Resumo:
Este artigo expõe a análise que o filósofo espanhol, Miguel de Unamuno, realiza acerca de Deus em sua obra “Do sentimento trágico da vida” , mais especificamente no capítulo de número X intitulado “De Deus a Deus” , de modo que se elucidem as causas do sentimento que os homens têm de um Ser Supremo.
Introdução
Nesta sua obra, Unamuno trata dos vários assuntos que incidem diretamente em um problema central: o sentimento trágico da vida, que nada mais é que a fome de imortalidade. Mediante uma profunda investigação sobre o que ele chama de narcisismo transcendental, isto é, um apego que cada indivíduo tem a si mesmo, ao seu “eu”, uma espécie de egocentrismo, alcança a idéia da qual tanto insiste, ou seja, o desejo de continuar existindo tal como é e de, portanto, nunca morrer.
Desse modo, o indivíduo busca uma forma de se imortalizar. É um constante conflito do “eu” em permanecer sempre o mesmo, e uma possível saída para se alcançar esta ambição é criar uma extensão deste “eu”, desta “consciência individual” na imagem de Deus. “É a nós mesmos, é nossa eternidade que buscamos em Deus, para que nos divinize. ” [Unamuno, 1996, p. 175] É neste sentido que Unamuno discorre no capítulo X acerca do sentimento religioso presente nos indivíduos, sem se ater a um grupo específico e, assim, encontrar o adequado entendimento do sentimento de divino no homem.
Do Homem a Deus
Unamuno propõe neste capítulo uma investigação sobre o sentimento de Deus nos homens, não sob a ótica do Deus histórico e revelado, que mais tarde se tornou o Deus cristão, mas o processo de assimilação de uma entidade divina, compreendida pelos indivíduos de um modo geral.
Assim sendo, a busca de Deus nasce de um sentimento religioso que os indivíduos, e não o indivíduo, têm para com o Universo. Na verdade este sentimento resulta da grande dependência que o homem primitivo possuía em relação às forças naturais, pois, como afirma Unamuno, o seu espírito “ainda não se desplacentou da natureza” [Unamuno, 1996, p. 152]. As primeiras religiões de que se têm notícia tinham um elo muito forte com a natureza, tanto que as celebrações eram de acordo com os ciclos naturais.
O que esses selvagens, vivendo em sociedade, percebiam é que as potências presentes na natureza os cercavam e, por conta disso, acreditavam que se eles tinham consciência da chuva, por exemplo, por que não a chuva não teria consciência deles? O homem se entende como parte do todo, do universo e, consequentemente, personifica esses fenômenos naturais transpondo neles a sua subjetividade.
Portanto, “o conceito de divindade surgiu do sentimento desta [a personalização do mundo], e o sentimento de divindade nada mais é que o mesmo sentimento obscuro e nascente da personalidade extrovertida.” [Unamuno, 1996, p. 152]
Mesmo os gregos que professavam uma religião politeísta, resultado do culto às várias entidades da natureza, compreendiam que tudo era divino e, por conseguinte, o homem também, o que não deixa de ser uma espécie de panteísmo. Concebiam, então, “semideuses, isto é, semi-homens, é tão- só porque o divino e o humano eram faces de uma mesma realidade. A divinização de tudo era senão sua humanização.” [Unamuno, 1996, p. 153]. Sendo a imortalidade característica própria dos Deuses.
Após esta fase de criação de um sentimento divino, a razão não tarda em questionar a veracidade da existência deste Deus, elaborando provas e argumentos. Muitos desses se tornaram conhecidos, como por exemplo, o de Santo Anselmo, em que define Deus como aquele “o qual não é possível pensar nada maior” [Santo Anselmo, Proslógio , Capítulo I, p 102, 1979] e existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade. Este argumento, chamado de ontológico, é logicamente perfeito, mas sem maiores efeitos, pois não produz o sentimento divino nos indivíduos.
Outra prova famosa é a do desígnio. Nos “Diálogos sobre a religião natural” , David Hume os explicita se utilizando de personagens, que dialogam sobre como a razão natural entende a divindade e seus atributos, sem recorrer à revelação. Este argumento procura, então, provar a existência de Deus “a partir da ordem e do desígnio que o mundo revela. Além disso, (...) é um argumento a posteriori, isto é, (...) cujas premissas são estabelecidas com base na experiência.” [Álvaro Nunes In Hume, 2005, p. XIX].
