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TRADUÇÃO:
SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA:
SOBRE A UTILIDADE E OS INCONVENIENTES DA HISTÓRIA PARA A VIDA.
Ângela Zamora Cilento
Fransmar Costa Lima
Resumo: Ousamos traduzir o prefácio e os dois primeiros dos dez capítulos da 2. extemporânea (1873). Gostaríamos de advertir que esta tradução encontra-se passível de mudanças, entretanto não poderíamos nos furtar ao sabor do momento. Convidamos o leitor a ler o texto na íntegra.
PREFÁCIO
Outrossim, detesto tudo aquilo que unicamente me instrui, sem acrescentar ou vivificar de imediato minha atividade” Estas são palavras de Goethe que, como um Ceterum censeo , cordialmente expresso, devem servir de introdução a nossa meditação sobre o valor e o não-valor da História. Nela trataremos de expor porque o ensino que não estimula, porque a ciência que paralisa a vivificação, porque a história, enquanto preciosidade supérflua do conhecimento e artigo de luxo, hão de nos resultar detestáveis conforme a expressão de Goethe – precisamente porque nos falta o que há de mais necessário, e o supérfluo é inimigo do necessário. É certo que temos necessidade da história, mas a temos de uma maneira diferente do ocioso requinte que passeia pelos jardins da ciência, por mais que este olhe com altivo desdém para nossas rudes e simplórias necessidades. Quero dizer que dela temos necessidade para a vida e a ação; não para nos apartarmos comodamente da vida e da ação , nem muito menos para encobrir a vida egoísta e a ação vil e covarde. Valer-nos-emos da história tão somente a serviço da vida, mas o abuso e sua supervalorização provocam a degeneração e o atrofiamento da vida: fenômeno do qual, segundo os sintomas particulares de nosso tempo, é preciso cogitar, por mais que nos seja doloroso.
Tenho me esforçado por descrever aqui uma sensação que, com freqüência tem me atormentado: vingo-me dela oferecendo-a ao público. Pode acontecer que algum leitor, por minha descrição, sinta-se impulsionado a declarar que também ele prova de tal sentimento, sendo que talvez eu não o tenha sentido de uma maneira suficientemente pura e original, e não o tenha expressado com a devida segurança e maturidade oferecida pela experiência. Assim pode pensar um ou outro mas, a maioria de meus leitores dirão que meu sentimento é absolutamente falso, antinatural, abominável, e ilícito e que, ao manifestá-lo, mostro-me indigno da poderosa corrente historicista que, sem nada ignorar, têm se desenvolvido nas duas últimas gerações, sobretudo na Alemanha.
Seja como for, me atrevo a expor meu sentimento em sua forma natural, este promove mais bem do que dano ao interesse geral pois, com ele dou a muitos a oportunidade de enaltecer este movimento de nossa época que acabo de mencionar. De minha parte, ganho algo que, em meu entender, é mais importante do que estas conveniências - ser publicamente instruído e esclarecido sobre o que penso acerca de nossa época.
Intempestiva é também esta consideração, uma vez que trato de interpretar como um mal, uma enfermidade, um defeito, uma carência, algo que nossa época, com razão se orgulha: sua cultura histórica, pois, creio que todos nós sofremos de uma febre histórica devoradora e, ao menos, deveríamos reconhecer que assim é. Goethe havia dito acertadamente que, cultivando nossas virtudes, também cultivamos nossos vícios e, como há de se notar, uma virtude hipertrofiada – e o sentido histórico de nosso tempo me parece ser uma – podendo provocar a ruína de um povo da mesma maneira que lhe pode causar um vício hipertrofiado, que me seja permitido falar ao menos uma vez!
Para meu desencargo, direi, e não nego, que tais experiências desses sentimentos torturantes tem suscitado em mim e extraído sempre de mim mesmo, unicamente para
fins comparativos, tenho me servido de experiência alheias e que, somente enquanto aprendiz da antiguidade, especialmente da grega, apesar de me sentir filho do tempo presente, tenho chegado, como no tempo atual às experiências que chamo intempestivas. Concedo a mim mesmo tal direito pela profissão de filólogo clássico pois, eu não saberia qual sentido teria a filologia clássica em nosso tempo, senão o de atuar de maneira intempestiva, a bem dizer, contra este tempo e por isso mesmo, sobre o tempo e em favor de um tempo que há de vir.
CAPÍTULO 1
Observe o rebanho que pasta, de nada ele sabe, nem o que foi ontem e o que é hoje. Salta de um lado para o outro, come, descansa, rumina, salta de novo e assim de manhã à noite, dia após dia, ligado ao seu prazer e sua dor, ao impulso do instante, sem melancolia nem saciedade. É duro para o homem compreender isto – pois se orgulha de sua condição humana frente aos animais, entretanto inveja tal felicidade. Efetivamente ele deseja viver como o animal sem saciedade nem dor, mas ao querê-lo não o quer como o animal. “Por que não me falas de tua felicidade e te limitas a olhar-me?” (Warum redest du mir nicht von deinem Glücke und siehst mir nur an?) O animal gostaria de responder – “É que eu esqueço exatamente aquilo que queria dizer.” Até mesmo esta resposta é afogada no esquecimento e se cala, de modo que o homem se assombra.
Mas o homem também se admira de si mesmo pelo fato de não aprender a esquecer e estar sempre atrelado ao passado. Por mais longe que vá, por mais depressa que corra, suas algemas correm com ele. É um verdadeiro prodígio: o instante de repente está aqui, de repente desaparece. Surge do nada e em nada se desvanece. Retorna, como um fantasma, para perturbar a paz de um momento posterior. Continuamente, como uma página que se destaca do ‘livro’ do tempo, cai, flutuando e reaparece e pousa nos ombros do homem.
Então diz o homem: “Me lembro” e inveja o animal que imediatamente esquece e vê cada instante morrer verdadeiramente, fundindo-se de novo na névoa e na noite perdidas para sempre. É que o animal vive uma vida não-histórica: porque se absorve completamente no momento presente, ele reduz o tempo, semelhante a um número-primo que não deixa nenhum resto atrás de si, não sabe dissimular, não oculta nada e se mostra em cada momento exatamente como é, sincero. O homem, ao contrário, defende-se do peso cada vez maior do seu passado, carga que o abate e dobra suas costas, dificulta a sua marcha, num invisível e obscuro fardo, que ele pode negar algumas vezes, no contato com seus semelhantes para despertar sua inveja.
É por isso que ele se comove, como se se recordasse do paraíso perdido se admira ao ver um rebanho no pasto, ou num círculo mais familiar, uma criança que não lembra de nada do passado e que não o nega e que em sua feliz cegueira se concentra em suas brincadeiras entre as valas do passado e do futuro.E que, contudo, não poderá assim ficar para sempre, um dia esse jogo será interrompido.
Em seguida, apreenderá a palavra ‘foi’, uma palavra poente com que tem acesso como homem - luta, dor e desgosto, para recordá-lo de que sua existência é fundamentalmente uma imperfeição que nunca há de completar-se. Nada mais que imperfeição. Como presente final, a morte traz o esquecimento desejado, ela suprime o presente e a existência, põe o selo definitivo sobre esta verdade, que ser não passa de um ter sido, algo que vive de negar-se, destruir-se e contradizer-se a si mesmo.
Se felicidade é ir em busca de uma nova felicidade, em qualquer sentido que seja, é o que sustenta o vivente e o impulsiona a viver, possivelmente nenhum filósofo tem mais razão que o cínico, visto que a felicidade do animal, esse perfeito cínico, é a prova viva do cinismo.
Uma pequena felicidade ininterrupta e nos faz felizes é completamente maior que a máxima felicidade que se dá em um episódio, como uma espécie de capricho, como uma insensata ocorrência em meio ao puro descontentamento, ansiedades e privações. Tanto é o caso da ínfima como a máxima felicidade, há sempre um elemento que faz com que a felicidade seja uma felicidade – a capacidade de esquecer, ou para me expressar em termos mais eruditos, a capacidade de nos sentirmos fora-da-história. Quem não é capaz de repousar, esquecendo todo o passado no umbral do momento, quem não pode por-se de pé um instante, sem vertigem e nem temor como uma deusa da vitória, não saberá que coisa é a felicidade e o pior ainda, não fará nada para dar felicidade aos outros.
Imaginemos um caso extremo de um homem que é incapaz de esquecer e que fosse condenado a ver em tudo um devir; um homem semelhante não veria em sua própria existência, não creria em si, veria tudo dissolver-se em uma multiplicidade de pontos móveis, se perderia a mercê do devir. Como verdade elevada de Heráclito ele não levantaria sequer um dedo. Toda ação exige o esquecimento, como todo organismo necessita, não somente de luz, mas de obscuridade. Um homem que quisesse se sentir tão somente de modo histórico seria semelhante a aquele que se vê obrigado a prescindir do sonho ou o animal que será condenado a ruminar sem cessar os mesmos alimentos.
É pois, possível viver contente, a exemplo do animal, quase sem recordar, mas é impossível absolutamente viver sem esquecer. Se devo me exprimir sobre o tema de um modo ainda mais sensato: há um grau de insônia, de ruminação, de senso histórico que obscurece o ser vivo e finalmente acaba por sucumbir, quer se trate de um homem, um povo ou de uma cultura.
