Havia tempo já que Ricardo começava a sentir-se enfastiado daqueles amores. As longas demoras junto da grade pesavam-lhe com o peso do dever cumprido, mas constrangido. Não, não estava apaixonado deveras por Ludovina - e talvez nunca o houvesse estado. Não passava, decerto, de ilusão fugaz, uma vertigem de rapaz que, ao enamorar-se da mulher, pela primeira vez, se deixa prender pela primeira que se lhe depara no caminho. E, depois desses amores, contrariavam-lhe o destino, claramente expresso em sinais do céu. As palavras que o Evangelho lhe ditara aquela manhã em que, depois de comungar, o abrira ao acaso, ou melhor à inspiração divina, eram bastantes claras - e não podiam errar: «Ide e pregai a boa-nova por todas as nações.» Tinha que ser pregador do Evangelho e, para tal, devia ordenar-se ou entrar ainda para um convento.
Nascera para apóstolo da palavra do Senhor e não para pai de família; menos, para marido; e de modo algum, para noivo.
A grade da casa de Ludovina dava para uma viela, flanqueada pelas muralhas de um convento de Ursulinas.
Por sobre os muros espreitavam as franças de um cipreste alto e robusto, onde a pardalada vinha fazer coro. À tardinha a verde negrura da árvore sobressaia do incêndio do poente, e era, então, que os sinos da Colegiada despejavam sobre a paz do crepúsculo as ondas lentas das suas jaculatórias do Infinito. E aquele apelo dos séculos obrigava; Ricardo e Ludovina a porem uma pausa na sua conversa; ela benzia-se, recolhida - os seus lábios frescos e vermelhos moviam-se como uma prece, ao passo que ele conservava os olhos no chão. Olhava a terra, a meditar na paixão que pregava ao seu destino; a língua de bronze dizia-lhe: «vai e prega a minha boa-nova a todos os povos».
Quedava a conversa lânguida e como que forçada. A grade de ferro que separava os dois namorados, era uma verdadeira grade de prisão, pois, mais que do amor e do sentimento, achavam-se prisioneiros da constância e do pundonor. Os olhos de Ricardo não mais bebiam sonhos, como outrora, nas pupilas de ébano de Ludovina.
- Se tens que fazer, não te prendas por minha causa! - dissera-lhe ela uma vez.
- Que fazer? Não tenho mais nada que fazer, senão olhar para ti - respondeu-lhe ele.
E calavam-se por um instante, sentindo o vazio das suas palavras.
O tema da conversa era quase sempre a murmuração; sobretudo a respeito dos outros casais de noivos da cidade. E, por mais de uma vez, Ludovina se lastimara da vida em sua casa, entre aquela pobre mãe, meio - paralítica e sempre silenciosa, e aquela irmã roída de inveja - e sem homem algum em casa. Do pai não conservava recordação alguma, e bem pouca de um irmãozito, com que brincava como se fora um boneco, e que se lhe esvaíra entre as mãos e os beijos, tal qual um sonho de madrugada.
Retirava-se da grade Ricardo, todas as noites reflectindo, e cada vez de tal mais convencido, que aquele amor morrera ainda mal brotara; mas voltava como que atraído por um poderoso íman. Atraí-o a calma melancolia que se desprendia do ambiente da viela. O negro cipreste, os muros altos recatados do convento, os incêndios do ocaso, o concerto dos pardais - tudo parecia feito para se combinar com os olhos negros de Ludovina e as negras ondas da sua cabeleira. Quantas vezes não contemplou Ricardo o arrebol da tarde reflectido nos cabelos da namorada! E ela, então, dir-se-ia que ganhava algo daqueles tons rúbidos, algo também da plangência dos sinos, que parecia, ao mesmo tempo que a sonorizava, espiritualizá-la - e chegava a pensar o pobre escravo do namoro se não seria, talvez, a própria Ludovina a boa-nova que ele se sentia chamado a pregar. Cedo, porém enxergava nos anéis do cabelo, onde morriam os derradeiros raios de sol, ondas de um rio negro, que arrastaria a quem a ele se entregasse, a um mar de naufrágio.
Havia que terminar com aquilo, sem dúvida; mas, como? romper com aquele hábito? como romper com tal hábito? como poderia parecer inconstante e ingrato? Adivinhava, ou antes, sabia que ela estava tão desenganada daquele amor e tão saturada dele, como ele dela; já o haviam dito, até, um ao outro em silêncio, com os olhos, durante um intervalo da conversa, e sobretudo, quando se fitavam, depois da breve pausa das Ave-marias. Passavam as tardes a velar um sentimento morto, prisioneiros da honra e das aparências. Não; eles não podiam ser como os outros, a quem tanta vez haviam censurado. Mas, para não serem como os outros, não eram eles próprios. Como provocar uma explicação, confessarem-se mutuamente, apertarem as mãos um do outro como amigos e separarem-se, com desgosto, é certo, mas também com o prazer da libertação?
A ele aguardava-o o claustro; a ela, talvez a alma do homem predestinado a ser o amparo da sua vida.
Matutando naquele caso, achou Ricardo uma solução, ao mesmo tempo engenhosa e sentimental. O namoro prolongava-se; havia já cinco anos que o vinha a arrastar, e se bem que tanto ele, como ela, possuíssem mais que o suficiente para viver sem trabalhar, nem a mãe dela, nem o pai dele queriam aceder a dar-lhes o consentimento para se casarem, sem ele ter concluído o curso, que por pouco amor ao estudo, se ia prolongando. Simularia, pois, impaciência e, ao mesmo tempo, um reflorir do primeiro amor, e propor-lhe-ia uma fuga. Ela, certamente, não aceitaria, havia de recusar indignada, e então ele teria um pretexto para lhe atirar à cara que ela não lhe queria verdadeiramente, com uma paixão entranhada; e sem preconceitos, nem pusilanimidade, poderia desquitar-se.
E se ela aceitasse? não, não era crível que Ludovina aceitasse a fuga, mas a aceitá-la... então... melhor ainda. Esse acto de desespero, esse desafio lançado à hipócrita consciência de todos os escravos do dever, faria ressuscitar o amor, se é que alguma vez o haviam sentido; fá-lo-ia desabrochar se, porventura, nunca dentro deles se albergara. Sim, talvez fosse preferível que aceitasse; mas não, não podia ser, ela não o aceitaria.
Veladamente, com alusões remotas e reticências, Ricardo havia já insinuado a Ludovina a história da fuga. Ela pareceu não ter percebido, ou, pelo menos, fez-se desentendida. Que pensaria ela a este respeito? Aproveitaria esse pretexto para poder enamorar-se, de novo, e de verdade?
II
O ambiente no casarão de Ludovina era o de tédio de uma tristeza negra. Nela havia como que recantos húmidos (sempre sombrios) - e dessa humidade dir-se-ia desprender-se um halo de pesadelo, como que para encher toda a casa. Quando no velho relógio de pesos batiam languidamente as horas, parecia que a casa, toda ela, se queixava sob o peso de uma recordação de vácuo. A mãe de Ludovina arrastava, duas vezes por dia, o pobre corpo trôpego para um cadeirão desconjuntado e, de vez em quando, através da sombra dos corredores cruzava-se o sobrecenho contraído da outra filha. As duas irmãs eram de poucas falas. A própria Ludovina pouco falava com a mãe, embora a acariciasse muita vez, com carícias que eram um hábito velho. Aquela triste mãe era como que um bicho ferido vivendo entre a névoa leitosa de um sonho de doenças.
Não se lembrava, a pobre Ludovina, de haver vivido senão o sonho fugidio daquele bonequinho vivo, de risonhos olhos azuis por entre uma coroa de cabelos ruivos. Nesse tempo, foi ela Ina, como o irmãzinho lhe chamava e depois, Ludovina e, enfim, Lidu, mais por economia de tempo e esforço - e eram ambos tão novos ainda! - que por meiguice. A sua adolescência esfumava-se numa procissão medonha de dias iguaizinhos - e cinzentos, todos eles.
