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TEMPO, FELICIDADE E HISTÓRIA - PEQUENAS CONSIDERAÇÕES A PARTIR DA 2ª EXTEMPORÂNEA
Ângela Zamora
Mestra em Filosofia (PUCSP). Professora da Universidade Mackenzie.
Resumo: Sem nenhuma pretensão maior, este texto apresenta algumas considerações a partir da 2. Extemporânea que se desdobrarão posteriormente em noções de grande importância no pensamento de Nietzsche, tais como história, niilismo, vontade de potência e senhor/escravo, eterno-retorno, já de alguma maneira presentes neste texto de 1873.
A 2. Extemporânea, Das Utilidades e dos Inconvenientes da História para a Vida, texto da 1. fase de Nietzsche, 1873, traz em si algumas reflexões que se desdobrarão posteriormente em conceitos concebidos em sua maioridade – vontade de potência, o perfil psicológico dos tipos: Senhor e Escravo, e a doutrina do eterno retorno. Outros serão completamente revistos, como o de felicidade.
A partir de algumas considerações nos deteremos apenas na apreensão das noções de tempo e história, o que tanto pode ser aplicada para o indivíduo quanto para uma cultura. Ao lermos este texto, um ponto interessante, logo no início é a comparação entre o homem e o animal, este é feliz, visto que leva uma vida não-histórica.
“Observe-se um rebanho que pasta; ignora o que foi ontem e o que é hoje. Volteia, retouça, repousa, rumina, agita-se de manhã à noite, dia após dia, ligado ao seu prazer e a sua dor, ao impulso do instante, em melancolia nem saciedade. É duro para o homem ver isso, porque se orgulha de sua humanidade quando se compara com o animal, cuja felicidade, entretanto, inveja. Efetivamente, ele deseja viver como o animal, sem saciedade nem dor, mas ao querê-lo não o quer como o animal. ‘Por que é que não me falas de tua felicidade? Por que é que limitas a olhar-me?’ O animal gostaria de responder: ‘É que eu esqueço exatamente aquilo que queria dizer’. Até mesmo esta resposta é afogada no esquecimento e cala-se.É a vez do homem admirar-se” (2.Ext., 105)
O animal é feliz porque vive uma vida não-histórica, é completamente absorvido pelo tempo presente e mostra-se tal como é a cada instante. Neste sentido, não há passado, nem a ansiedade provocada no homem pela expectativa em relação ao futuro. Sua felicidade consiste em estar eternamente no presente. Pelo contrário, para o homem, existe o tempo que se esvai, que escorre como areia pelas suas mãos, o tempo, como na ampulheta é irreversível e quando se esgota a areia, uma nova virada, uma nova incógnita. O tempo é algo que se trança nas tramas e se desdobra em suas tessituras – um tapete tecido cuja configuração é única.
Para o homem é impossível esquecer. No geral, a maioria dos homens está amarrada ao passado, como se só ‘lá trás’ ele pudesse ter contemplado a felicidade, como se só lá no passado a felicidade tivesse sido verdadeira, e não percebe que, o que há de fato é uma idealização deste passado em sua memória, posto que o passado nunca poderá ser revivido da maneira exata de como ele foi. Deste modo, o homem deixa de viver a única coisa que ele tem – o presente, tal idealização implica em sepultar o presente, “asfixiando a felicidade do presente, sucumbido as forças do futuro. O passado assume um peso tão insuportável, se torna um fardo de trevas” (2. Extemp., p.106), pelo fato de não ter aprendido a esquecer.
O grande segredo revela-nos Nietzsche, consiste em “aprender a esquecer a tempo e aprender a lembrar a tempo”, pois é impossível viver sem esquecer. O esquecimento, como ele dirá mais tarde, na Genealogia da Moral, é uma força inibidora ativa, pois a felicidade está atrelada à ação. “Todo ato exige o esquecimento” (2.Extemp. p.107).