Para definir o grau deste estágio, deve-se fixar o limite do passado que se deve esquecer, para que não se converta em sepulcro o presente, é necessário saber com exatidão quanto há de força plástica em um indivíduo, um povo, uma cultura. Me refiro a esta força de crescer por si mesma, de uma força que lhe é própria, de transformar e incorporar as coisas do passado, e o heterogêneo, de gerir e de cicatrizar as feridas, de recolocar o que foi perdido, de refazer por si mesmo as formas quebradas.
Há homens que possuem um grau tão escasso desta força que só uma experiência, uma só dor, até mesmo uma só ligeira injustiça é irremediavelmente perigosa, como se todo o seu sangue se esvaísse por uma pequena arranhadura. Há, de outra parte, aqueles que são tão invulneráveis que os acidentes mais selvagens e as mais horríveis desgraças da vida e mesmo atos de sua própria maldade são como doses pequenas em meio as crises mais violentas, ou logo após esta, reencontram um bem-estar e uma espécie de consciência tranqüila. Quanto mais forte for a natureza interior de um homem, mais ele se apropriará de parcelas do passado. Podemos imaginar a natureza mais potente e sua força formidável se reconheceria naquele que tivesse abolido o limite para além do qual o sentido histórico se tornasse atuante de forma opressiva ou parasitária. Esta natureza atrairia para si todo o passado o seu próprio e dos outros, ele os absorveria e o converteria em seu próprio sangue. Uma natureza assim sabe esquecer aquilo que não pode dominar, isto não existe para ela, o horizonte está fechado e completo, nada guarda daquele horizonte de homens, de paixões, de doutrinas, e objetivos. Se trata de uma lei universal - todo aquele vivente não pode tornar-se são e fecundo senão dentro de um certo horizonte, ao passo que se o organismo for incapaz de delimitar o círculo do seu horizonte, e por outro lado, por ser egocêntrico, o impedir de subordinar seu olhar ao de outrem, morreria por languidez ou por pressa excessiva.
A serenidade, a boa consciência, o gozo, a confiança no porvir – tudo isso depende, tanto em um individuo como um povo, da existência uma linha que separa o que está ao alcance da vista e é claro, de um lado e do outro, do que é obscuro e inescrutável. Trata-se de saber esquecer a tempo como de saber recordar a tempo - é imprescindível que um instinto vigoroso nos avise sobre quando é necessário ver as coisas historicamente e quando não é necessário. É aqui a tese de que o leitor está convidado a considerar – o histórico e o ahistórico são igualmente necessários para a saúde, de indivíduos, povos e culturas.
Aqui se poderá fazer uma observação – os conhecimentos e sentimentos históricos de um homem podem ser muito limitados, seu horizonte estreito como um habitante de um vale dos Alpes, em cada juízo pode cometer uma injustiça, de cada experiência pode pensar erroneamente que é o primeiro a tê-la – e apesar de todas as injustiças e de todos os erros se mantém com insuperável saúde e vigor que todos sentirão gosto em admirá-lo, enquanto que ao seu lado, aquele que é muito justo e instruído é fraco e se arruína, pois as linhas de seu horizonte são instáveis e se detém sempre de novo, de modo inquietante, porque é apanhado na teia sutil de suas malhas, justiças e verdades, pois são adornadas de uma vontade e de aspirações brutais. Ao contrário, o animal totalmente desprovido de sentido histórico se desenvolve de um horizonte limitado a quase um ponto, e, portanto, numa relativa felicidade, ao menos ignora seu tédio e sua necessidade de simular. A faculdade de esquecer, até certo ponto, a dimensão não-histórica das coisas como a faculdade mais profunda, primordial de todas as faculdades, porque nela reside o fundamento sobre o qual pode crescer o justo, o são, grande e verdadeiramente humano. A ausência de sentido histórico é semelhante à uma esfera protetora, unicamente dentro da qual pode germinar a vida e se esta atmosfera desaparece, a vida se extingue.
É verdade: tão só quando o homem pensando, comparando, separando e reunindo, restringe esse elemento não-histórico como uma névoa densa que se desenvolve, surge um raio claro e luminoso e resplandecente; quando é suficientemente forte para utilizar o passado em benefício da vida e transformar acontecimentos antigos em história presente, chega o homem a ser homem. Mas um excesso de história aniquila o homem e sem este traço ahistórico jamais houvesse começado, nem se atrevesse a começar. Que feitos houvesse sido capaz de realizar sem antes haver penetrado nessa bruma ahistórica?
Mas abandonemos as imagens e ilustremos nossa demonstração com um exemplo. Imaginemos um homem que abalado e tomado por uma paixão violenta por uma mulher ou por uma grande idéia. Como o mundo se transforma para ele! Mirando o passado se sente como cego e passa olhando ao seu redor, se afina os ouvidos só ouve sons vagos e carentes de sentido, mas que agora percebe e não tinha reparado antes nesta vivência com tanta intensidade, como uma verdade, assim colorida e iluminada como se o abarcasse simultaneamente com todos os sentidos de uma vez. Todas suas evoluções estão para serem trocadas e privadas de valor. E há tantas coisas que pode valorar porque só ele as sente, porque demandou tanto tempo em palavras estranhas e se pergunta se não terá sido enganado por frases alheias e opiniões estranhas então sua memória se torna infatigável acerca do mesmo círculo e, todavia se sente muito débil e esgotado para dar um grande salto, para sair dele.
Esta condição é mais insensata do que ele poderia imaginar, está restrito, ingrato com o passado, cego aos perigos, surdo às advertências, um pequeno torvelinho de vida em meio a um oceano congelado de noite e de esquecimento. E, não obstante, este estado ahistórico, absolutamente anti-histórico, numa primeira visão, é não só a matriz de uma ação injusta, se não também, mas sobretudo de toda ação justa, nenhum artista realizará sua obra, nenhum general conseguirá vitória, nenhum povo alcançará sua liberdade, sem antes se terem anelado e pretendido um estado ahistórico como o descrito.
Como homem de ação, na expressão de Goethe atua sem consciência e desprovido de ciência, esquece a maior parte das coisas para realizar apenas uma. É injusto com tudo o que o precede e não reconhece mais que um direito, o direito que ele fez nascer. Assim todo homem de ação ama infinitamente mais sua obra do que ela merece ser amada e seus melhores empreendimentos se realizam sempre de um transbordamento de amor que nelas são certamente indignas, mas tem valor incalculável.
Se alguém não for capaz de se colocar nesta atmosfera não-histórica, de farejar e compreender um grande número de eventos históricos (Geschichtliche) dentro do qual nasceriam todos os acontecimentos históricos poderia talvez, enquanto sujeito do conhecimento, elevar-se a um ponto de vista suprahistórico, tal como Niebuhr descreveu, como possíveis resultados da reflexão histórica.
“A história, diz Niebuhr, compreende uma força clara e detalhada, é certo uma coisa, é que os espíritos mais elevados de nossa espécie humana ignoram de que forma fortuita seus olhos assumiram uma estrutura particular que determina sua visão e que á força impõem aos demais, com violência, porque a intensidade de sua consciência é extremamente viva. Quem não se certificou deste fato com grande precisão e em muitos casos cairá subjugado pela imagem de um poderoso espírito que traga a maior paixão numa forma determinada.”
Poderia designar esse ponto de vista de suprahistórico, porque quem nele se colocasse não sentiria qualquer desejo de continuar a viver e participar da história, por ter visto a cegueira e a injustiça do homem de ação mas ele mesmo se sentiria curado da tentação de tomar o futuro da história demasiado a sério, haverá aprendido a encontrar em todas as partes, em cada homem, de cada acontecimento, como os gregos ou turcos, numa hora qualquer do século I ou XIX, são atingidos pela questão de saber quem são e porque vivem.
Se alguém pergunta aos seus amigos se quereriam reviver os últimos dez ou vinte anos, encontrará facilmente aqueles que estão predispostos e este ponto de vista suprahistórico – com segurança, todos responderão – não, mas este não será motivado por diferentes razões. Alguns, talvez se consolarão com “mas os próximos vinte anos serão melhores”. São aqueles de quem diz David Hume, com bastante ironia: “And from the dregs of life hope to receive, what the first sprightly running could not give.” (HUME)
A esses chamemo-los de homens históricos. O espetáculo do passado os impele para o futuro, inflama a sua coragem para viver, ascende a esperança de que a justiça virá, que a felicidade os espera do outro lado da montanha para onde dirigem seus passos.Estes homens históricos crêem que o sentido da existência se desvelará no curso do processo e por isso tão só olham para trás para a luz do caminho percorrido para melhor compreender o presente e desejar mais ardentemente o futuro. Não tem idéia de que, apesar de todo o seu saber histórico de fato pensam e atuam de maneira não histórica e que mesmo a sua atividade como historiadores está a serviço, não do puro conhecimento,mas da vida. Entretanto esta pergunta cuja resposta temos escutado pode ser respondida de modo distinto. Será também um não, mas um não diferentemente motivado:o não do homem suprahistórico que não vê salvação no processo e para o qual, ao contrário, o mundo está completo e atinge a cada instante o seu objetivo.Que poderiam nos ensinar a mais os dez anos do futuro que os dez anos passados não teriam conseguido nos ensinar?
Os homens suprahistóricos não poderiam jamais pôr-se de acordo sobre o sentido (ou o conhecimento) deste ensinamento: é a felicidade ou a resignação, a virtude ou a penitência, frente a todos os modos históricos de considerar o passado, chegam unânimes a mesma conclusão: o passado e o presente são uma só e mesma coisa, dentro da variedade de suas manifestações, são tipicamente iguais e como tipos invariáveis e onipresentes, constituem uma estrutura imóvel, um valor estável de uma significação sempre igual. Do mesmo modo que centenas de línguas diferentes correspondem às mesmas necessidades típicas e determinadas do homem, de sorte que se, se compreendessem estas necessidades não aprenderia nada de novo através do conhecimento de diversas línguas; assim o pensador suprahistórico projeta uma luz do interior sobre toda a história dos povos e dos indivíduos, adivinha por premonição o sentido original desses diferentes hieróglifos, evitando até mesmo com fadiga a interminável torrente de novos signos.
Como com efeito, ante a abundância infinita de acontecimentos, não chega à saciedade, à sobresaturação e até mesmo o desgosto? Afinal, os mais audaciosos estão preparados para dizer, como Giacomo Leopardi: “Não há nada que seja digno de teus impulsos, a terra não merece suspiro algum, a nossa vida neste mundo é dor e aborrecimento, o mundo é lama e nada mais. Acalma-te.”
Mas deixemos os homens supra-históricos ao seu desgosto e sabedoria. Por hoje, ao contrário, nos alegremos de todo coração de nossa falta de sabedoria e concedamos a nós mesmos um pouco de tempo como verdadeiros homens de ação e de progresso, adoradores da evolução. Talvez respeitar o desenvolvimento histórico não passa mais do que um prejuízo acidental. Não importa, ao menos, sigamos dando passos em busca do progresso e não fiquemos parados no âmbito destes prejuízos. Com isso, aprendamos que é sempre melhor cultivar a história para servir à vida. Concedamos, pois, de bom grado aos homens surprahistóricos que possuem mais sabedoria que os outros; sempre que estamos seguros de possuir mais vida que eles, nossa ignorância terá em todo caso, mais futuro que a sabedoria deles. E para que não haja dúvidas quanto ao sentido da oposição vida e sabedoria, vou trazer á pauta um processo já muito experimentado: desde a antiguidade e proponho, sem mais rodeios, algumas teses.
Um fenômeno histórico pura e completamente conhecido, reduzido a um fenômeno cognoscível é morto para quem o estuda, porque reconheceu ali a ilusão, a injustiça, a paixão cega, e em geral, todo o horizonte obscuro e terrestre deste fenômeno e precisamente sua potência histórica. (Geschichtlich). E esta potência agora, para aquele que conheceu, torna-se sem força, mas que talvez não para quem está vivo.
A história encarada como uma ciência pura e dominadora arrastaria a humanidade a uma espécie de conclusão e ajuste de contas da existência. A cultura histórica é algo saudável e carregado de futuro tão somente a serviço de uma nova e potente corrente de vida, de uma civilização nascente, por exemplo, quando está dominada por uma força superior, em vez de querer dominar e dirigir pó si própria. Na medida em que está a serviço da vida, a história serve a um poder não-histórico e, por esta razão, este estado de subordinação, não pode nem deve converter-se em ciência pura, como por exemplo, as matemáticas. Resta saber até que ponto a vida tem necessidade dos serviços da história, esta é uma das perguntas e das preocupações mais graves concernentes à saúde de um individuo, de um povo, de uma cultura. Quando há um predomínio excessivo de história, a vida se desmorona e degenera e nisto arrasta também a própria história.
CAPÍTULO 2
Que a vida tem necessidade de ser servida pela história, deve ser compreendida claramente como a tese, que mais tarde de demonstrará, segundo a qual, um excesso de história é prejudicial ao ser vivo. A história é própria ao ser vivo por três razões: na medida em que um ser vivo é ativo e persegue um objetivo, na medida em que preserva e venera um feito, na medida em que sofre e tem necessidade de uma libertação. A estas três razões é possível distingui-las: história monumental, tradicional e crítica.
A história interessa, sobretudo, ao homem de ação, ao poderoso que trava um grande luta e tem necessidade de modelos, de mestres, de consoladores, que não consegue encontrar à sua volta nem na época presente. Tal é o caso de Schiller. Nosso tempo é tão miserável, dizia Goethe, que o poeta não pode encontrar entre os que o rodeiam os caracteres que poderia vir a utilizar na sua obra. Políbio, por exemplo, tendo em mente o homem de ação, dizia que o estudo de história política constitui como sendo a mais adequada preparação para o governo do Estado e é a melhor mestra pois, ao recordarmos os infortúnios dos outros, nos adverte a suportar com maior firmeza as vicissitudes da fortuna.