Outra luz não surgira, a não ser a do namoro com Ricardo - e era uma luz crepuscular e moribunda, mal tinha brilhado a seus olhos. Ao princípio acreditou, quando Ricardo se lhe declarou, e quando ela o aceitou como namorado - que aquele carinho tíbio era fogo inicial, que aquela sombra de afecto era luz matutina; mas depressa constatou que outra coisa não havia a não ser o rescaldo de um fogo que se apaga, um crepúsculo da tardinha, núncio da noite.
Sim; bem sabia que os amores fortes e douradores haviam de nascer a pouco e pouco, tal qual o amanhecer no campo; porém, a vida daquele amor foi, logo à nascença, uma agonia. Comparava-o com o amor ao irmãozito de olhos azuis e cabelo ruivo.
Como o tinha ela aceitado? Oh! ela vivia tão triste, tão só! Começou a encontrar Ricardo na missa, da manhã, do Convento das Ursulinas. Todas as manhãs, ao descer à rua, os seus olhos se encontravam. Por vezes, era ele que lhe oferecia água benta e, certo dia, foi entregar-lhe o rosário, que ficara esquecido no genuflexório. E, por último, uma manhã, à saída da missa, e depois de lhe haver oferecido a água benta para se persignar, ele entregou-lhe uma carta. A mão tremia-lhe, ao entregá-la, e as faces tinham-se-lhe feito escarlates.
No dia seguinte, Ludovina não foi à missa habitual; tinha que pensar na resposta à carta. Um noivo! Havia-lhe saído um noivo na sorte, conforme diziam as suas companheiras. E que noivo! Estava contente com ele? Decerto, era devoto; talvez até demais para noivo, não era mal parecido, de boa família, de irrepreensível conduta. Além de mais, tinha com que se distrair, e uma maneira de travar os dias intermináveis. Deste modo, não veria tanta vez as sobrancelhas contraídas da irmã; não teria de suportar, assim, o silêncio do pobre bicho ferido da mãe. E o amor? Ah! O amor, esse, havia de vir, chega sempre que se quer, quando se ama o amor - e se necessita dele. Passaram-se dias, semanas meses até - e não havia maneira de sentir o latejar do amor sobre o peito. Como continuava então, com o namorado? Pela esperança, e esperando com um desespero resignado e doce que um dia, por milagre e piedade do Deus dos tristes, brotasse entre eles dentro de si, sem o suspeitarem?
«Amamo-nos? Não nos amamos? Que é amor? eram as lucubrações de Ludovina, ao lado do silêncio da mãe e das sobrancelhas contraídas da irmã. E continuava a aguardar.
Cedo percebeu e sentiu que Ricardo estava já cansado dela, que era o hábito, que eram os muros do convento, o cipreste, os pardais, o pôr do sol - e não ela, em si, o que o arrastava até ela. Mas, da mesma forma que o namorado, sentiu dentro de si, mais forte que o desengano, o amor próprio e o orgulho da constância. Não seria ela a primeira a romper, ainda que houvesse de morrer de pena; ele que rompesse, se o entendesse. A fidelidade, ou melhor, a lealdade, era a sua religião. Não seria ela a primeira mulher a sacrificar-se pelo sentimento de constância. Não se casara a sua amiga Rosária com o primeiro que aceitara como namorado, só para não se confundir com as que mudam de noivo, como quem muda de chapéu? Os inconstantes, os infiéis, são os homens; os homens é que não têm o brio da palavra de amor, até quando este morre. Ludovina, no fundo do seu coração, desprezava o homem, esperando por ele, esperando o homem, doçura celestial de seus sonhos, o forte varão cuja força é toda doçura, aquele que a arrastasse como arrasta a água poderosa do mar, cingindo-a inteiramente.
Entendeu perfeitamente Ricardo, quando, cheio de hesitações e rodeios, ele lhe insinuou a possibilidade da fuga; contudo, se bem que o houvesse percebido, fez-se desentendida. Mais do que isso, percebeu a sua encoberta intenção. Leu no espírito do namorado.
E pensou: «Que tenha coragem, que seja um homem, que me proponha sem rodeios a fuga - e eu aceitarei; aceitá-la-ei e ele será apanhado no laço com que pretende astuciosamente enlear-me, e, nessa altura, veremos quem é neste caso o valente. Há-de espernear assim que se veja preso pela corrente com que julga poder amarrar-me para me fugir - e há-de inventar milhentas desculpas. E serei eu, então, eu, a pobre rapariga, a nena do casarão, eu, a infeliz Ludovina, serei eu quem lhe há-de dar lições de valentia de apaixonados. E não as há-de aceitar, o cobarde! Impostor!... Mas... - e se aceitar? Se o aceitar?...» Ao chegar a este ponto das lucubrações, Ludovina estremecia, como estremecia sempre que tinha de passar por aquela sala onde florescia no escuro a humidade do casarão materno.
- Se o aceitar - continuava a pensar Ludovina - a minha vida começará, dissipar-se-á esta névoa de húmidas sombras, não mais ouvirei o silêncio da mãe, deixarei de ver as sobrancelhas contraídas de minha irmã. Se o aceitar, se fugirmos, se toda esta gente estúpida descobrir de uma assentada quem é a Ludovina, a rapariga da viela das Ursulinas, então ressuscitará este amor que nasceu moribundo. Se ele o aceitar, chegaremos a querermo-nos um ao outro; virá unir-nos uma mesma audácia; não, não, nessa altura, havemos de ver, perfeitamente, como já hoje nos amamos. Porque sim, mau grado tudo, eu quero-lhe. É já um hábito na minha vida, constitui já uma parcela da minha existência. É graças à sua companhia que eu vivo.
E eis como os pensamentos dele e dela se conjugavam. Como se fosse o Amor, um mesmo amor que os inspirasse...
III
E passou-se conforme haviam pensado. Uma tarde, ao pôr do sol, Ricardo encheu-se de coragem - e, encostando-se à grade soltou estas palavras afastando dela as mãos: - Olha, nena, isto vai-se tornando demasiado longo, - e eu não sei quando terminarei o curso, que, cada vez, mais me aborrece. Meu pai não quer ouvir falar de que isto termine como deve terminar, enquanto eu não me licenciar e, com franqueza - e, aqui, fez um silêncio - esta situação não se pode prolongar; desta maneira, gasta-se-nos a ilusão...
- A ti, disse ela.
- Não, a ambos, Lidu, a ambos.
- E eu não vejo senão um remédio...
- O de terminarmos...
- Isso nunca, Nena, nunca! Como te pudeste lembrar de tal coisa? Dar-se-á o caso que tu...
- Não, eu não, Ricardo; é que estava a ler no teu pensamento...
- Pois leste mal, muito mal... Agora, se tu...
- Eu, Ricardo, eu? Eu irei contigo para onde quiseres - e até onde quiseres!
- Sabes o que estás a dizer, nena?
- Sim, sei o que estou a dizer, porque já o tinha pensado muito bem, antes de o dizer!
- Verdade, verdadinha?...
- Verdadinha!
- E se eu te propusesse...
- O que me propuseres!
- Mas, que decidida, Ludovina!
- É que tu não me conheces, mau grado as horas que passamos juntos...
- Talvez...
- Não, não me conheces. Diz, pois, isso que queres rodear de tamanha importância! Que é? Que me vais tu propor com tantos rodeios?
- Fugirmos!
- Pois fugirei!
- Vê lá o que dizes, Ludovina.
- Não, se alguém tem que olhar para o que diz, és tu!
- Fugirmos, Ludovina, fugirmos!
