheiros da noite da terra e do sol refrescavam-me as fontes. A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um "noivo", porque é que fingira recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido libertada e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.


FIM





|O ESTRANGEIRO - Primeira Parte |







Página criada e mantida por Jorge Luis Gutiérrez - jorgelrg@uol.com.br

© 1996 - ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS - Todos os direitos reservados ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS - PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS