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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE – A MORAL DA CULTURA: ADESTRAMENTO E COERÇAO

Ângela Zamora

Mestra em Filosofia (PUC-SP). Professora da Universidade Mackenzie.



RESUMO: Um dos principais objetivos da análise genealógica de Nietzsche consiste em examinar a origem dos valores da cultura e em especial, os princípios do processo civilizatório enquanto adestramento e coerção. Nossa exposição pretende elucidar esse exame.

Palavras-Chave: genealogia, recuo histórico, obligatio, leis, hábitos, adestramento, coerção, cultura.




Nosso propósito neste artigo é caracterizar a importância da genealogia, ela é mais que um procedimento utilizado por Nietzsche para estabelecer a origem dos valores, ela se coloca como uma autêntica ciência da moral – é a própria história da moral que é construída com base na história. Ao lutar contra os valores da metafísica e do utilitarismo que pressupõem uma origem sagrada e atemporal para os valores, a genealogia avalia os fenômenos através de um determinado ponto de vista que não se pretende supra-histórico. Ela faz história, uma história cortante que elucida como todos os ideais consagrados na terra possuem um começo banhado de horror, sangue e crueldade; que há uma hierarquia de valores e de homens, e isto implica no abalo dos alicerces da cultura ocidental: detectando sua verdadeira origem (procedência) e determinando sua hierarquia. Nietzsche disseca tal qual um médico-fisiologista, qual é a tábua de valores em questão para que ao operar uma deconstrução da cultura, realizando uma crítica radical contra seus valores, permita a emergência de novas possibilidades de homem. Talvez, então, a genealogia deixe de ser cinza, cor que representa o resultado pontual das investigações históricas minuciosas e pacientes, de documentos empoeirados, pouco lidos, marcando com história aquilo que é tido como não possuindo história.


A PERGUNTA PELO VALOR DOS VALORES

A genealogia não se limita a investigar a origem e a história dos valores – sua proveniência e emergência – nem lhes pressupõe, como o utilitarismo e a metafísica, uma gênese linear. Enquanto crítica ativa irá em busca dos princípios de avaliação dos valores, ou seja, pretende averiguar qual é o valor dos valores e esta é a sua nova exigência:

“Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão.” (GM, Prólogo, 6)

Esta crítica supõe que os valores não sejam considerados como se fossem “dados” desde sempre. Tidos como se fossem “dados” desde sempre, os valores adquiriram um estatuto de sacralidade, atemporalidade e universalidade. Afirmando o contrário, Nietzsche verifica sua procedência insidiosa no processo de formação da cultura. Nietzsche entende que os verdadeiros problemas da moral só podem emergir da comparação entre as diversas morais das diferentes culturas. Ora, até então, os moralistas se restringiram ao estudo da moralidade dominante em seu ambiente e na tentativa de fundamentá-la, apenas restringiram-se a um “fato no interior de uma determinada moralidade.” (PABM §86) .

É preciso, pois, criticar este tipo de tentativa de fundamentação da moral (exemplificado na filosofia de Schopenhauer). E, em segundo lugar, os valores não são eternos, mas são um tornar-se, pois são “resultados” (Gewordenes) de um laborioso processo formativo, presumivelmente ocorrido na pré-história da espécie e recuperado hipoteticamente pela reflexão filosófica. “(Giacóia Jr.,1988 p106). Neste momento, cabe a reconstituição desta hipó- tese pré-histórica, onde temos a moral da cultura enquanto adestramento e coerção. Só assim é que Nietzsche pode desmontar os mecanismos que impediam os valores de serem questionados.


A MORAL DA CULTURA: COERÇÃO E ADESTRAMENTO

A pesquisa da proveniência dissolve a transcendência dos valores da metafísica, retirando dos valores sua venerabilidade para recolocá-los como criação humana; critica a ingenuidade dos utilitaristas e moralistas, posto que aqueles repousam suas argumentações sob a hipótese de que os valores morais são a consequência de ações consideradas úteis à comunidade, e estes, sob a hipótese de que os valores tem como origem os sentimentos altruístas. Em todos estes casos, nota-se uma falta de “sentido histórico”. A questão da origem dos valores morais, conforme adverte Nietzsche, tem seus inícios em inconfessáveis condições de aparecimento – os valores da cultura estão relacionados à história, “aos seus obscuros começos, às suas inconfessáveis condições de surgimento, à mesquinhez de seu passado humano, demasiado humano.” (Giacóia Jr, 1988, p106)

A origem histórica dos valores revela aquilo que ficou mascarado com as tentativas de fundamentação da moral – faltou verificar que cada cultura “tem o seu a priori dos valores” (Fink, 1988, p131); isto é, cada cultura irá determinar um estabelecimento de valores, posto que eles são decorrentes da interpretação que cada cultura faz a respeito da vida. Os moralistas ao invés de problematizarem a moral no que concerne às condições de seu surgimento e da avaliação dos valores apreciando-os através da ótica da vida, visto que a vida se constitui como valor supremo, ficaram detidos nas considerações da moral vigente.

A verdadeira problemática da moral consiste na explicação de toda a evolução do homem no seio da cultura – de como o homem selvagem pode conquistar uma vontade mais durável que o animal, como foi possível torná-lo responsável e ainda ser capaz de prometer por si no futuro. Em outros termos, as reflexões de Nietzsche estão intrinsecamente ligadas aos princípios da cultura – e ela se constitui basicamente como adestramento e coerção, conforme ressalta Salomé:

“Este (o homem) há logrado domesticar su salvagismo primitivo al precio de um largo y paciente amaestramiento. Trabajo este que era necesario pese a lo haya convertido em um decadente y que ponga al hombre finalmente em la obrigación de quebrar os marcos que la sociedade le impone, a fim de encontrar de nuevo su vitalidad original.