- Sim, Ricardo, eu compreendo-te; sair cada um de nós de sua própria casa - e irmo-nos por aí fora, não sei para onde, sozinhos... a... dar corda ao nosso amor...
- E tu?
- Eu, Ricardo, quando tu o disseres.
Houve uma pausa. O sol escondia-se nas searas. O cipreste, mais enegrecido ainda, parecia um aviso; os sinos da Colegiada deixavam cair as Trindades. Ludovina persignou-se, como todos os dias, àquela hora - e latejavam-lhe os lábios. Tinha as mãos presas às grades, e apertava-as ao passo que os seios lhe palpitavam de encontro aos ferros. Ricardo olhou para o chão - e murmurou interiormente: «Vai e prega a boa-nova a todos os povos».
Foi difícil o reatar da conversa. Ricardo dava mostras de haver esquecido as últimas palavras e tão pouco ela se lembrava. Algo de fatal os oprimia. A despedida revestiu-se de tristeza.
E decorreram vários dias sem que ele tornasse a aludir à fuga, até que um dia ela, após um silêncio, lhe volveu:
- E, então, a respeito daquela coisa, que há?
- O quê, Ludovina?
- Daquilo... Não te lembras, já?
- Se não falares mais claro...
- Tu, Ricardo, é que tens de pensar e lembrar com clareza...
- Não te percebo, nena...
- Julgo que me entendes perfeitamente...
- Que entendo, o quê? Acaba de vez...
- Pois, seja! essa coisa da fuga!
- Ah! Mas... tomaste isso a sério?
- Então, tu Ricardo, brincas com o nosso amor?
- O amor é uma coisa...
- Sim e a cobardia, o receio do que possam dizer, são outra. Até que enfim, homem!
- Ah! Se é por isso...
- Quê?
- Quando quiseres!
- Por mim? É já! Assim, pesa-me já esta coisa.
- Ah! É por isso?
- Não é por ti, Ricardo.
E logo, pensando melhor, acrescentou.
- E por mim, também... E pelo nosso amor! Não podemos continuar desta maneira.
Permutaram um olhar de profunda e mútua compreensão.
E, a partir desse dia, começaram a tratar da fuga.
E esta deliberação, esta combinação para uma aventura romântica, com a sua auréola de pecado, enchia-lhes as tardes - e dir-se-ia emprestar-lhes ânimo e asas ao seu amor. Permitia-lhes, ainda, desprezarem os outros pares de namorados, pobres tímidos do ram-ram amoroso, que não se haviam apercebido ainda da misteriosa e oculta virtude reabilitadora de uma fuga, de um rapto de comum acordo.
Ricardo sentia-se derrotado - e até humilhado. Aquela mulher fora mais forte que ele. Admirou-a, embora, talvez, à força de carinho; pelo menos, ele assim o acreditava...
Uma manhã enfim, Ludovina pretextou ter de sair para visitar uma amiga - e, acompanhada da criada, e, com um pequeno saco de roupa pendurado da mão, saiu de casa. Um pouco adiante, deparou-se-lhe, parada na estrada, uma «charrette», que ficou para trás. Em dado momento, porém, Ludovina, virando-se para a criada, disse:
- Espera um bocadinho; esqueci-me de uma coisa, eu venho já.
Voltou atrás, entrou na «charrette» - e esta partiu.
Quando a criada, cansada de esperar, voltou a casa, a inquirir da «menina» - soube-se que ela não tinha regressado.
A «charrette» disparou a toda a velocidade até à estação de uma aldeiazita próxima. Durante o percurso, Ricardo e Ludovina, de mãos enlaçadas, iam em silêncio olhando o campo.
Subiram para o comboio - e este partiu.
IV
A linha férrea contornava a margem do rio que, apertado entre duas ribanceiras por uma garganta, ia despejar no mar as suas águas, quase sempre amarelas. De um e outro lado subiam em socalcos terras de vinhedo, ou amendoeiras, oliveiras, pinheiros, e, de quando em quando, laranjais e limoeiros. As escarpas recortavam-se, à vista, consoante os caprichosos meandros do rio, em curiosas caudas de andorinha. De vez em vez, nas represas que se tinham construído no rio, surgiam pequenos e miseráveis moinhos dos modelos mais vetustos: uma mó rudimentar recoberta por uma palhota.
Desciam o rio, à vela, barcaças carregadas de tonéis, ou subiam-no impelidas por compridas varas manejadas por um homem, de cima de uma sorte de púlpito.
Ricardo e Ludovina, encolhidos num canto da carruagem, olhavam vagamente as quintas espalhadas pelas margens do rio, em meio da verdura, e escutavam as conversas numa língua estranha, de que conseguiam entender somente uma ou outra palavra. Numa estação, ao verem vender laranjas, apeteceram-lhe a ela. Sentia necessidade de refrescar os lábios ressequidos, e entreter as mãos e a boca com alguma coisa.
Ricardo descascou uma das laranjas - e deu-lha; Ludovina partiu-a ao meio e ofereceu a metade a Ricardo. Trincou, depois, metade de um gomo, olhou para os companheiros de viagem - e, vendo-os distraídos, deu ao noivo a outra metade.
Noutra estação comeram; uma refeição soturna. Ludovina, que habitualmente não bebia senão água, bebeu um copo de vinho - e repetiu o café. Oh! Se pudesse regressar, desfazer o que haviam feito! Mas não; o comboio, símbolo do Destino, levava-os a ele acorrentados. Onde quer que parassem, teriam de aguardar o dia seguinte para regressarem a penates.
- Graças a Deus! - exclamou ela, ao chegarem ao local de destino.
Chegaram ao hotel, pediram um quarto - e fecharam-se entre as suas paredes sombrias.
Na manhã seguinte, despertaram muito mais cedo, do que imaginavam na véspera. Dir-se-ia que um enorme e fatal pesadelo os oprimia; nos olhos sobrenadava-lhes a sombra do supremo desencanto. Os beijos eram apelos inúteis. Supunham haver sacrificado o amor a um sentimento menos puro. Ricardo ruminava o «Ide e pregai a boa-nova»; à imaginação de Ludovina acudiam o silêncio da mãe, as sobrancelhas encrespadas da irmã - e, especialmente, o cipreste do convento.
Lembrava a penumbrosa tristeza que, até ali, a rodeava. Era então aquilo o amor?
Era um sentimento de assombro que os perturbava.
Ao acreditarem que, com tal resolução romanticamente heróica, se encontrariam num soalheiro cume cheio de luz e de ar livre, encontravam-se, afinal, no sopé de uma vertente escarpada e fragosa. Aquilo nem chegava a ser o cimo de um calvário; era um incidente, imprevisto, numa vida de amargura. Agora, agora é que, em vez de acabar, começava o atalho da sua paixão, juncado de espinhos e abrolhos. Aquela noite era a coroação das outras noites calmas e tristes ao pé da grade - era o começo de uma vida. E, deste modo, lhes pesava como pesa o início da ascensão a um monte, cujo cimo se perde por entre as nuvens.
Sentiam-se, além do mais, envergonhados sem saberem de quê. O pequeno almoço decorreu cheio de inquietação. Ela mal se atreveu a provar o que quer que fosse. Pediu-lhe a ele que saísse do quarto para se arranjar à vontade. E lavou-se, ensaboou e esfregou a cara com fúria, quase até fazer sangue.
- Então, acabaste? - perguntou ele, do lado de fora.
- Não! Espera, ainda, um pouco.
Ajoelhou-se aos pés da cama - e rezou, por momentos, como nunca havia rezado, mas sem palavras. Entregou-se nos braços da Providência. Depois, abriu a porta ao noivo. Noivo? Como lhe chamaria daqui para o futuro?
Saíram de braço dado, sem fito, a vagabundear pelas ruas.