Depois de se ter reconhecido que é esse o sentido da história, não é possível ver sem pena os viajantes curiosos e micrologistas meticulosos examinar as enormes pirâmides de épocas passadas. É ali que ele descobre incentivos para imitar ou superar os modelos, não deseja se encontrar ocioso que, ávido de distração e de sensações, perambula nestes lugares como através de tesouros acumulados em uma galeria de pintura.
Para não desfalecer ou sucumbir de desgosto, entre os ociosos débeis e sem esperança ou entre companheiros que querem parecer ativos quando são apenas agitados e gesticulantes, o homem de ação olha para trás e interrompe sua marcha, por momentos, para tomar fôlego. Mas seu alvo é sempre uma felicidade, não necessariamente a sua, mas a de um povo ou da humanidade inteira. Foge à resignação e utiliza a história como remédio contra ela. Não tem, geralmente, nenhuma perspectiva de recompensa e não pode esperar mais do que a glória, isto é, com a expectativa de um lugar de honra no templo da história, onde, por sua vez, poderá servir de mestre, consolador ou de advertência para a posteridade. Por que deposita suas fichas nisto: o que uma vez foi capaz de engrandecer o conceito de ‘homem’ e embelezá-lo deve permanecer eternamente presente, a fim de ser capaz de realizar-se eternamente. Crer que os grandes momentos de luta entre os indivíduos formam uma cadeia, que eles unem a humanidade através dos milênios, como uma cordilheira, que para mim, o cume de um certo momento há tanto tempo já passado, segue todavia, vivo, luminoso e grandioso – é a idéia fundamental da crença na humanidade que encontra sua expressão na exigência de uma história monumental. Mas é precisamente esta exigência, de que o que é grande deve ser eterno, que suscita a mais terrível das lutas, pois tudo aquele que vive demais grita – Não! O monumental não deve existir - eis o lema que se opõe.
A apatia rotineira, a mesquinhez e a baixeza, que enchem todo o rincão do mundo, que se condensa como uma pesada e densa atmosfera terrestre se interpõe na rota, como um nevoeiro de impedimentos e enganos, para dificultar, desviar e asfixiar o caminho que o grande tem que percorrer para chegar à imortalidade. Mas esta rota passa pelos cérebros humanos, por cérebros de animais angustiados e efêmeros que se encontram sempre de novo frente ás mesmas necessidades e que tão somente com muito esforço retardam seu fim. Só querem uma coisa: viver a qualquer preço. E, contudo, quem poderia associá-los a esta difícil corrida olímpica que é a história monumental cujo solo grandioso se perpetua? Há, contudo, quem se sinta fortalecido e cheio de entusiasmo, ao contemplar a grandeza do passado, como se a vida humana fosse algo maravilhoso e como se o mais belo fruto desta planta amarga fosse saber que uma vez, no passado, um homem atravessou a vida com orgulho e fortaleza, outro com profunda reflexão e um terceiro mostrando misericórdia e caridade, deixando todos, atrás de si um ensinamento: que a vida mais bela é daqueles que não se apegam à existência. Se o homem comum encara este breve tempo com tanta avidez e melancólica seriedade, esses poucos, a quem nos referimos anteriormente, em seu caminho para a imortalidade e para a história monumental, conseguiram extrair de si um riso olímpico ou ao menos, com sublime sarcasmo. Com freqüência descerão à tumba com ironia, pois que restava deles para descer à terra? Nada mais do que aquilo que sempre os oprimiu, essa escória de desejos, vaidades, animalidade e que agora caia no esquecimento depois de ter sido, por longo tempo, objeto de desdém. Porém algo perdurará: o monograma mais íntimo do seu ser, uma obra, um ato, uma iluminação excepcional, uma criação. Sobreviverá porque nenhuma posteridade poderá prescindir dela. Nesta forma sublimada, a glória é algo mais que o apetitoso bocado de nosso egoísmo, como dizia Schopenhauer; é a crença na solidariedade e a continuidade da grandeza em todos os tempos, uma forma de protesto contra a troca de gerações e contra a transitoriedade de todas as coisas.
De que serve, então, para o homem contemporâneo a contemplação monumental do passado, em ocupar-se com que os outros em tempos passados produziram de clássico e inusitado? Deduz que a grandeza que um dia existiu foi, em todo caso, uma vez possível e sem dúvida, sê-lo-á no futuro. Caminha com seu passo mais firme, porque conseguiu libertar-se da dúvida que o assalta nos momentos de fraqueza, e lhe sugere que ele quer sempre o impossível. Suponhamos que alguém pensa que não é preciso mais do que uma centena de homens produtivos, eficientes, educados em um espírito novo para acabar com esse intelectualismo que está em moda na Alemanha. Como se sentiria confortado ao constatar que a cultura do renascimento se edificou sobre os ombros de uma centena destes homens!
