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RÉPLICA AOS SUICIDAS
Dramaturgia. Texto teatral em um ato,
baseado e inspirado em obra e universo de Miguel de Unamuno.


Hercules Morais

Ator/ Arte Educador/ Formando em Filosofia – Formado em Teatro pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP. Cursando Licenciatura Plena em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de São Bento/SP. Com ampla vivência e conhecimentos teatrais, cursou os principais centros do saber artístico e musical: TUSP (Núcleo artístico de teatro da USP), CPT (Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho), GRUPO TAPA, ULM (Centro de Estudos Musicais Tom Jobim - Universidade Livre de Música). Tendo atuado nas diversas áreas artísticas e especificas do teatro, como: Ator, professor, diretor, produtor, entre outras atividades.




A ação passa-se no outono, de um dia pardacento e frio, de uma cidade qualquer, em uma casa qualquer, poucos móveis, muitos discos, livros e uma vitrola.

PERSONAGENS:

Ele: Músico, trompetista.
Ela: Sua ex-mulher.

(Ele ouve um solo de trompete, com olhar longe e perdido, com o trompete no colo, sentado na cadeira de rodas, não pode mais tocar, pois, esta com uma doença degenerativa, que já compromete seus pulmões, e coordenação motora, ela entra desliga o som).


ELE (Meia idade, de jaquetão e chapéu de artista): Então, você vem me dizer que mesmo sem poder tocar, ainda posso ouvir os pássaros cantando, olhar o arco-íris, sentir o sol batendo no meu rosto?

ELA (Entra, traz um grande vaso de flores, coloca-o em cima da mesa): São coisas divertidas. A vida é dura. A sua mais que a da maioria.

ELE (Sempre fala baixo e calmamente): Acabou. Eu perdi o fôlego. Não posso tocar.

ELA: É só o que você é, um músico?

ELE: O motivo dos caras normais terem esposa, filhos e hobbies, o que for. É que eles não tem essa coisa que mexe com eles e que é verdadeira. Eu só tenho a música, que eu penso o tempo todo, que me faz um fora do comum. Me faz grande, me faz o melhor. Essa é minha religião! Uma mulher esperando em casa após o trabalho com um drinque, um beijo. Isso eu nunca terei...

ELA: O que você sente a meu respeito?

ELE: Você vive a ilusão que pode consertar tudo que não é perfeito. Você não ama, você precisa, tem compaixão por mim. E agora que seu marido morreu esta procurando seu novo caso de caridade. É por isso que quer ficar comigo.

ELA: Estou com você.

ELE: Não pode.

ELA: O que queria de mim?

ELE: Você é a juventude.

ELA: Essa juventude que sempre teve tanto medo?

ELE: A juventude que agora tanto aspiro, essa é a verdade.

ELA: O que mudou?

ELE: Nada. Nada muda. Eu não vou mudar...

ELA: O que esta falando?

ELE: Não posso fazê-la feliz!

ELA: O que?

ELE: Como acha que isso vai terminar? Ficaremos felizes algumas semanas? Alguns meses? Ate quando durar... Ate que eu... Diga alguma besteira, comece a te ignorar. No inicio, tudo bem. “É a doença, é assim mesmo” em algum momento, você precisará de mais. De alguém que lhe dê o que não posso dar. Sabe que tenho razão.

ELA: Não precisa ser assim.

ELE: Precisa sim. Eu não quero sofrer por dois.

ELA: Acha que perdeu tudo. Vai abrir mão do seu artista! Você é gênio.

ELE: Não posso tocar... Quando isso acaba... Acabou. O que fiz já me faz vivo pra sempre, o eu condicionado, gravado, eterno e imortal!

ELA: Por isso, acha que pode deixar a vida?

ELE: Deixa-la agora, antes da última dose, evitaria ter que pagar a conta, e a ressaca de amanhã.

ELA: Não pode fazer isso, isso não é justo, não é correto, estamos dentro da eternidade à vida não nos pertence.

ELE: Sabe por que a igreja tem esta posição diante da morte, porque tem medo de perder parte da sua clientela. Por mais que eu tente acreditar, eu não consigo.