O coração dela palpitava contra o braço direito dele, que nervosamente cofiava as guias do bigode. Olhavam para toda a gente com medo, receando que se lhes deparasse algum rosto conhecido. Caminhavam de susto em susto, mas tudo era preferível a terem de regressar ao hotel. Não, não! aquele quarto frio, de móveis desconjuntados, e o estuque cheio de buracos, aquele quarto, onde cada noite dormia um desconhecido diferente, repelia-os. O seu único consolo era sentirem-se envolvidos nos rumores carinhosos de uma língua quase estranha. Umas vezes era uma mulher do povo, de aspecto aciganado e andar lânguido, que passava arrastando as chinelas, ou descalça, e que os fitava com uma certa curiosidade insolente. Outras vezes, era um carro de boizinhos vermelhos, sob um jugo revestido de talha, o qual lhes sugeria as portadas da Colegiada da sua terra.
Sentiam vontade de um supremo desafogo dos seus sentimentos; mas em terra estranha, onde iriam eles expandir o coração? Que há nela que nos possa servir de lar? Ao passarem por uma Igreja, Ricardo deu fé de que o seio palpitante de Ludovina o empurrava. Entraram.
Ela embebeu a ponta dos dedos da mão direita na água benta - e passou-lha, a ele, olhando, de olhos perturbados, os olhos perturbados dele.
Ficaram à entrada, ele sentado num banco, junto da parede, no escuro; ela ajoelhou-se à frente, encostou os cotovelos no banco fronteiro e mergulhou a cara entre as mãos.
No templo não havia ninguém mais, salvo uma pobre mulher, quase velha, com um lenço pela cabeça, e que percorria, de joelhos, a via-sacra. Avançando, alternadamente, os joelhos debaixo de um ventre disforme que tremia, ia percorrendo a igreja, o rosário na mão, de altar em altar.
No altar-mor erguiam-se como pirâmide, as luzes do Santíssimo. O silêncio harmonizava-se com a sombra.
Súbito, sentiu Ricardo os soluços sopitados de Ludovina; ouviu-a chorar. E a ele rompeu-se-lhe, igualmente, o dique que sustinha as lágrimas. Ajoelhou-se ao pé da noiva - e, juntos, choraram a morte da ilusão.
Quando saíram, tudo parecia mais sereno e, ao mesmo tempo, mais triste.
- O que nós fizemos, Ludovina... - arriscou ele, em começo.
E ela prosseguiu:
- Sim, Ricardo, enganámo-nos...
- E é que isto, agora, não tem remédio.
- Pelo contrário, homem! Agora é que o tem; agora, está tudo claro!
- Tens razão.
- O mal é que...
- O quê, minha nena?
- Que para casa não podemos voltar. Com que cara vou eu aparecer diante de minha mãe e de minha irmã? E como é que vamos aparecer lá, na rua?
- Pois tu, Ludovina, tu desistes, tu que querias afrontar as vozes alheias...
- As vozes, sim; mas, não é o pior, o que disserem... Isso pouco me importa...
- Pois, que hão-de ser?
- É do que se hão-de rir, Ricardo!
- É verdade!
Chegados ao hotel, confundiram, de novo, as suas lágrimas. Pretextou ele ter de sair para trocar dinheiro; foi, porém, para lhe dar a ela ensejo e tempo de escrever para casa, tratando ele, por sua vez, do mesmo.
E, no dia seguinte, iniciaram o caminho do regresso. Ela quedaria numa aldeola onde morava uma tia, irmã do pai, pois, por nada deste mundo, voltaria a defrontar o silêncio da mãe e o sobrecenho crispado da irmã; ele desceria na estação mais próxima da cidade, para entrar de noite na casa paterna, por caminhos travessos.
Triste, triste, foi o regresso. Os mesmos vinhedos, os mesmos pinhais e olivais, as mesmas barracas. Ao chegarem à fronteira, parecia que as montanhas da pátria lhes abriam os braços a fim de os receber. Eram os filhos pródigos; mas pródigos de quê? Escondiam-se no compartimento da carruagem, com receio de que entrasse algum conhecido. O sentimento da vergonha e - o que é pior ainda! - o do ridículo; uma criancice para que não encontravam desculpa.
Ao chegarem à estação da aldeola onde vivia a tia de Ludovina, viu-a ela à sua espera. Apertou nervosamente a mão de Ricardo. «Hei-de escrever-te, querido» - disse-lhe ela - e desceu. Ele encolheu-se mais ainda no banco, de modo a não ser visto.
- Vamos, mulher, vamos; parece mentira! - disse a tia para Ludovina, e empurrou-a tão depressa quanto pode, para dentro de um carro que partiu num ai.
E, mal se apanharam a sós, dentro do carro, limitou-se a dizer-lhe:
- Francamente, não te fazia tão criança! Se teu pai fosse vivo, decerto nada disto se teria dado. Mas, ali... com aquelas... Mas, que criança, vamos!
Ludovina calava-se, olhando o céu. Ricardo ficou a ver como o carro se perdia por detrás do alto de uma colina, sobre a qual despontava o campanário da igreja do lugarejo.
Ele chegou à estação onde devia descer, e, ao cair da tarde, iniciou a pé o regresso a casa. O sol desaparecia por detrás das torres da Colegiada, num céu limpo de nuvens. Os sinos escorregaram a oração; Ricardo descobriu-se - e rezou, reflectindo três vezes: «... e não nos deixeis cair em tentação». E, depois, ao concluir: «agora e na hora da nossa morte», acrescentou: «Ide pregai a boa-nova a todos os povos».
«Palerma» - foi a única palavra que o pai soltou, quando já noite, o viu entrar, furtivamente, em casa.
V
Passaram-se dias; Ricardo e Ludovina aguardavam as consequências da sua aventura. E passaram-se meses. A princípio, trocaram algumas cartas com ternuras forçadas, queixas, recriminações. As dela eram mais impetuosas, mais concludentes: «Não tens que me referir, meu Ricardo, o que se passa contigo, porque eu o adivinho. A tua retórica não me ilude. Tu, rigorosamente falando, já não me queres; creio que nunca me quiseste, pelo menos, tanto como eu te quis a ti, e ainda te quero - e procuras maneira de te descartares do que julgas ser um compromisso mais de honra que de amor. Mas, deixa-te disso, da honra, porque, quanto a isso, estou deveras tranquila, ainda que te possa parecer mentira. Se não for para me quereres, para me quereres como eu te quero a ti, com toda a minha alma e todo o meu corpo, não te cases, ainda depois de se ter dado o que se deu. Não aceito sacrifícios dessa natureza. Segue a tua vocação, que eu depois verei o que me resta fazer. Contudo, desde já te juro que, ou serei tua, ou de ninguém mais. Mesmo que houvesse alguém tão generoso, ou tão tolo, que se atrevesse a pretender-me depois daquilo que se passou, depois daquela criancice, recusá-lo-ia, fosse quem fosse. Pensa bem no que hás-de fazer.»
Entretanto, a alma de Ricardo era um lago sob um temporal. Não dormia, não repousava, não vivia; voltou às leituras da mística e da ascética, aos estudos da apologética católica.
Redobrou as devoções, e caiu mesmo em certas práticas supersticiosas. Outras vezes, imaginava que ao soar a última badalada das seis, ou ao despontar no cruzamento de duas ruas, cairia repentinamente morto.