E, todavia, para aprender com este exemplo imediatamente algo novo – que arbitrária e imprecisa, que inexata é esta comparação! Quantas diferenças se deveriam deixar de lado para ressaltar este efeito vigoroso! Que violência não seria necessária fazer à realidade individual do passado para encaixá-lo num molde geral, recortando ângulos e linhas relevantes, em benefício da homogeneidade. Na realidade, o que foi possível uma vez pode apresentar-se de novo, se os pitagóricos tiverem razão, ao crerem que sempre que se apresenta uma mesma conjugação de corpos celestes se repete, eles supõem a repetição dos acontecimentos na Terra até os mínimos pormenores, de sorte que, quando as estrelas tiverem entre si uma determinada posição, um estóico deve fazer aliança com um epicurista, César deve ser assassinado e Cristóvão Colombo deve descobrir a América.
Tão somente se a Terra, no fim do quinto ato, começasse sua obra teatral, retomasse desde o começo o seu drama, e se fosse possível que o mesmo encadeamento de causas, o mesmo deus ex machina, a mesma catástrofe retornaria em intervalos regulares, é que o homem poderoso poderia desejar que a história monumental se repetisse em sua absoluta veracidade iconográfica, quer dizer, cada factum com sua singularidade e particularidade em todo detalhe: não é provável que isto se suceda, a não ser que os astrônomos se convertam de novo em astrólogos. Até lá, a história monumental não terá necessidade dessa veracidade plena, continuará a unir o que se repele, generalizará e finalmente, igualará coisas bem distintas, atenuará diferenças de motivos e ocasiões, para em detrimento das causae, apresentar os effectus como monumentais, isto é, como exemplares e dignos de imitação, de sorte que, dado que todo possível prescinde das causas, sem exagerar demasiadamente, se poderia dizer que ela se tornou uma coleção de ‘efeitos em si’. O que se celebra nas festas populares, nas comemorações religiosas ou militares é, no fundo, um desses ‘efeitos em si’: isto é o que não deixa dormir os ambiciosos, os empreendedores que põem sobre o seu coração um amuleto, mas não é o verdadeiro nexo histórico (Geschichtich) das causas e efeitos que corretamente entendido, tão só provaria que, o jogo de dados de azar e do futuro, nunca poderia resultar em algo idêntico ao anterior.
Enquanto a alma da historiografia consistir nos grandes incentivos que inspiram um homem vigoroso, enquanto o passado tiver que ser descrito como digno de imitação, como imitável e possível outra vez, isto incorre, certamente, no perigo de ser distorcido, de ser embelezado e tomado de pura invenção poética; inclusive há épocas que não são capazes de distinguir entre um passado monumental e uma ficção mística porque exatamente os mesmos estímulos podem ser extraídos de um e outro mundo.
Se a consideração monumental do passado impera sobre as outras formas de consideração, quero dizer, sobre a tradicional e a crítica, é o passado mesmo que sofre dano: segmentos inteiros são esquecidos, depreciados e deslizam como um fluxo ininterrupto e acinzentado em que somente facta individuais embelezados emergem como ilhas solitárias. As raras personalidades que aí é possível descortinar saltam á vista como algo antinatural e maravilhoso, como a costela de ouro em que os discípulos de Pitágoras pretendiam ter visto no seu mestre.
A história monumental engana pelas analogias: com sedutoras semelhanças, incita o homem valoroso á temeridade e o entusiasta ao fanatismo, e se imaginarmos esta história nas mãos e nas cabeças dos egoístas talentosos e cafajestes exaltados, veríamos impérios destruídos, príncipes assassinados, revoluções desfeitas e o número dos ‘efeitos em si’ históricos (Geschichtilichen), isto é, os efeitos sem causa suficiente. Basta isto para recordar os danos que a história monumental pode produzir entre os homens de ação e os poderosos, para o bem ou para o mal, mas imaginemos quais seriam os efeitos quando os impotentes e os inativos dela se apoderam e a utilizam.
Tomemos o exemplo mais simples e freqüente. Imaginemos pessoas não artistas ou pouco artistas, armadas e amparadas pela história monumental da arte. Contra quem dirigirão suas armas? Contra seus arquiinimigos, os espíritos vigorosamente artísticos; em outras palavras, contra aqueles que são os únicos capazes de extrair da história uma verdadeira sabedoria, isto é, um ensinamento orientado para a vida e converterão o que aprenderam em uma forma mais elevada de práxis. A estes eles obstruem o caminho, a estes se obscurece o horizonte quando zelosos idólatras dançam em torno de um mal compreendido monumento de alguma grande época do passado, como se quisessem dizer – “Atenção!! Esta é a arte autêntica e verdadeira. Que nos importa uma arte em vias de gestação e em busca de seu caminho?”.
