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A FOME DE IMORTALIDADE COMO FONTE DE ANGÚSTIA
NA OBRA DE MIGUEL DE UNAMUNO

Kaio Felipe Cabral Cabrera

É aluno do Curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia São Bento (São Paulo).
Estudante de ocultismo, músico e contista.



Introdução

“Pois bem, é hora de ir: eu para morrer, e vós para viver.
Quem de nós irá para o melhor é obscuro a todos, menos a Deus.”

(Platão)

Em meados do século XX o estudo da angústia foi amplamente desenvolvido por diversos pensadores, entre eles cabe-nos citar Arthur Schopenhauer, Nietzsche, Søren Kierkegaard, Martin Heidegger, Albert Camus, Emil Cioran, Jean-Paul Sartre dentre muitos outros.

Antes de fazermos uma breve trilha nos caminhos abertos pelos filósofos, cabe-nos passar pelos campos da etimologia, para que o sentido correntemente utilizado da palavra seja acolhido sem escapes pela inteligência.

Angústia., palavra herdada do latim, tem como significado literal “comprimido”, “sufocado”, “abafado”, “esmagado”. Em um sentido quase físico é uma sensação de agonia, opressão que traz falta de ar, um mal estar que embrulha o estômago, náusea.

No entender psicológico seria um medo sem objeto, um abandono diante das forças do mundo que oprimem o indivíduo; podemos apresentar um humilde exemplo, apenas a critério de conhecimento: o homem maduro, que não encontra nenhuma autoridade acima de si mesmo, cuja natureza forneça as respostas que por ventura possa deferir em vida, sendo assim, deixado aos cuidados de si mesmo, e então, à angústia.

A angústia parece desenvolver-se lentamente junto com a razão, sendo entendida por qualquer ser humano de razão plena_ ainda que de maneira canhestra e pouco distinta para muitos_ é um sentimento básico, podendo também ser visto como constitutivo do homem, nos diferenciando por isto de outras espécies.

Não devemos nos enganar crendo vulgarmente que o tema da angustia é assunto historicamente novo. Podemos vê-lo formulado claramente ou sobre certas camuflagens, mas sempre encontrada nas obras filosóficas. Tal constatação pode-se aferir nos diálogos Platônicos, onde Sócrates, nos últimos momentos de vida, deixa escapar frases duvidosas sobre a estabilidade de seu ser frente à morte certa; também ao longo da crise existencial de Santo Agostinho antes da conversão, que com o passar do tempo era tomado pela angustia profunda, situação causada por perdas consecutivas de entes queridos, e pelo possível sentimento do “nada” vindouro com a morte. E a lista não para_ Hegel era visto pelos colegas de classe como sendo pouco apto à filosofia, e até mesmo sem nenhum dom para a mesma, Espinosa foi amaldiçoado por sua comunidade judaica, e seu único amigo se matou pelo peso da mesma pena que também se forçou nele. Platão abandonou seu futuro nobre para acompanhar um mendigo tido como sofista, e depois que tentou retomar seu destino, intentando adentrar na vida política ativa, em Siracusa, frustrou-se amargamente chegando a ser preso.

No entanto, não se deve perder de vista os diferentes tipos de angústia, isso quer dizer que o conteúdo de pesar dos filósofos pode divergir no que se refere ao conteúdo. O que iremos nos prender para a compreensão de Miguel de Unamuno é a . “angústia de ser” .

Trilhemos então os passos de um célebre filósofo antes de invocarmos a companhia de Miguel de Unamuno. Andemos, ainda que por celeríssimos atalhos, nas linhas de Kierkegaard. .. Kierkegaard e a angústia

“Quero uma verdade que seja verdade para mim, uma verdade pela
qual eu possa viver e morrer por ela”
(Søren Kierkegaard)

Kierkegaard (1813-1855) é de longe o inaugurador da angústia como tópico merecedor de atenção no universo da filosofia; foi o responsável por adentrar no tema de maneira conceitual e profunda, e suas explanações servem ainda hoje como um luminar para aqueles que se aventuram na escuridão do estudo existencial.

A preocupação do filosofo dinamarquês sempre fora de natureza teológica, temia pela aparência que tomara o cristianismo de sua época, motivo pelo qual o filósofo denunciou a razão absoluta e a lógica que anulou toda a intimidade da experiência real do Cristo, essencialmente paradoxal: todo Deus e todo homem, totalmente infinito e totalmente finito, ressuscitado dos mortos. Claramente uma impossibilidade lógica_ uma impossibilidade racional.