Causava-lhe preocupação o problema do seu destino. Todo aquele longo namoro, aquela ridícula fuga, - tudo havia sido obra do demónio para empecer o cumprimento do destino que o próprio Deus, pela palavra do Evangelho, aberto ao acaso, lhe havia determinado. Mas, e Ludovina? Não haveria já outro destino ligado ao seu? Não teriam já as vidas indissoluvelmente ligadas? E não está escrito que não desate o homem o nó que o próprio Deus atou? Mas... não haveria, porventura, outras almas ligadas ab aeterno à dele, outras almas cuja salvação suprema dependia da sua pregação da boa-nova aos povos da Terra? Ou dar-se-ia o caso de que ele a não pudesse pregar, sem a levar consigo a ela, Ludovina? Seria que a ordem divina forçosamente implicasse que devia desistir de reparar o que, por imperativo da honra, devia ser reparado? Por outro lado, casar-se sem amor... Ainda que digam, como dizem, que aquele vem logo; a conveniência, a necessidade, o querer amar... Mas não, não! A experiência daqueles dois dias em terra estrangeira bastara. E Ricardo julgava ver a pobre velha, de ventre disforme, a percorrer a via-Sacra. E o destino dela, Ludovina, não ficaria de modo algum preso ao seu? Não teria sido aquela fuga armada pelo Demónio, aproveitada finalmente por Deus para mostrar a um e a outro os seus verdadeiros destinos?
O que a Ricardo mais custava a suportar, era a atitude tomada pelo pai para com ele, após a aventura.
- Palerma! Mais que palerma - dizia-lhe ele. Encheste-me de ridículo sim, de ridículo. E encheste-te de ridículo a ti, também. Não me podias ter dito o que sentiam ambos? Agora julgarão que sou um pai tirano, que contrariava os amores de meu filho... Palerma, mais que palerma!
E, de facto, de tal modo sentia Ricardo que aquela fuga o cobria de ridículo, que acabou por abandonar a cidade - e ir para outra longe dali, para casa de uns tios.
E, nesta cidade, numa cidade murada, onde a alma tinha de se elevar até ao céu, mais e mais mergulhou no misticismo. Passava o tempo todo nas lajes da misteriosa abside da catedral.
E ali imaginava-se apóstolo, profeta de uma nova era de fé e de heroísmo; outro Paulo, outro Agostinho, outro Bernado, um segundo Vicente, arrastando empós ele as multidões sedentas de adoração e de lenitivo - multidões de homens e de mulheres, entre as quais Ludovina. Imaginava-se nos altares - e lia, antecipadamente, a piedosa legenda que algum circunspecto varão haveria de escrever sobre a sua vida e o papel que nela havia de representar a sua Ludovina.
A correspondência com ela continuava; apenas, as cartas de Ricardo agora eram mais sermões, que missivas amorosas ou de arrependimento.
«Olha, meu Ricardo, não me pregues tanto - respondia-lhe ela; não sou tão estúpida, que necessite de tantas e tão arrevesadas palavras para perceber o que tu pretendes. Pela centésima vez te digo: não quero ser empecilho à realização do que julgas ser o teu destino. Quanto a mim, sei já o que devo fazer em qualquer caso, e digo-te, uma vez mais, que, ou tua, ou de nenhum outro homem».
Tremendas lacerações custaram a Ricardo escrever a Ludovina a carta de despedida; supondo, porém, fazer-se forte e vencer-se a si próprio, uma manhã, depois de devotamente haver comungado, escreveu-lha. E foi tão vil, tão cobarde, que, não tendo coragem para ler a resposta dela, queimou a carta sem a abrir. Diante das cinzas, palpitara-lhe o coração furiosamente. Quisera refazer a carta queimada, ler as queixas da esposa; a esposa, sim era este o verdadeiro nome; da esposa sacrificada. Estava todavia feito, - queimara a carta. Aquilo, graças a Deus, já não tinha remédio. E era preferível assim, preferível deveras para os dois. Entre ambos subsistiria para sempre, ainda quando não voltassem a ver-se, ainda quando não voltassem a cruzar os olhares, nem a palavra, nem a escrita, ainda quando não voltassem a saber um do outro - num matrimónio espiritual. Ela seria a Beatriz do seu apostolado.
Caiu de joelhos e, a sós, no quarto, regou com lágrimas o Evangelho da profecia.
VI
A vida do noviço Fr. Ricardo, de tão exagerada que era, chegou a espantar o mestre dos noviços. Entregava-se à oração com um ardor desatinado, e à penitência, ao recolhimento - e, sobretudo, ao estudo. Não, não era natural aquilo; parecia mais obra do desespero diabólico, que de doce confiança na graça de Deus e nas virtudes de seu filho incarnado.
Dir-se-ia que procurava ansiosamente descobrir uma vocação que não tinha, ou extrair algo das mãos do Todo-Poderoso. O céu padece força, dizem as escrituras; contudo, os exageros de Fr. Ricardo não traziam o cunho da unção religiosa.
As penitências iam para o purgatório da sua aventura de amor profano. Dizia-se que um matrimónio no qual se penetrou por um pecado, nunca pode ser fecundo em bens espirituais. Rezava por Ludovina e pelo seu destino, que julgava para sempre ligado ao seu. Sem aquela fuga providencial, talvez houvessem casado, deste modo contrariando quer um, quer outro, o destino que por Deus lhes estava determinado.
As suas orações eram orações de inquietação e perturbação. Rogava a Deus a paz de espírito, a vocação - e também lhe rogava fé.
Lia Kempis, os Santos Padres, os místicos, os apologetas e, em especial, as «Confissões», de Santo Agostinho. Imaginava-se um novo Agostinho uma vez que passara, como o Africano, por experiências de amor carnal e do terreno amor humano.
Os outros noviços olhavam-no com um certo receio, e também com uma certa inveja, que é a praga oculta da vida conventual. Parecia-lhes que Fr. Ricardo procurava sobressair - e que, intimamente, os desprezava - o que dava certo.
Tinha que se forcejar, que se violentar a si próprio, para poder suportar a ingénua simplicidade, a mediocridade dos companheiros de noviciado, a incompreensão e o tacanho espírito de não poucos. E apartava-se dos melhores, dos mais cândidos e ingénuos, considerando-os como cretinos. Preferia a companhia dos maliciosos. Custava-lhe constatar que a maior parte dos companheiros não sabia por que tinha entrado para a clausura; os pais haviam-nos ali metido quando ainda adolescentes, para se verem livres deles, ou não terem que lhes conceder um ofício e um estudo; outros haviam começado por meninos de coro, ou fâmulos; outros, ainda, tinha-os arrastado uma visão poética da primeira e nebulosa infância; quase nenhum deles conhecia o mundo, de que falavam como de alguma coisa inacessível e misteriosa.
Fazia-o sorrir de piedade a sua candidez, ao ouvi-los dissertar sobre as tentações da carne e sobre o pecado da concupiscência. Haviam como diabólico o que ele, Ricardo, cria saber perfeitamente que não passava de tolice. Não tinham provado a inanidade do amor terrenal.
Como entre os noviços havia vozes confusas da avent
ura que o levara ao convento, faziam-lhe alusões encobertas - e quando ele, com o seu sorriso superior, lhes dava a perceber que não se deve exagerar a importância do mundo, do diabo e da carne, retorquiam-lhe:
- Fora de dúvida, você disso tem mais experiência que nós...
Isto lisonjeava-lhe a vaidade.
Todavia, as referências mais directas aos seus amores com Ludovina, e à fuga, irritavam-no. Acreditava que nem os altos muros do convento, nem a simplicidade dos seus irmãos de clausura, eram barreiras bastantes para o ridículo de que se sentira alvo na sua terra.
O mestre de noviços não se conseguia convencer dos ardores de Fr. Ricardo. Ao falar com o Padre Prior, dizia-lhe:
- Acredite-me, Padre Prior, não há maneira de entender claramente este Fr. Ricardo. Veio para o convento já experimentado e desconfiado. Esconde sempre algo; não é daqueles que se dão, se entregam. Procura destacar-se; supõe-se superior aos outros; despreza os companheiros. Magoa-o mais a virtuosa candidez, que o talento malicioso. Já chegou a confessar-me que pensava serem os néscios piores que os maus. Entusiasmam-no os santos mais singulares, mais rigorosos; contudo, não julgo que seja para os imitar. Julgo, antes, que será por literatura. A vida do nosso irmão, o Beato Henrique Susón, é que lhe enche as medidas; receio, contudo, que não seja senão para a transformar em tema de oratória...