ELA: Você quer morrer, sabe o que isso significa? Que nunca mais vou vê-lo.

ELE: E se eu não conseguir, vou preso. Triste ironia. Só quero adiar minha sentença de morte! Deus não crê mais em mim...

ELA: Amor você esta afoito! Esta confuso!

ELE: Faz dois anos que isso começou, e na minha vida nunca fui partidário da calmaria, sempre quis ir além, que meu gládio seja minha contradição, não quero mar calmo, quero o revolto que me arrebate e me leve daqui...

ELA: (Escondendo as lágrimas) Não quero ficar aqui pra apoiar essa sua persistência!

ELE: A natureza persistente sempre foi o grande segredo.

ELA: Se o homem comete um erro, Deus...

ELE: (Interrompe) Deveria dizer que ele esta errado.

ELA: Não, ele perdoa.

ELE: Não é isso que deve ser feito, não é dizer que a culpa não é sua.

ELA: Como assim?

ELE: Você errou. Devia se sentir bem por ter feito, e mal por que errou. Porque fez mal a sua saúde, porque vai morrer. Senti felicidade no que fiz, mas, não quero morrer! Não quero morrer!

ELA: Você deve aceitar e encarar a doença, virá uma ressurreição, vida em outro plano, não sei, a alma continuará...

ELE: Quero o que conheço. Aqui neste mundo, isso tudo são paliativos ativos das consolações. Sei o que ele quer, que eu esteja fraco, que no sofrimento eu perca minha força, que na dor eu procure o veneno.

ELA: Para deixar esta vida com dignidade é preciso crer, crer em algo, a fé é algo que se cultiva, que se encontra, você deve procurar, buscar...

ELE: Queria lutar, lutar com Deus!

ELA: Talvez encontra-se a verdade!

ELE (Como em um delírio de possessão): A única coisa que me faz crer na verdade, é o fato das mentiras existirem, a cada máscara que cai, isso implica que existe verdade, por detrás. Mas, não uma, nem algumas, a verdade é a investigação continua, movimento permanente.

ELA (Interrompe): Você esta cansado, quer ir se deitar...

ELE (Cont...): Não quero encarar a morte, enfraquecido, encarcerado na minha doença, nocauteado por uma estratégia mesquinha de Deus. Não posso perder minha lucidez, deste modo seria fácil, a doença definha minha consciência, e minha consciência é minha vida, sem ela não posso viver, sem ela já estou morto, um estorvo de existência mínima e medíocre, estou só querendo desligar os aparelhos e ainda lúcido encarar de frente o último suspiro. E assim poderei lutar em paridade com Deus, antes que a doença tome conta da minha razão, que deteriore o meu corpo, no momento oportuno triunfarei sobre mim mesmo, continuarei a viver, quando ele me olhar nos olhos estou certo que me dirá que nunca viu um oponente tão obstinado...

ELA (Interrompe): Você não sabe o que esta dizendo!

ELE: O que sempre quis e desejei é o mais simples, pena que os homens são hipócritas e não assumem, vejo as pessoas nas ruas rirem e gozarem diante de preces falsas, quero continuar a viver, viver, viver! Apenas isso, sendo eu, sempre eu, apenas eu, eu, eu! (Cansado, ofegante) Não quero que se torne jardineira, que cuide de um vegetal...

ELA (Em um grito surdo): Não diga isso!

ELE (Gritando e chorando, girando a cadeira de rodas no meio da sala, com braços abertos): Viver! Viver! Viver!

ELA: É preciso coragem para seguir a vida nestas circunstâncias! Seja forte!

ELE: Viver! Viver! Viver! Vida, eu preciso de ar... Eu quero ar! Ar!

ELA: Só depende do ponto de vista!

ELE (Pausa): O que precisa entender, é que não existem argumentos racionais, não existe consolo.

ELA: Não estou querendo te consolar, nem te mudar, só diminuir sua dor...

ELE: A minha dor é não poder dividir com você o que sinto, pois, o que sinto é o que sou.

ELA: Não consigo te entender.