Parece que esses enxames de dançarinos têm o privilégio do ‘bom gosto’, pois o espírito criador está sempre em desvantagem frente ao simples espectador que se guarda muito bem de pôr a mão na massa; assim como, em todos os tempos, o político de café tem sido sempre mais sábio, mais justo e mais reflexivo que o estadista em exercício. Se se quiser transpor para o campo da arte o uso do referendume do voto majoritário e forçar o artista a defender-se diante do foro de estetas que nada criam, se pode jurar que de antemão seria condenado, não apesar de, mas porque os seus juízes proclamaram solenemente o cânone da arte monumental, isto é, da arte que, segundo o que temos exposto, cujo efeito é perene, na sua própria definição.
Para apreciarem a arte que ainda não é monumental, porque é atual, lhes parece, em primeiro lugar, desnecessária. Em segundo lugar, não é atraente e, finalmente porque é desprovida da autoridade que a história dá. Mas seu instinto lhes diz que a arte pode matar a arte: a arte monumental não deve renascer e para impedir isto aludem que a autoridade da arte monumental provém do passado.
São peritos em arte porque a querem suprimir, se vangloriam de ser médicos quando, na realidade, ministram venenos; cultivam sua língua e seu gosto para explicarem com sutilezas porque recusam obstinadamente tudo o que se lhes oferece. Não querem que nasça a grandeza. Seu método é este: “olhem, a grandeza já está aí”. Na realidade, esta grandeza que já está aí importa tão pouco quanto aquela que vai nascer: suas vidas tão testemunho disto.
A história monumental é o disfarce com o qual seu ódio aos grandes e poderosos de seu tempo presente, fazendo-os passar pela admiração satisfeita dos grandes e poderosos de épocas passadas; assim mascarado, o sentido desta consideração da história se converte em seu oposto. Sejam conscientes ou não, atuam em todo caso com se seu lema fosse: ”Deixai que os mortos enterrem os vivos.”
Cada um dos três modos de história existentes se justifica tão somente em um solo e clima particulares: em qualquer outro terreno cresce como erva daninha. Quando um homem deseja realizar algo grande tem necessidade do passado, se apropria da história monumental. Por seu turno, aquele que persiste no habitual e venerado ao longo do tempo, cultivando o passado enquanto antiquário é historiador tradicional. E a aquele a quem uma necessidade presente oprime o peito e que a todo custo quer livrar-se da carga, precisará da história crítica, isto é, de uma história que julga e condena.
Muitos males podem advir do transplante imprudente destas espécies: a crítica sem necessidade, o tradicional sem piedade, o conhecedor da grandeza sem ser capaz de realizar grandes coisas são como plantas que, separadas de seu solo de origem, degeneram e retornam ao estado selvagem.
APRESENTAÇÂO DE ÂNGELA ZAMORA
A coordenação do Curso de Filosofia do Mackenzie e todos os seus professores sentem-se felizes por ocasião desta edição da
Revista Pandora Brasil, a Nº 15, pois seu Conteúdo é uma série de artigos escritos pela Professora Ângela Zamora, especialista na filosofia Nietzscheniana. Cuja competência, profissionalismo e dedicação à filosofia e seus alunos e colegas é imensurável.
É por isso que o Centro de Ciências e Humanidades e o Departamento de Filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie sentem-se felizes e honrados com essa publicação, pois não se trata apenas de mais uma na área de filosofia, é a publicação de uma amiga, que é como consideramos a Ângela. A alegria de compartilhar com todos este feito, que é resultado de anos de trabalho e pesquisa com todas as dificuldades e intempéries do dia-a-dia, mas com a glória e o coroamento da vitória.
Apresentar a Ângela como professora, filósofa, pesquisadora e escritora, é algo meramente formal e protocolar, pois para nós é a amiga, a companheira, aquela que com muito sacrifício e muita luta soube como poucos ter a sabedoria e a paciência para mudar os rumos dos ventos e a sobrepujar as situações consideradas por muitos como intransponíveis e por isso, hoje podemos atribuir a querida professora todos àqueles adjetivos.
Atualmente Ângela Zamora é professora do Curso de Filosofia da Universidade Mackenzie e uma persistente pesquisadora da obra de Nietzsche.
Um abraço
Marcelo Martins Bueno
Doutor em Filosofia (PUC-SP)
Coordenador do Curso de Filosofia - Mackenzie
Vice-Diretor do Centro de Ciênciase Humanidades (CCH) - Mackenzie
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