- Em tema de oratória, a vida de Susón! proferiu o Padre Prior, que passava por ser um dos notáveis oradores da Ordem.
- Sim, o nosso Fr. Ricardo sente-se orador, e a vocação dele não é mais do que vocação oratória - e oratória sagrada, que é a que ele julga mais em conformidade com o seu talento. Sonha com os tempos da oratória de um Savonarola, de um Monsabé, de um Lacordaire... Quem sabe? talvez mais que isso! Essa revelação evangélica que julga ter recebido - a do «Ide e pregai a boa-nova», atrai-o - nem sequer pelo Evangelho, mas sim pela pregação... não pela boa-nova, Padre Pedro! Padre Pedro exclamou o Padre Prior, em tom conventual.
- Ai! Padre Luís! Olhe que sou macaco velho no meu ofício... Que já me passaram pelas mãos muitos noviços... Que sempre senti alguma afeição, talvez exagerada, por estes estudos de psicologia...
- Hum! Hum! Isto cheira-me a...
- Sim, eu entendo-o, Padre Prior, mas pode crer-me, alguma coisa percebo de vocações. E a deste rapaz, queira Deus que me engane, parece que não é vocação para religioso, mas sim para pregador. E, talvez, para alguma coisa mais...
- Como assim, como assim? Padre Mestre, que está a dizer? Que quer dizer?
- Vocação... vá lá... para bispo!
- Julga isso?
- Se julgo! Este rapaz, no fundo, é um egoísta. Aquilo que fez com... pois... com aquela pobre pequena a quem enganou, porventura isso que foi senão egoísmo? Depois dessa desilusão, ou lá o que foi, veio para aqui, um tanto por romantismo, e um tanto para dar nas vistas...
- Dar nas vistas, de padre! soltou o Padre Prior, largando a mais franca gargalhada, que lhe deixou à mostra a formosa dentadura.
- Dar nas vistas, de padre! Louvado seja Deus! Que coisas lhe acodem à ideia, Padre Pedro!
- Sim, dar nas vistas, de padre; eu afirmei-o - e não me desdigo. O senhor, Padre Luís, e eu não pretendemos dar nas vistas; mas, nos tempos que correm, e para caracteres como os do nosso noviço Fr. Ricardo, o fazer-se frade é como que um desafio ao mundo, é como que uma das mais românticas singularidades. Além do mais a ambição...
- Ambição?
- Ambição, sim! Há cargos, há honras, há glórias, que daqui, do convento, se conquistam melhor do que por qualquer outra via. E eu penso que este rapaz tem os olhos postos lá muito no alto... não falemos nisto. E, também, não será este o primeiro a quem a vocação teatral, aliada a algumas desilusões e sobre um fundo de religiosidade, não o contesto - como poderia eu contestá-lo? - tenha arrastado para a clausura. Lembre-se, Padre Prior, daquele Fr. Rodrigo, o carmelita, que tanto se distinguia como actor nos teatros de amadores da aristocracia e que, em vez de fazer carreira pelo palco, foi para um convento...
- Sim, e agora, fora já do Convento, anda a inventar uma nova religião...
- Sempre comediante! E este, o nosso Ricardo, igualmente alberga dentro de si um comediante. Apenas, espera acabar por fazer o papel de protagonista, com uma mitra, ou, quem sabe?, talvez até alimente sonhos mais altos...
- Quê, quê? Diga, Padre, diga!
- Não, não; nada! Isto cheira-me já a murmuração.
- Há já algum tempo que me está a parecer o mesmo.
- Mas, enfim, Padre Prior, penso que é a minha obrigação prestar-lhes estas informações. Este rapaz julga que o nosso trajo é um lindo trajo. E até suspeito que ele próprio se tem na conta de bonito, e que pretende dar nas vistas, com o hábito branco, lá de cima do púlpito.
- Mas que má-língua o senhor é, Padre Pedro!...
- Macaco velho, Padre Prior, macaco velho... E que já não chegava a bispo, pensou para consigo o nosso Padre Prior, que também já perdera essa esperança.
VII
Se a pobre Ludovina tivesse ouvido este diálogo entre o Padre Prior e o Padre Mestre de noviços!
Mas Ludovina, que tinha esperado pelo seu Ricardo até o momento em que este entrou para o claustro, foi também, com os olhos enxutos e o coração despedaçado, enterrar-se num convento. Pensou fazê-lo numa ordem em que se dedicasse ao ensino, para inculcar subtilmente nas educandas o nojo e o desprezo que nutria pelo homem egoísta e cobarde. Mas, para quê expor-se assim a ter de mostrar o coração a nu? Para que ir exacerbar o desgosto alimentando-o com uma vingança? Não; era melhor professar numa ordem contemplativa, de recolhimento, silêncio, penitência e oração; num mosteiro a cujas portas se quebrassem os ecos do mundo exterior. Ali se enterraria em vida, à espera da morte, da justiça divina e do amor que sacia.
Foi-se para a distante e escondida vila de Toviedra, situada na encosta de uma serrania agreste - e fechou-se entre as quatro paredes de um velho convento que, em tempos, tinha sido de Beneditinas.
No horto existia um cipreste, irmão do das Ursulinas da sua terra natal, do cipreste da sua juventude. E, sentada junto da árvore negra, contemplava os incendiados arrebois do poente, que lhe lembravam outros. Entretinha-se estranhamente naquele horto triste, companheiro silencioso, na maior parte cultivado de hortaliças, com poucas e raras flores tristes, que só ela regava; aquele horto tristonho, prisioneiro entre altos muros, pedaço de natureza enclausurado também.
Dali não se via, do resto do Mundo, senão o céu, que não admite taipais, nem cancelas. Pelo azul, cruzavam-se mansamente as nuvens, que lhe davam sombra; outras vezes alguma pomba que esvoaçava em busca da quentura do ninho. Quando chovia, do mesmo doce manto negro caía a água na terra de fora e na de dentro do convento. À noite, deixava correr pelas estrelas a mirada dos seus olhos pretos, ou contemplava a meia lua que, como um barquito, parecia vogar, a toda a velocidade, entre as nuvens. Certos dias, ouviam-se através das grades rumores de multidões que passavam junto dos muros, sons de guitarras, de violas e cantos de romaria; e num anoitecer, encostada ao muro, surpreendeu-lhe o ouvido, através dele, um deslizar de beijos e uma revoada de suspiros soltos. E em face desses ecos do lá de fora, sonhava recordando a velha de ventre enorme que percorria de joelhos a via-sacra, no solitário templo das lágrimas, e aquela viagem de comboio, junto do rio de águas barrentas pelo temporal, entre pinhais, oliveiras e laranjeiras. Lembrava a cidade do pecado. Do pecado? Mas, tinha sido aquilo, realmente, um pecado? É esse o pecado que, com tantas cores atraentes, nos pintam? Oh, o pecado é a curiosidade, sem dúvida, nada mais que a curiosidade! Por curiosidade, por desejo de saber, pecou Eva. E, por curiosidade, continuam a pecar as filhas dela!
Teria sido melhor, ou teria sido pior, que Ricardo a tivesse sacrificado daquela maneira? Não queria saber disso. O homem é sempre egoísta. O que mais lhe doía era o estranho sorriso da irmã, aquele sorriso que lhe tinha desanuviado as feições, quando se despediu dela à porta do convento, e lhe disse: «E agora, que sejas feliz!» Que lodaçal é o mundo!