ELE: Existem coisas que escapam da realidade sensorial, ou de qualquer racionalidade, e pertencem à outra dimensão, e adquirem uma ação quase metafísica, eu disse quase.

ELA: Você se casou comigo.

ELE: E me divorciei, agora me casei com a morte, será que ela também negocia?

ELA: (Chorando e gritando) Até agora eu te ouvi, agora quero que me ouça. Esta sendo individualista, nenhum dia sequer deixou de pensar em você, não aceita soluções compensatórias, mas o mundo é assim, vê o mundo através do seu e apenas do seu ponto de vista! Agora você perde a razão e a emoção, do combate, ambas saíram derrotadas! Pense em mim! Pense em mim! Seu amor é egoísta! Sempre disse que não queria morrer! Você sempre lutou pela vida! Sempre foi um apaixonado por sua liberdade! Uma liberdade que limita a vida não é liberdade!

(Pausa)

ELE: E uma vida que limita a liberdade não é vida! (CHORA) Eu não quero morrer. Por que Ele me abandou?

ELA: Uma vez me perguntaram qual passagem eu preferia, eu escolhi: Pedro; cap. 1 vers. 5:

“Que, mediante a fé, estais guardados na virtude de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo. Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, sendo necessário, que estejais por um pouco contristados com várias tentações...”

ELE: (Cont.) “...Para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória na revelação de Jesus Cristo”.

ELA: Ele não te abandonou.

ELE: (CHORA)

ELA: A única coisa no caminho para saber que ele esta lá, é o seu medo. Você tem a escolha, a fé ou o medo.

ELE: Escolher a fé não significa que não vou morrer.

ELA: Sua vida esta em suas mãos.

ELE: Porque o abandonou?

ELA (Pausa) Esse teste que você esta passando, eu não agüentei...

ELE: (Ri)

(Silêncio)

(Ele da às costas, e devagar empurra sua cadeira de rodas até o quarto, entra fecha a porta, o mesmo solo de trompete volta a tocar, cessa, após um longo silêncio, ouve-se um estampido).

ELA: (Entra no quarto, vê a cadeira virada pra janela, no chão um bilhete que ele acabará de escrever, ela apanha o bilhete e lê):

Respiro no abismo do silêncio
palavras fortes se fazem necessárias agora
não sei como começaram mas gritam para serem ditas
cansado
caras caretas bundas bucetas faces facetas
eis-me aqui
esqueça desapareça
profecia dada
o que espero
o que quero
não sei se preciso saber
o vazio me parece berço da criação
unção da dor porque não
o entrelaçar de palavras subtraem o que realmente
penso incenso some em fumaça e perfume vaga-lume
luz que emana de um ser tão pequeno pequeno pequeno
associação livre que possibilita ritmo
e
acesso retrocesso possesso fico
quando na cadência do que sinto fico paro estaciono
esqueço desapareço
não tenho pretensão não espero a redenção
certeza que quero não saber o que espero
elo
como traduzir em palavras
fechado na minha própria compreensão
enclausurado trancafiado preso
nem eu me entendo

O corpo envelhece e morre, mas segue dançando com a Energia do Universo. A morte é um novo começo. E quando eu morrer, vou começar de novo dentro do universo, vou continuar tocando.

O início é o fim, o fim é o início. Espero.



Fim









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BIBLIOGRAFIA

A Bíblia Sagrada, trad. João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Royal Bible, 1997.

LEHMANN, Hans-Thies, Teatro Pós-dramático, trad. Pedro Sussekind. São Paulo: Cosacnaify, 2007.

MIGUEL DE UNAMUNO - FILOSOFIA, Página criada e mantida por Jorge Luis Gutiérrez [em linha], http://unamuno.sites.uol.com.br/

PRADO, Décio de Almeida, Apresentação do teatro brasileiro moderno. Critica teatro (1947-1955). São Paulo: Martins Editora S.A., 1956.

UNAMUNO, Miguel de, 3 Novelas exemplares e um prólogo. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.

UNAMUNO, Miguel de, Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ISBN 85-336-0483-1

UNAMUNO, Miguel de, Névoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.











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