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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS

MANUEL DA COSTA PINTO
A reiterada intuição de um clássico



Especial para a Folha
FOLHAmais!
São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997.


A polêmica de 1955 entre Barthes e Camus sofre diante do leitor de hoje uma curiosa inversão: a conclusão negativa do semiólogo em relação à moral contida no romance "A Peste" soa um tanto obsoleta, e a análise que Barthes faz da narrativa, para justificar sua condenação, torna-se preciosa do ponto de vista da crítica literária.

Barthes está rigorosamente certo: Camus criou no romance um mundo estático e enclausurado, em que a história é uma soma de acontecimentos sem ordenação intrínseca; a epidemia é uma das formas de expressão de um mal puro e infundado, que reconduz à constatação de nossa condição absurda -e, portanto, a uma ética tão atemporal quanto as injustiças que combate.

Isso certamente contrariava um meio intelectual impregnado pelo marxismo, que exigia escolhas políticas guiadas por finalidades materialistas e distinguia entre a violência do tirano e a violência do revolucionário. Barthes diz isso claramente em sua tréplica, ao afirmar que fora "em nome do materialismo histórico" que julgara a moral de "A Peste" insuficiente, abstrata.

Hoje em dia, somos muito céticos, talvez tão céticos quanto Camus, em relação à possibilidade de compreender a mecânica da história e calcular a violência em nome de sistemas redentores. De todo modo, Barthes -apesar de seu namoro de juventude com o existencialismo- está longe de ser um crítico "engagé", percebendo que as obsessões "filosóficas" de Camus passavam pelo filtro de sua obra ficcional. Sob esse aspecto, a polêmica interessa menos como uma disputa ideológica do que pelo debate literário que enseja. Barthes procura em "A Peste" uma estrutura, um epicentro organizador da narrativa, que permitisse estabelecer uma tensão entre a realidade interna do romance e a realidade histórica, à qual o livro alude nos termos de uma alegoria da resistência ao nazismo. Entretanto ele encontra ali uma ordem meramente aditiva de fatos "sem causas e sem sequências", um mundo "privado de história" -o que diluiria sua força, já que não haveria correspondência entre os nexos causais dos signos literários e dos acontecimentos históricos.

Para Barthes, a tensão entre as realidades romanesca e extraliterária conferia à literatura sua autonomia (para além da língua cotidiana e dos automatismos do estilo) e ao mesmo tempo revelava as fraturas da "consciência burguesa", dilacerando seu mundo unitário por meio da subversão do discurso ordinário pela ficção. Esse raciocínio fora formulado em "O Grau Zero da Escritura", em que ele considerara justamente "O Estrangeiro", de Camus, como um dos livros que, desde Flaubert, vinham revelando essa consciência de um âmbito específico, inverossímil, descontínuo, para a literatura.

Pode-se notar, a partir daí, o quanto havia de decepcionante na estrutura fechada de "A Peste". Ao afirmar que o romance é o "ato de fundação de uma Moral", Barthes está dizendo que Camus traiu a ética da escritura -que consiste exatamente naquela remissão subversiva a um além do texto- em nome de uma composição demasiado orgânica, encerrada em si mesma.

Podemos ignorar, entretanto, as exigências um tanto programáticas de Barthes, conservando de sua brilhante leitura estruturalista aquilo que permite ver a singularidade da obra camusiana. Pois se a monotonia narrativa de "A Peste" recusa qualquer sentido particular ao Mal (a epidemia vem e vai a despeito da vontade dos homens), é porque o romance é uma espécie de representação literária da incapacidade de o homem compreender a realidade, a opacidade de um mundo em que tudo se equivale (tema de "O Mito de Sísifo", ensaio sobre o absurdo publicado por Camus em 1942).

A melhor forma que Camus encontrou para traduzir a perenidade dessa condição foi (como bem notou Barthes) a estrutura circular da crônica, que reconduz a narrativa ao início após uma crise, propiciando a compreensão de uma situação desde sempre existente, mas também podendo "servir a todas as resistências contra todas as tiranias" (nas palavras do próprio Camus).

É esta a diferença sutil entre Barthes e Camus: o crítico conservava sob a exegese estruturalista a utopia modernista e revolucionária da conquista do novo, enquanto Camus não se cansou de repetir uma mesma intuição sobre o homem, "escrevendo o mesmo livro indefinidamente recomeçado" (como ele gostava de definir a prosa de Herman Melville, que serviu de inspiração para "A Peste"). Tornando-se, enfim, um clássico no seio da modernidade.



Manuel da Costa Pinto é jornalista e mestre em teoria literária pela USP com a dissertação "Albert Camus: um Elogio do Ensaio".









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