E ali dentro voltou a encontrá-lo; o convento era um mundo pequeno. A ociosidade, a falta de afectos de família, a monotonia da existência exacerbavam certas paixões. Aquela triste paz dos claustros estava cheia de pequenas paixões e desconfianças hostis.
Uma vez por ano, passava pela rua para onde davam as grades do convento uma procissão de meninos, e, nesse dia, as irmãs e as madres - madres? pobrezinhas! - assomavam às grades para os verem passar e para lhes lançarem flores desfolhadas, que fingiam atirar para o andor. Com certeza que, se lhes anunciassem que ia a entrar na cidade D. João Tenório, redivivo, não se inquietariam tanto para o irem ver.
Tinha cada uma na sua cela um menino Jesus, um lindo bonequinho que vestiam e despiam, e adornavam. Punham-lhes flores, beijavam-no, sobretudo às ocultas; algumas beijavam-no nos joelhos, como a um menino de verdade. Rodeavam-nos de flores. Uma vez, quando um fotógrafo, com licença do bispo, entrou na cerca para tirar a fotografia a um arco românico que dava para o jardim, acudiram as monjas, para que lhe tirasse o retrato.
- Sai daí: - dizia uma delas para outra - o meu é mais bonito, repara nos olhos que tem!
Ludovina olhava em silêncio e com o coração oprimido, para aquela rivalidade ingénua das madres tresloucadas. E ela, que podia ter tido um filho, mas um filho verdadeiro, um filho vivo, um filho de carne! Oh! Por quê, por que tinha sido estéril aquela fuga?
Assim, estéril como tinha sido, acabava em ridícula; tinha razão Ricardo. Mas se tivesse florescido? Se tivesse frutificado num menino, num filho de amor?
Então - pensava Ludovina - o amor teria renascido; porque eles amavam-se, sim, amavam-se apesar de o egoísmo e a vaidade de Ricardo se esforçarem por não o reconhecer. Se tivessem tido um filho, Ricardo não a teria sacrificado àquela vocação. Vocação para quê? Ah, se a pobre Ludovina tivesse ouvido o padre-mestre de noviços!
E passava-lhe pela mente a visão radiosa daquele irmãozinho de risonhos olhos azuis, e com uma coroa de cabelos de oiro. E ouvia-o chamá-la de além, de multo longe, das últimas distâncias das recordações da primeira mocidade: Ina! Ina! Ina! Como se tinha ido depressa também a Nena de Ricardo!
Graças a Deus que depressa acabaria por se ir embora de todo...
Para onde? Para um mundo sem tanto lodo, nem tanta falsidade, sem os silêncios da mãe, sem as sobrancelhas cerradas da Irmã, sem o egoísmo do noivo, sem as invejas das companheiras.
De resto, aos pés da Virgem Mãe, a pobre Irmã Ludovina mais de uma vez implorara: «Mãe! Mãe! Por que não conseguiste do Pai de teu Filho, Nosso Senhor Todo Poderoso, que o meu Ricardo me fizesse mãe? Mas não... não... perdoa-me». E desfazia-se em lágrimas, tentando conformar-se com a irreparável clausura.
Ali alimentava a tristeza, aquela irremediável tristeza que havia de a acompanhar até à beira da sepultura. E, por isso, magoava-a profundamente a infantil alegria das irmãs de reclusão, que por terem lido nuns livros místicos que o verdadeiro santo é alegre, fingiam um contentamento ruidoso e pueril de risadas e bater de palmas.
Por altura das festas do Natal, do Deus-Menino, é que esta alegria tola, quase obrigatória, tinha mais expansão. Havia então, no horto, bailes entre risos loucos e repicar de pandeiretas.
- Vamos, irmã Ludovina, não dança? E ela, retorquia:
- Não, sou muito fraca das pernas.
Respeitavam-lhe a tristeza, adivinhando, se é que não sabiam, a causa dela.
E continuavam o folguedo, exclamando alguma, de vez em quando: «Ai meu Jesus bendito! Que contente eu vivo»! E chamavam a isto um viver feliz, com a alegria da santidade.
E assim se passavam os dias, todos iguais e todos cinzentos. Não se esquecia de rezar por Ricardo, a fim de que Deus lhe abrisse o entendimento e lhe perdoasse.
VIII
A aurora de Fr. Ricardo como pregador alargava-se a toda a nação. Dizia-se que renovava os tempos áureos da sagrada oratória espanhola. Tinha uma voz quente, e, ao mesmo tempo, recolhida. O gesto sóbrio, a entoação pausada, a exposição metódica e clara, mas, interiormente, a lava de um vulcão contida. A sua unção era uma unção inquietadora.
Alguns dos que ouviam a raciocinar, acusavam-no de falta de paixão, porque há toleirões que não sabem haver nada mais raciocinador, que a própria paixão.
As suas antíteses e paradoxos pareciam, a outros, frutos de talento, sem repararem que, como em Santo Agostinho, o Africano, também em Frei Ricardo as antíteses e paradoxos eram diamantes, duros e secos, forjados em forja de abrasadoras paixões. Como geralmente os seus sermões eram vazios de palavras inúteis, chamavam-lhe frio, confundindo frialdade com secura.
E acontecia que a oratória de Frei Ricardo era seca e ardente como as areias do deserto espiritual que a sua alma, cheia de ambição e de remorsos, atravessava.
Por vezes, era obscuro; obscuro para os outros, e obscuro para si mesmo.
Acontecia que andava à procura de ideias. E falava não só às multidões que o ouviam, mas também a cada um dos que a compunham; falava de alma para alma.
No entanto, havia, na sua oratória, algo de informe; de confuso e de disperso. E não havia nele nada absolutamente nada, de efeitos. Poucos, muito poucos silogismos; - parábolas, metáforas e paradoxos como no Evangelho, e transições bruscas, verdadeiros saltos.
- O caso é que, sem ser verdadeiramente um orador arrebata - dizia algum pedante.
Costumava falar dos problemas chamados da época: da decadência da fé, da luta entre esta e a razão, entre a religião e a ciência, de questões sociais, do egoísmo de pobres e ricos, da falta de caridade, e, sobretudo, do além-túmulo. Quando falava de amor parecia que se transfigurava.
Apontavam-no já para bispo, mas apesar de toda a sua fama, apesar de ter uma conduta irrepreensível, qualquer coisa de estranho pesava sobre ele. Não conseguia tornar-se simpático aos que com ele tratavam, não conseguia conquistar o coração das multidões que o escutavam.
Especialmente as mulheres sentiam, ao ouvi-lo, alguma coisa que, enquanto as fascinava, subjugando-as fazia com que tremessem diante dele. Adivinhavam qualquer coisa penosamente secreta nas suas palavras ardentes. Sobretudo quando o ouviam falar de alguns dos seus assuntos preferidos, o da tragédia do Paraíso, quando Eva tentou Adão, fazendo-lhe provar o fruto proibido da árvore da ciência do bem e do mal, e ambos foram expulsos do jardim da inocência, e ficou de guarda à porta um arcanjo com uma espada de fogo que lhe iluminava as asas de vermelho. Ou a tragédia de Sansão e Dalila. E acontecia que nas suas palavras quase nunca havia consolação, mas sim dolorosas ansiedades. E qualquer coisa de rude e desesperado.
Às vezes, é verdade, a voz chorava-lhe como se implorasse a compaixão dos ouvintes. Adivinhava-se, nesses momentos, a luta de uma alma cativa a desconjuntar-se em contorções para ver se quebrava as amarras que a prendiam.
Mas, nesse mesmo instante, recolhia-se e como que se contraía, e, então eram as suas ameaças mais ásperas, as suas profecias mais veementes.
Aquele pregador tempestivo não era para as nossas pobres almas lacinantes, que vão à igreja em busca de narcóticos e não de cautérios abrasadores. E não era adorado, não. Debalde, por vezes, procurava abrandar-se. O cálido profeta estava condenado à solitude.