Kierkegaard tem aversão ao seu tempo, dizendo que a razão debruçou-se sobre tudo, mas se esqueceu do essencial_ a própria existência. Para sarar esta terrível doença Kierkegaard fulmina com seu estilo inconfundível o aparato puramente racional, deseja advertir da ilusão do “ logos” e apresentar um “ patos.” em prol da vida. O sentimento, portanto, serviria como único direcionador da existência real do homem.

Em sua obra “ o desespero humano” intenta mostrar como a razão se depara, não raras vezes, com paradoxos insolúveis. Necessitando então para aqueles que desejam solucionar estes paradoxos um “salto”, uma escolha às escuras, uma deliberação norteada pelo sentimento e envolvimento afetivo que nos fornece a única abertura para a existência real, sem nos deixarmos anular pelo ideal.

O pai do existencialismo aponta no núcleo desta debilitação racional humana, sua condição desesperadora e angustiante, ai reside o violento dilema da vida: se me lanço no real, assumindo que a vida é finita por resultado de observações dadas pela razão, meu coração gritará um NÃO, por querer o infinito. Por outro lado, se meu coração vive por lançar a vida no oceano infinito do divino, é a razão agora grita NÃO, mostrando-nos a certeza racional do fim certeiro. Eis a formula para uma desesperadora angústia, um querer fazer-se a si mesmo em um mundo, onde não se adquirir certezas, somente “saltos”.

“Vossa alma é muitas vezes um campo de batalha onde se
digladiam vossa razão e julgamento com vossa paixão e vosso apetite.”
(Gibran Kalil Gibran)

A angústia se estende ainda mais estando intrinsecamente conectada com a liberdade. Ao nos aliarmos ao filósofo em sua concepção de existência, percebemos que esta é formada ao longo das muitas escolhas feitas pelos homens, isso quer dizer que não há uma essência que nos antecede, nossa existência é livre para criar a própria essência segundo nossas escolhas. Ainda que nos pareça a liberdade condição de toda positiva, como por exemplo na filosofia Hegeliana, tão querida aos contemporâneos de Kierkegaard, o dinamarquês percebe que é exatamente nesta liberdade que se encontra a raiz de nossa angústia_ diante de tantas possibilidades, por qual escolher? Quando escolho o que estou deixo para trás? O que poderia ter sido de mim se não escolhesse por isto ou aquilo?¬ ¬¬- são nestas questões que repousa nosso estrangulamento emocional. Estando todo homem encarcerado nas conseqüências de suas próprias escolhas, a angústia surge como condição psicológica indispensável na constituição da subjetividade dos homens. Não é propriamente um “conceito de angústia” que se encontra na filosofia de Kierkegaard, mas sim uma constatação extraída do psicológico, o sentimento aterrorizador do devir incerto apresentado a todo o momento, assim como qualquer conceito da liberdade é um reducionismo de sua realidade verdadeira, assim a angústia procede da mesma maneira, não permitindo um conceito que a exponha totalmente.

“A angústia é a vertigem da liberdade”
(Søren Kierkegaard)

Tendo adquirido esta lanterna nos pensamentos de Kierkegaard, busquemos na noite escura da angustia, a trilha que nos levará no âmago da dor existencial de Miguel de Unamuno. Para alcançá-la analisemos o terceiro capítulo de seu livro “do sentimento trágico da vida” onde colheremos dados para entendermos se o filósofo considera ou não um conceito de angústia ao longo de seu trabalho intelectual.


A Fome de imortalidade

“Quem não sente a ânsia de ser mais, não chegará a ser nada”
(Miguel de Unamuno)

Miguel de Unamuno apresenta-nos uma filosofia do desejo, mas não qualquer desejo, um desejo superior onde qualquer outro se apóia para ser, o desejo de vida. Um desejo tão frenético nos homens que edificam nessa louca necessidade todas as bases das religiões – Ao circundar a questão da genealogia da religião aponta no antiguíssimo culto aos mortos não um culto ao pútrido, ao acabado e finito, mas ao contrário, um culto à imortalidade, ao manter-se sendo sempre – é nesta tremenda vontade de vida onde se desmembram uma a uma todas as religiões do mundo.