“Esquecer não é uma simples vis inertiae (força inercial), como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças á qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar de ‘assimilação psíquica’), do que todo o multiforme processo de nossa nutrição corporal ou ‘assimilação física’. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo como eu disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta; com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulhoso, presente, sem o esquecimento.” (GM, II,1 p.58)
A felicidade só se torna possível com o esquecimento, entretanto só pode ser vivenciada por certo tipo de homem, aquele que tem uma saúde forte, portadores do que ele denomina de ‘força plástica’: “uma faculdade de crescer por si mesmo, de transformar e assimilar o passado e o heterogêneo, de cicatrizar suas feridas, de reparar suas perdas, de reconstruir as formas destruídas.” (2.Extemp., p. 106 )
Não é que o homem deva abolir completamente o passado, mas deve ser capaz de servir-se dele, de apropriar-se e de refazer sua história. É com o “passado que o homem se torna homem” (2. Extemp., p 108 ). Saber apropriar-se de largas porções do passado é ser dono de sua própria história. Ao reinterpretar este passado, o homem de força plástica consegue “abolir o sentido histórico quando se torna opressivo e prejudicial.” (2. Extemp. p107.). Em outros termos, trata-se, na verdade, de ver ou não as coisas historicamente – há momentos que faz-se necessário prescindir da história tanto para viver o presente quanto para agir, mas há algo que deve ser retido em nossa memória, para que nos avise, nos faça lembrar de perigos e de momentos que se configuram de modo semelhante em nossa vida.
“A esfera vaporosa da não-história” (2. Extemp., p.108) é propícia á felicidade, pois ela nos eleva a um outro patamar, a um fora-da-história, acima do tempo. “Imagine-se um homem impressionado, arrastado por uma paixão violenta, por uma mulher ou por um ideal grandioso: todo o seu mundo se transforma. Se olha para trás, sente-se cego, se afina os ouvidos, só ouve ruídos sem significado; o que ele vê nunca lhe pareceu tão verdadeiro, tão próximo, tão colorido, tão luminoso, como se o abarcasse simultaneamente com todos os sentidos. Todos os seus juízos de valor mudaram e se desvalorizaram; há tantas coisas que ele já não as pode avaliar porque é a custo que ele as sente.” (2.Extemp. p108.)
Felicidade é poder estar fora-da-história: “O homem que é incapaz de se sentar no limiar do instante, esquecendo todos os acontecimentos passados, aquele que não pode sem vertigem e sem medo pôr-se de pé um instante, como uma vitória, jamais saberá o que é felicidade e, o que é pior, nunca fará nada para dar felicidade aos outros.” (2. Extemp. p. 107). Tal estado de espírito é o menos razoável do mundo – “limitado, injusto para com o passado, cego a todos os perigos, surdo a todas às advertências” (2. Extemp. p. 111). O homem de ação, apaixonado e feliz não mede riscos, e é nessa atmosfera não-histórica que nasceram todos os grandes acontecimentos. O homem de ação “só olha para trás para ‘tomar um novo fôlego” (2. Extemp. p118). Sua atitude é sempre um “antídoto contra a resignação” (2. Extemp.p.118). Para ele, a vida é mais bela na medida em que não se apega demasiadamente à nada e assim vive intensamente. Os gregos são um bom exemplo disto – homens de ação, viveram de modo não-histórico. Com eles, o alargamento e o embelezamento da noção de homem.
Na verdade, esta é uma grande preocupação de Nietzsche que perpassará todo o seu pensamento – de que o homem, numa vida gregária, e totalmente histórica e se torne niilista e degenere o tipo. Em especial, observa na modernidade este fenômeno: o afogamento contínuo do caráter intempestivo e imprevisível do homem, tornando-o um ser manipulável, medíocre e insosso, acomodado pela promoção de ideais niveladores e igualitários, onde o repouso toma o lugar da ação, onde o conforto e bem-estar e ausência de sofrimento e grandeza, são sinônimos de felicidade, de modo que pouco resta a admirar. A proliferação deste tipo psicológico (do escravo) e seu posterior coroamento de dará na figura do ‘último-homem’ – incapaz de amar e de agir, completamente despreocupado com o mundo, porém bem informado, sua vontade não é forte o suficiente para agir – um nada de vontade, prefere a comodidade do sofá e dos prazeres imediatos, geralmente voltados para o consumo.