E, sentido-se só, dizia para com os seus botões: «Sim; é o castigo de Deus por haver abandonado Ludovina, por a ter sacrificado à minha ambição. Sim, agora antevejo claramente; acreditei que uma mulher, uma família, seriam um peso e um obstáculo, aos meus sonhos de glória».
Mal se apanhava a sós, fechava os olhos porque não queria ver, ao longe, a sombra duma teara. «Não passo de um egoísta, «prosseguia», busquei o cenário que melhor se coadunaria com as minhas faculdades histriónicas. Não pensei senão em mim», Chegou, por fim, a oportunidade que, no íntimo, mais acalentara-a de pôr à prova a sua vocação. E o caso foi que o convidaram a pregar no convento das Madres, na vila de Tolviedra.
Mal o soube, mal conseguiu pregar olho. O coração não lho consentia. E, graças! que o mundo, a gente, ou melhor, o público não conhecia o elo que o ligava àquele convento. Constituía já um segredo para quase todos. Agora, agora, ia proporcionar um espectáculo único, e só para eles os dois; agora, ia falar de coração para coração, no segredo de uma multidão assombrada e extasiada, com a fatal companheira do seu secreto destino; agora ia confessar-se a ela publicamente, e sem que ninguém desse por tal; agora ia passar por um transe único nos anais da oratória cristã.
Se aqueles pobres devotos conhecessem a cena do drama fatídico que ali se representava! O comediante do apostolado sentia-se arrebatado, num arrebatamento de enlouquecer...
...E chegou o dia.
O templo estava repleto de gente, ardendo por ouvir o famigerado pregador. Tinham vindo das aldeolas vizinhas e até da capital da província. O altar lembrava uma brasa de ouro. Para além do reposteiro que, por de trás das grades, velava o coro, adivinhava-se uma vida de recolhimento e de êxtase. De quando em vez, vinha de lá uma tosse perdida.
Subiu Frei Ricardo vagarosamente ao púlpito, e sacou dum lenço a enxugar a tez. Por instantes, a manga ampla do hábito ocultou-lhe o rosto, tal qual uma asa. Circunvagou os olhos pela assistência - e deteve-os um momento na grade do coro. Ajoelhou-se a rezar a saudação evangélica, encostando a fronte nas mãos apoiadas ao peitoril do púlpito.
A tonsura brilhava à luz das velas do altar. Ergueu-se; ouviram-se algumas tosses aqui e além; rumor de vestidos. E logo tudo se petrificou num vivo silêncio.
Algo de inusitado acontecia ao pregador. Titubeava, repetia-se, suspendia-se, por vezes, não conseguindo esconder uma estranha inquietação. Mas, a pouco e pouco, foi-se dominando, a voz e o gesto afinaram-se e começou a soltar as palavras, como um rio de fogo sem chamas.
Os devotos auditores sustinham a respiração. Uma atmosfera de trágico mistério enchia o recinto do templo. Adivinhava-se algo de solene e de singular: não era um homem; era o coração humano que falava. E falava do amor, do amor divino. E também do amor humano. Cada um dos que o ouviam sentia-se arrastado para as profundidades do espírito, para o íntimo do inconfessável. Aquela voz queimava. Falava do amor que envolve e domina, quando mais longe dele nos supomos.
E dizia:
«Esperar o amor! Só o espera quem o tem já dentro de si! Cremos cingir a sua sombra, quando ele, o amor, invisível aos nossos olhos, nos estreita e nos oprime. Quando julgamos que morreu em nós, é porque já tínhamos morrido dentro dele, pois só se ama deveras depois que o coração do amante se misturou, em almofariz de angústia, com o coração do ente amado. E o amor - paixão - partilhada, é paixão, dor comum. Dele vivemos, sem dele darmos conta, como não nos damos conta de vivermos do ar, até ao momento de asfixia angustiosa. Esperar o amor! Só espera o amor, só por ele chama, aquele que o possui já em si, o que do seu sangue vive, mesmo sem saber.
É a água subterrânea a que aviva a secura. Sentimos, por vezes, uma sede abrasadora, tal qual a do campo deserto que se abre em sulcos de secura, ao passo que voam à solta, à superfície, as folhas levadas pelo vento suão; e, todavia, nas profundezas desse mesmo campo, sob as várzeas de sua verdura morta, corre, sobre a Tocha que a sustém, o caudal da água vivificadora. E é o rumor dessa água profunda o que se funde ao ruído das folhas secas, e vem numa altura em que a terra ressequida se escancara - e, à superfície dela, irrompem, como manancial, as águas adormecidas. Assim é o Amor».
«É o egotismo, porém, minhas irmãs e meus irmãos, é o triste e orgulhoso amor-próprio que nos cega, a fim de não enxergarmos o amor que nos cinge e envolve, para não o sentir. Queremos tirar-lhe algo, não nos entregarmos de todo a ele - e o amor deseja-nos e reclama-nos inteiros. Queremos que ele seja nosso, que se submeta aos nossos insensatos desejos, na busca do nosso esplendor pessoal e Ele, o Amor, o Amor encarnado e humanizado, exige que a ele pertençamos, inteiramente - e só a ele. E quando nos submetemos?
Ao acharmo-nos no sopé da encosta! E por que nos submetemos? pelas mais lamentáveis razões! - por receio do ridículo, talvez! Não por razão alguma pior, minhas irmãs e meus irmãos. Que torpe, que egoísta e mesquinho é o homem! Perdão...!»
Ao chegar a esta palavra, irrompeu como que um grito desgarrado das entranhas, a voz de Frei Ricardo, que, como rio de fogo em chamas, ia tombando por sobre o vivo silêncio da devota assistência, viu-se sincopada pelo o silêncio da devota assistência, viu-se sincipada pelo dilacerar de um soluço, que vinha detrás da grade do coro. As próprias velas do altar, parece que a sua chama se arrepiou ao contacto da fusão daqueles dois gritos de alma. Frei Ricardo tornou-se primeiro lívido como a cera dos círios do altar. A seguir, ruborizou-se-lhe o rosto como a chama das velas; olhou no vácuo, inclinou a cabeça para o peito, cobriu os olhos com as mãos que mal despontavam, a tremer, das mangas alvas como asas - e rompeu num choro, de soluços convulsiosos, que se confundiram com os que vinham do coro. Por instantes, fez-se mais denso, ainda, o silêncio da multidão estarrecida; logo, porém, prorromperam cantos; ajoelhou-se o pregador. Por fim, dispersaram-se os ouvintes, a pouco e pouco.
Pelo espaço de dias, e até meses, não se falou em Tolviedra senão daquele invulgar acontecimento. E aqueles que o presenciaram, recordaram-no, depois, sempre, pela vida fora.
Parecia-lhes, a eles, que na altura da eclosão do mistério, estava o pregador a expor, em frases soltas e conceituosas, coisas enigmáticas. Mais adiante, chegou a saber-se, ou, pelo menos, a suspeitar-se, de que algo havia por trás daquilo - algo do rumor do fogo subterrâneo, que fundiu com o rumor das águas de cá de fora. E, posto isto, principiaram os mais entendidos a perceber o que havia sido a oração de Fr. Ricardo.
Ele e ela, Fr. Ricardo e Sóror Ludovina, sentiam-se mais prisioneiros do destino, que no tempo em que não os separava senão a grade de ferro do casarão da rua das Ursulinas. Ao estreitarem-se e confundirem-se em um só os soluços de ambos, fundiram-se-lhes os corações, como que se lhes despiram os hábitos abrasados e ficou a nu, e descoberto, o amor que, a partir daquela triste fuga, os sustentara pelos caminhos solitários.
E a partir desse dia...
FIM
Salamanca, Novembro de 1911
fonte: http://planeta.clix.pt/letras/lit15.htm
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