O argumento do desígnio é explicado pelo célebre exemplo do relógio, o qual faz uma analogia entre os objetos produzidos pelo homem e os objetos naturais; isto é, um sujeito ao ver um relógio imediatamente pensa ser a causa deste um relojoeiro, ou seja, alguém ordenou as partes do relógio, de modo que, funcionem harmoniosamente. Assim acontece com o mundo físico, por haver ordem, organização e completo ajustamento entre as partes, pode-se afirmar que, também, como os objetos produzidos pelos homens, a natureza tem um criador, um autor. E esse é Deus.
Esse argumento é fundamentado em uma simples analogia, o que pode levar a incertezas, considerando que “esses tipos de raciocínios são indutivos e não podem demonstrar que a conclusão é verdadeira, mas apenas mostrar que é provável que seja verdadeira” . [Álvaro Nunes In Hume, 2005, p. XXII].
Após uma longa exposição dessas supostas provas racionais de Deus e da origem do universo, Unamuno atesta que todas “referem-se, (...), a esse Deus-Ideia, a esse Deus lógico, ao deus por remoção; daí que, a rigor, não provam nada, isto é, não provam mais que a existência dessa idéia de deus.” [Unamuno, 1996, p. 155]. E essas idéias não nos auxiliam na busca de compreender a origem, a essência e a finalidade do Universo, nem mesmo a existência de Deus, dado que são apenas ideias e que não são sentidas como algo vivo e real.
Talvez o argumento que mais se aproxime de um Deus provindo do sentimento divino é o que Unamuno chama de “consentimento universal dos homens” . A partir de uma crença geral, de todos os indivíduos em um Deus, ou mesmo, Deuses, conclui-se que há uma divindade. Quer dizer, se todos sentem e acreditam em Deus, é porque Ele deve existir.
Para Unamuno, este anseio universal mostra claramente a projeção da consciência humana na “Consciência do Universo” , e consequentemente em Deus. Como visto anteriormente, o simples fato de depositar a consciência em algo é um ato de insistência em querer viver. Percebe-se que a vida é sagrada, e, por conseguinte, tem uma finalidade de cunho superior.
De fato, Unamuno apresenta muitas causas pelas quais o homem deseja “persistir eternamente” . A mais evidente diz que, como não se tem certeza do que acontece com o indivíduo após a morte, é preferível, então, continuar na atual condição de ser vivente. Conclui-se, portanto, que a morte desta ‘vida-consciência’, ou então, ‘personalidade’ é inadmissível ao homem. Sendo assim, este algo em que o homem confia sua vida, nomeia-o como uma “Consciência Suprema” . Esta “Personalidade/Consciência Suprema” surgiu do sentimento divino no homem, e deve ser capaz de realizar este anseio humano.
Assim, Unamuno investiga brevemente, e com o objetivo de mostrar os efeitos deste sentimento, a apropriação do sentimento divino pela tradição teológica, isto é, transformado em religião e traduzido em dogmas. Nesse sentido cita as palavras de Ritschl, que diz
“a concepção religiosa não pode deixar de aplicar a Deus também o atributo do sentimento espiritual. Mas a antiga teologia atinha-se à impressão de que o sentimento e afeto são notas de uma personalidade limitada e criada, e transformava a concepção da felicidade de Deus, por exemplo, no eterno conhecer-se a si mesmo, e a do ódio, no habitual propósito de castigar o pecado.” [Unamuno, 1996, p. 161]
De fato, Unamuno acredita que a religião tem como fundamentos “o sentimento de divindade e de deus, a fé, a esperança e a caridade (...).” [Unamuno, 1996, p. 207] Pode-se dizer que, a revelação histórica no Evangelho atendeu melhor aos objetivos da criação de Deus pela mente humana, que os raciocínios metafísicos da razão, pois estes mostraram somente “um Deus, que a rigor, nem amava, nem odiava, nem sofria, um Deus sem pena nem glória, inumano, e sua justiça, uma injustiça racional ou matemática, isto é, uma injustiça.” [Unamuno, 1996, p. 161]
Sentimento. Eis a palavra-chave em assuntos de divindade. O que Unamuno quer esclarecer é que não se pensa Deus, mas se deve senti-Lo, primeiramente, com os sentimentos de amor e de sofrimento. E amá-Lo é ansiá-Lo e assim, conhecê-Lo será uma conseqüência, a qual traz um conhecimento que nada tem de racional. E mesmo amando-O é impossível compreendê-Lo em sua totalidade. E o sofrimento advém dos momentos de sufocação espiritual, próprios desta incompreensão, mesmo que se tenha chegado a uma realidade sentida de Deus.