“Ao guardar temor e se manter em guarda contra a besta loura que há no fundo de toda raça nobre: mas quem não preferiria mil vezes temer, podendo ao mesmo tempo admirar do que não temer, mas não mais poder livrar-se da visão asquerosa dos mal-logrados, atrofiados, amargurados e envenenados? E não é esse nosso destino? O que constitui hoje nossa aversão ao ‘homem’? – pois nós sofremos do homem, não há dúvida – não o temor; mas sim que não tenhamos mais o que temer no homem; que o verme ‘homem’ ocupe o primeiro plano e se multiplique; que o ‘homem manso’, o incuravelmente medíocre e insosso, já ‘tenha aprendido a se perceber como apogeu e meta – que tenha mesmo um certo direito a se sentir assim, na medida em que se perceba a distância do sem número de mal-logrados, doentios, exaustos, consumidos, de que hoje a Europa começa a feder, portanto, como algo ao menos relativamente logrado, ao menos capaz de vida, ao menos afirmador da vida.” (GM, I, 11 p. 41)
Ora, precisa-se da história, pois se a grandeza que já foi possível uma vez poderá voltar no futuro? Ou, o homem está condenado a ser arrastado inexoravelmente pelos valores da modernidade?
Tais questionamentos culminarão, mais tarde, nas concepções sobre o eterno retorno e sobre o niilismo, porém ainda neste texto, deixa já entrever algumas respostas. Para Nietzsche, é imprescindível que deixemos um espaço vazio no presente, como pleno de possibilidades de futuro. “A vida tem necessidade de ser servida pela arte histórica, porque ela é própria do ser vivo”, com o auxílio dos estudos históricos é que podemos apreender o que é a vida – com estes aprendemos a organizar o caos, suportamos as vicissitudes da fortuna. É preciso um certo conhecimento do passado sob a forma de história – o passado deve servir de matéria-prima, a serviço do futuro e do presente. O saber deve estar a favor da vida. A educação deve permitir que o homem “aprenda antes de mais nada viver e só utilizar a história se ele estiver á serviço da vida.” (2. Extemp., p.195 ), de modo que liberemos novamente as forças plásticas da vida. Para tanto, necessitamos da história para a vida e para a ação, pois “o ensino que não vivifica, o saber que amolece a atividade, a história como luxo deve ser abominada.” (2. Extemp., p.103)
Assim, Nietzsche apresenta três tipos de história – a monumental, a tradicional e a crítica que devem ser empregadas de acordo com a necessidade. A primeira vê no passado algo digno de imitação e acredita que ele pode repetir-se, pois “se a grandeza já foi possível uma vez, deve voltar a vir a ser no futuro”, entretanto, nada é garantido, a menos que os pitagóricos tenham razão – se a configuração dos astros se repetisse, necessariamente os acontecimentos se repetiriam na terra, inclusive nos seus pormenores. Desta forma, também as catástrofes voltariam a acontecer em intervalos regulares, enfim, tudo voltaria a acontecer até o mais vil, uma maldição infindável, pois quem seria capaz de suportar tal repetição? A idéia de olhar para a história desta maneira, pode levar o homem ao niilismo, isto implicaria que, ao traçarmos tal paralelo, “continuaríamos a unir o que repelimos”, de modo que, todas as possibilidades de ação e de futuro estariam desde já interrompidas no homem. Nada valeria a pena, se tudo volta!
O segundo problema seria o de tecermos uma consideração enganosa em relação ao passado, embelezando alguns fatos e desprezando ou esquecendo setores inteiros. Além do mais, a história monumental deprecia o presente, alterando seu sentido.
A história tradicional, por sua vez, pretende conservar e venerar o passado, aninhando-se nele, o indivíduo se abriga observando o gênio familiar da sua casa. Ressalta a fixidez dos costumes e dos hábitos, sendo proveitosa à comunidade. Tal história sabe conservar a vida, mas pode tornar-se um grande perigo à medida que pode “mumificar o espírito”, mitigando as forças produtivas do presente. Sua avidez pelo passado não alarga os horizontes para o poder-ser, mas regala-se com as minúcias bibliográficas.
A história crítica pretende libertar-se do passado, posto que sofre dele. Ela precisa quebrar e dissolver um fragmento do passado para sobreviver. Sua crítica volta-se para o antigo. “Todo passado merece condenação porque, como acontece com todas as coisas humanas, neles se misturam a força e a fraqueza do homem.” (2. Extemp. p.129). Ao condenar o passado e o erro das gerações precedentes, crê-se isenta, entretanto, “isto não impede nossa origem neles”. (2. Extemp., p.129).