Unamuno provoca o leitor de sua obra, lançando-o um desafio: demorar-se na criação de uma realidade onde não se é mais. Finalizando na afirmação da inexorável persistência da existência, da vida vivida.

Tal idéia, a de deixar de ser, é causadora de um mal estar tão desconcertante, que não espanta a furtarmo-nos dela. Mas Unamuno insiste aconselhando que no recôndito do mal estar do sentimento de não ser que dormita a questão crucial de todo ser humano, o querer mais furioso: O querer ser eterno, querer tornar-se Deus.

A promessa de outra vida, mesmo que com o banquete celeste, das mais variadas delícias, não saciam a fome de eternidade – o que se quer é ser sempre o mesmo, nunca outro coisa que não a si mesmo, tal promessa de outra vida, mesmo que dado em júbilo sem fim, nada significa se não sou mais eu! – Unamuno assim se distingue da visão ortodoxa do cristianismo sobre a vida após a morte, e sua ousadia filosófica não se limita aqui:

“Não quero morrer, não; não quero, nem quero querê-lo; quero viver
sempre, sempre, sempre, e viver eu, este pobre eu que sou e me sinto ser agora e aqui.
Por isso, tortura-me o problema da duração de minha alma, da minha própria alma...”
(Miguel de Unamuno)

Ao dizer querer ser agora e aqui, não chama para si o outro mundo como um cristão o deseja, quer este mundo com todas as imperfeições que nele possa existir, não desiste de qualquer detalhe aparentemente negativo deste e, amplia a tentação pela vida, carregando consigo também o mundo, tão querido para as grandes almas.

Já nesse ponto torna-se canibal a fome de Unamuno_ quer também seu corpo! A totalidade do seu eu, é o ponto requerido aqui. Unamuno reclama para Deus (o único que talvez o conceda tal desejo), assim como quer o mundo, diz querer seu corpo apesar de toda a desventura que possa conceber.

“é melhor ser em dor do que deixar de ser em paz”
(Miguel de Unamuno)

Fica então proposta a primeira parte do dilema dialeticamente inconciliável. Este querer estender para o infinito a totalidade do eu; O eu total que envolve a mente, corpo e mundo. O filósofo vasculha toda a história da filosofia e constata que, de uma maneira ou outra, os filósofos todos compartilharam desta mesma fome de eternidade. Parece nos esclarecer como todos os pensamentos que sondaram o mundo, a alma e Deus só tinham por propósito resolver este imenso desconforto, a fome que o ser concreto tem de sempre continuar. Todos, racionalistas, positivistas, realistas, e qualquer outro, por mais vestido que esteja sob as vestes da “neutralidade” científica, todos são vitimas desta doença na alma, e se forçarmos um pouco nossa análise, encontraremos em todos os pensadores o que Unamuno enfrente afoito e cheio de fé.

“procura compreender,
raciocina,

se estiveres calmo
e no pleno uso da razão:

Que roupas vestias
quando chegaste a este mundo?
E que riquezas levarás
para o outro?

Dizes
que não bebes vinho,
pela certeza que tens de morrer.

Homem,
não sejas inconseqüente:
bebas ou não bebas vinho,
a morte não evitarás.”


(Omar khayyám)

Igualmente, seria ignorância crer na imortalidade aos moldes de Unamuno, uma vontade virtual contraposta visceralmente com a realidade concreta só poderia resultar em um paradoxo existencial de impossíveis alternativas, uma vez que a morte escolhe livre, a dedo, a hora daqueles que terminam. Nenhum homem jamais tapeou a morte, e mesmo se algum arquimago, com seus supostos dotes arcanos o fizesse, poder-se-ia perguntar se a vida não é apenas o acúmulo de dores intermináveis, um padecimento continuado da estabilidade do ser.

Eis aqui a segunda parte do esperado dilema: por mais que se queira a vida infinita, não se pode contrariar inocentemente a verdade da morte, o fim certo nos aguarda no fim da existência, e o divórcio de todas as coisas do mundo é afirmação sem manchas. Não há esperanças frente a isso, e por isso desespera o filósofo. Como preservar-me no mundo se a morte me visitará um dia? Como posso ter vontade de viver sempre se a morte sempre destrói a vida sem misericórdia? Unamuno descontente com sua condição reclama à Deus sua condição existencial (?), quer apenas uma garantia de sua preservação, caso impossível a misericórdia divina preservá-lo por inteiro. Pede qualquer coisa que o mantenha conectado ainda com este universo, se forem para o nada o corpo e o mundo, que Deus lhe dê ao menos sua memória.