De fato, “esse sentimento - observe-se bem, porque nisso reside todo o seu caráter trágico e o sentimento trágico da vida – é um sentimento de fome de Deus, de carência de Deus. Crer em Deus é, (...), querer que haja Deus, não poder viver sem Ele.” [Unamuno, 1996, p. 163].
Esse sentimento de fome de Deus é algo compartilhado entre todos os indivíduos humanos, portanto Deus mesmo se revela na coletividade, porque é produto de todas as imaginações. Dentro deste viés, conclui-se que o homem é quem criou Deus, porque ele se fez nesta Criatura Divina, e assim “é Deus a mais rica e mais pessoal concepção humana.” Deus está em todos os homens, mas, também dentro de cada um em particular. “Ele está em nós pela fome que Dele temos, pelo anseio, fazendo-se apetecer.”
Desse modo, Unamuno não exclui a individualidade da pessoa em si, ao contrário, o sentimento de divindade se faz através da compreensão de que cada um teve do Universo, e o mais importante, do que cada um teve de si mesmo, isto significa realizar seus anseios mais extremos, como a fome de imortalidade. E na garantia de que a eternidade da consciência pessoal seja atendida por Alguém capaz de realizá-la, os homens crêem nesse Alguém - Deus.
Assim, Unamuno chega a concluir que este sentimento de deus, assim como a crença Nele é uma angústia vital que todo ser humano tem, provinda da fome de divindade e mais ainda, da fome de imortalidade da alma.
Não é, pois, uma necessidade racional (...). Crer em Deus é, antes de tudo e, sobretudo, sentir fome de deus, (...), sentir sua ausência e vazio, querer que deus exista. É querer salvar a finalidade da vida humana do Universo.” [Unamuno, 1996, p. 177]
Conclusão
A fome de imortalidade é o que leva a humanidade a imaginar e a criar uma Consciência Suprema, que abarca todas as individuais consciências, as quais individualmente são uma espécie de narcisismo transcendental . Se esta Consciência for pensada, o que implica em ser analisada pela razão, simplesmente não se susterá como uma certeza nem mesmo com o aparato da fé.
“Portanto, o Deus racional, isto é, o Deus que não é senão razão do Universo, destrói-se a si mesmo em nossa mente enquanto tal e só renasce em nós quando o sentimento no coração como pessoa viva, como Consciência, e já não mais como Razão impessoal e objetiva do Universo.” [Unamuno, 1996, p. 170]
O desenvolvimento do pensamento de Unamuno no capítulo X visa ser mais uma forte argumentação em favor da fome de imortalidade da alma no homem. É notável que a palavra “sentimento” , além de sua força de significado, toma a frente da busca pelo “persistir eternamente” ao longo da obra, a começar pelo título “Do sentimento trágico da vida, nos homens e nos povos.” . De modo que a razão não tem vez, sequer na investigação sobre a existência de Deus, já que “é a revelação sentimental e imaginativa, por amor, por fé, por obra de personalização, dessa Consciência Suprema, que nos leva a crer no Deus vivo.” [Unamuno, 1996, p. 171]
Referências bibliográficas
UNAMUNO, Miguel de. Do Sentimento Trágico da Vida, nos homens e nos povos.. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
CANTUÁRIA, Anselmo de. Proslógio. Tradução de Angelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. Coleção Os Pensadores. 2º edição. Editora Abril, São Paulo. 1979.
HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. Tradução e notas de Álvaro Nunes. 1º edição. Ed. Edições 70. Lisboa, 2005.