A história ao se pretender ciência, ou seja, ao pretender-se objetiva e neutra, pode provocar grandes perigos para a vida: desenraizar o futuro, destruir as ilusões e privar as coisas presentes de uma atmosfera indispensável á vida. Instituiu-se como uma teologia camuflada – uma visão teleológica, como se na história houvesse um fio condutor, linear, contínuo e inexorável. “Compete à história resolver o problema da história, o saber deve voltar seu aguilhão contra si próprio.” (2.Extemp. p. 175). Para Nietzsche, é necessário se desvencilhar de toda história onde “passado e presente são a mesma coisa, apesar da sua diversidade, conservam uma unidade profunda de um mesmo tipo e realizam a onipresença de tipos indestrutíveis, apresentando uma estrutura estável de valor invariável e de significação sempre idêntica” (2. Extemp., p.113), como se a vida fosse apenas dor e aborrecimento, uma concepção triste de história que diz: ‘é assim’.
Contra esta deve se levantar uma concepção que é avessa a resignação provocada pelo historicismo – da história como ciência – linear e teleológica que ao invés de afirmar –‘é assim!’, tem o poder de transformar seu curso em “eu quis assim e assim hei de querê-lo.” Só posteriormente, quase 10 anos, o autor evidenciará o segredo para quebrar a maldição do eterno retorno de todas as coisas, do niilismo, é a contemplação de que o eterno retorno é seletivo, não há eterno retorno do negativo, só deve retornar aquilo que afirma e é afirmado na vida. O devir traz em si as qualidades do jogo e da inocência, como uma boa vinda do acaso. Em relação à conduta, o homem deve agir como se todas as suas ações devessem se repetir eternamente, dando à sua própria existência uma bela forma. Assim também, um antídoto contra o historicismo é o não-historicismo que “refere-se à arte e o poder de esquecer”. (2.Extemp., p.201). Todo conhecimento deve servir à vida, não para mera erudição, para provocar inveja aos demais, também não para sufocar o presente, mas para valorizá-lo em sua intensidade. Conhecer história é poder perceber as configurações de forças que a vida já nos ofereceu uma vez, isto vale não só para a história pessoal, mas para os povos: serve de alerta, nos ajuda a nos prevenir contra as vicissitudes da fortuna, de modo a não sermos arrastados pelo fluxo indomável dos acontecimentos, nos fortalece. Entretanto, também é necessário que nos esqueçamos momentaneamente da história, é preciso esquecer – certas mágoas e acontecimentos, é preciso esquecer para nos livrarmos do pior dos males – o ressentimento, que nos aprisiona e ancora nosso coração, impelindo-nos ao fundo, um anão que nos impede de ver a beleza da vida, de dançar e de cantar. Ora, neste caso, já nos adverte Nietzsche logo no início do texto, trata-se de saber a hora exata de esquecer e a hora exata para lembrar, é uma questão de saúde, é uma questão de Vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NIETZSCHE. 2. Extemporânea. Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida. Editorial Presença, Porto, Col. Síntese, 1976.
NIETZSCHE. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1988
APRESENTAÇÂO DE ÂNGELA ZAMORA
A coordenação do Curso de Filosofia do Mackenzie e todos os seus professores sentem-se felizes por ocasião desta edição da
Revista Pandora Brasil, a Nº 15, pois seu Conteúdo é uma série de artigos escritos pela Professora Ângela Zamora, especialista na filosofia Nietzscheniana. Cuja competência, profissionalismo e dedicação à filosofia e seus alunos e colegas é imensurável.
É por isso que o Centro de Ciências e Humanidades e o Departamento de Filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie sentem-se felizes e honrados com essa publicação, pois não se trata apenas de mais uma na área de filosofia, é a publicação de uma amiga, que é como consideramos a Ângela. A alegria de compartilhar com todos este feito, que é resultado de anos de trabalho e pesquisa com todas as dificuldades e intempéries do dia-a-dia, mas com a glória e o coroamento da vitória.
Apresentar a Ângela como professora, filósofa, pesquisadora e escritora, é algo meramente formal e protocolar, pois para nós é a amiga, a companheira, aquela que com muito sacrifício e muita luta soube como poucos ter a sabedoria e a paciência para mudar os rumos dos ventos e a sobrepujar as situações consideradas por muitos como intransponíveis e por isso, hoje podemos atribuir a querida professora todos àqueles adjetivos.
Atualmente Ângela Zamora é professora do Curso de Filosofia da Universidade Mackenzie e uma persistente pesquisadora da obra de Nietzsche.
Um abraço
Marcelo Martins Bueno
Doutor em Filosofia (PUC-SP)
Coordenador do Curso de Filosofia - Mackenzie
Vice-Diretor do Centro de Ciênciase Humanidades (CCH) - Mackenzie
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