Ainda que Unamuno pareça tremer ao longo de sua obra, reagindo muitas vezes até de maneira pouco madura ante Deus. Não faz como a maioria dos filósofos, apontando a doença sem ter medicamentos de cura. Menciona então uma alternativa que parece resolver rasteiramente a angustia de infinidade: o amor

O amor é causado pelo sentimento da vaidade do mundo passageiro. Sendo no amor a única forma de triunfo sobre a vaidade do mundo. O amor é o Davi do gigante destino, diz ser o amor eternizador do homem, libertador de suas cadeias.


Conclusão

Ao longo da obra de Unamuno vemos sem falta de apoio um grande impasse que acarreta toda a angústia da obra. Ainda que exista na saída proposto pelo filósofo certo grau de otimismo não recebe desta a segurança da satisfação de seu desejo_ a imortalidade.

É um entrave seu sentimento trágico, é um angustia pela qual não se pode realmente escapar, nada de concreto faria com que a morte poupe nossas vidas, nada garante, com firmeza e sem margem de dúvida que Deus nos salvará do nada, ou que não nos apague este mundo por inteiro, em nossas almas já desprezas do corpo. O sentimento trágico é uma condição paradoxal que afasta a paz e a harmonia interior, deixando desnudada nossa condição de fragilidade existencial.

Certa lamentação poética encontra-se em diversas passagens importantes, onde repete o filósofo repetidamente ”quero”, “eu”, “sempre” , e tantas outras repetições que revelam um misto entre angústia,desespero, infantilidade e egocentrismo, tudo sem cair na melancolia e pessimismo mórbido encontrados em autores que pensaram em uma tradição existencial.

Não se pode crer que Miguel de Unamuno tenha salvado sua linha de pensamento até o final de seus dias, levando em consideração dados relevantes de sua biografia, temos já meia idade um filosofo atingido por tragédias inúmeras em sua jornada pelo mundo, perdas íntimas que dificilmente não o tenham feito retomar suas idéias principais, salvo apenas por uma teimosia forçada_ possível marca de caráter do filósofo. Como Unamuno se manteve tão radicado na vida, quando a vida lhe tirou a autoridade no âmbito acadêmico, sua esposa e seus filhos, a própria vitalidade? Quem nos assegurará que depois de um longo dia de guerra contra Deus (prática religiosa de Unamuno?), não tenha o filósofo pensado que fora precipitado em suas considerações sobre a fome de imortalidade, querendo por fim, abandonar esta vida?

Parafraseando Schopenhauer, é na vontade de vida, neste desejo primeiro matriz de tantos outros, que repousa toda dor existencial, o desejo mais atroz de Unamuno. É essa, e não outra, a razão da angústia, o nascimento do sentimento trágico da vida é somente a vontade de vida. Ainda sem a presença amistosa da certeza, pode-se afirmar que vão é querer tanto, sem nenhuma moderação. O que resultou do amor de Unamuno se não pó? Ainda que cheio de vigor, enfrentando as dificuldades da vida, será mesmo coerente enfrentar Deus, a própria morte? Louvável ainda que impossível.


“Tudo passará! Tudo passará!”
(Malba Tahan)




Referências bibliográficas

UNAMUNO, Miguel de. São Manuel Bueno,márti r . Ed. L&PM . 1999.

UNAMUNO,Miguel de. Do sentimento trágico da vida. Ed. LM&M.

UNAMUNO, Miguel de. Névoa. Ed.Nova fronteira. 1989.

GIBRAN, Kalil Gibran. O profeta. Ed. LM&M. 2002.

TAHAN, Malba. Novos contos e lendas orientais. Ed.Record. 2002.

KHAYYÁM, OMAR. Rubáiyát. Ed.Martin Claret.2003.

KIERKEGAARD. Soren. O conceito de angústia. Ed.Hemus. 2007

KIERKEGAARD. Soren. O desespero humano. Ed. Abril Cultural. Coleção os pensadores. Primeira edição. 1973.








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