Com tudo, es a esa disciplina a la que el individuo debe la plenitude de su vida interior. Progreso que solo se há podido realizar merced a uma coaccion inexorábille. Coacción que há mantenido a la voluntad del individuo bajo su tutela, y a la que há impuesto uma série de golpes e sanciones, basta que esta há alcanzado su mayoria. Así es como el hombre há adquirido uma voluntad mas duradera que la del animal, que nada mas obedece a los impulsos del momento. El hombre há aprendido de esta forma a responder de sus atos, y se há convertido em el animal que puede hacer uma promesa. Toda educación humana es, em última instância, uma ‘mnemotécnia’ . Ela resuelve el problema que consiste em inculcar la memória a los inpulsos de uma voluntad caprichosa e irreflexiva. ‘Poder responder de si mesmo, responder com orgulho, y por conseguiente, poder aprobrar-se a si mesmo, he aqui um fruto tardio.? Durante cuanto tiempo há permanecido esse fruto colgando del arbol, ácido y verde?” (Salomé,1980, p163)

Assim, a genealogia irá tratar da proveniência de todos os valores morais, colocando, estrategicamente, a constituição de humanidade na sua pré-história, num “ousado salto na região obscura onde transcorreram os lances iniciais da epopéia ainda inacabada de auto-constituição da humanidade. Tais incomensuráveis lances de tempo precedem a história mundial (‘Weltgeschichte’) como a efetiva e decisiva história principal (‘Hauptgeschichte’) que fixou o caráter da humanidade.” (Giacóia Jr, 1988, p.101)

É desta forma, através da hipótese sobre a pré-história do homem que Nietzsche pode explicitar como se deu a formação do tipo homem – como ele se tornou um ser maleável, doméstico, estável através de uma maquinaria cruel onde estão presentes as penas, os castigos, a implantação do sentimento de culpa que, se por um lado, converteu o homem em ser gregário, por outro, deu origem a toda cultura superior, como as artes e a filosofia.

Entretanto, cabe salientar que este recuo histórico não tem por objeti- vo elucidar suas hipóteses como se nelas houvesse um fio condutor, o que resultaria numa noção de linearidade ou de finalidade, conforme comenta Giacóia: “Diante deste ponto de vista capital de metódica histórica seguido por Nietzsche em sua genealogia da moral, deve-se renunciar à tentação de tomar a cadeia de transposições como se nela se descrevesse a trajetória de uma linearidade sem lacunas, ou como se fossem seus elos constitutivos principais equivalentes e etapas necessárias de uma progressão natural dirigida à realização de um fim previamente fixado. (Giacóia Jr, 1988, p 114)

Procuraremos elucidar as mudanças pelas quais passou o animal-homem, vestido agora com a ‘camisa de força’ social, até a noção de indíviduo soberano. Estas mudanças fazem emergir as relações contratuais entre credor e devedor (que pertencem ao domínio do direito penal), que servem de substrato para explicitar o processo civilizatório, favorecendo a aquisição de costumes, da memória, da responsabilidade moral. Para Nietzsche, originalmente, estas relações credor/devedor (“Obligatio”), situam-se na capacidade de calcular, estabelecer preços, encontrar equivalências. Isto se configura como sendo o “grau mais baixo das formas sociais de organização e associação humanas”. (Giacóia Jr, 1988, p 114)

O homem se constitui enquanto ‘animal-avaliador’, e estas relações de avaliação foram transpostas para os complexos sociais, onde comprar, vender, medir e avaliar, perfazem a própria noção de civilização.Cada coisa passa a ter um preço e desde então, a comunidade, a partir das relações contratuais entre credor e devedor passa a regrar-se: de um lado, a comunidade ampara e protege todos os indivíduos e estes, por outro lado, ganham obrigações – devem obediência às normas de comportamento, de tal modo que são obrigados ao cumprimento da palavra empenhada.

Ora, primeiramente, para que o homem pudesse criar relações estáveis, teve que, necessariamente, adquirir hábitos, costumes. Esta aquisição é definida como uma longa coerção que se impõe sobre toda a comunidade –estabelecem-se regras de conduta que devem ser observadas e obedecidas. A partir deste momento, exerce-se um imperativo: deve-se obedecer à autoridade dos costumes, a ela se deve respeito enquanto tradição e ela exige de cada membro, obediência. O movimento de adestramento do homem se inicia, portanto, com a aquisição de hábitos, que por sua vez, devem ser obedecidos. Obedecer a lei porque é a lei – “Todo hábito é arbitrário. (...) é natural o hábito de adquirir hábitos.” (Deleuze, 1976,p111)

“O essencial e inestimável em toda moral é o fato de ela ser uma de- morada coerção. (...) Mas o fato curioso é que tudo o que há e houve de liberdade, finura, dança, arrojo e segurança magistral sobre a terra, seja no próprio pensar, seja no governar ou no falar e convencer, tanto nas artes como nos costumes desenvolveu-se apenas graças à ‘tirania de leis arbitrárias’” (PABM§188)

Cada comunidade estabelece regras de comportamento seja para com o corpo e a saúde, prescrições com relação à alimentação, à agricul- tura, à guerra, seja também para o casamento, nascimento dos filhos e a morte. Estas leis se transmitem como tradição e são vistas com reverência e indiscutibilidade – que configuram os costumes. Estes são tidos pela comunidade como sendo transmitidos por meio de uma revelação e serviram de orientação aos seus antepassados – os costumes são a concretude de determinadas leis arbitrárias e servem de garantia da perpetuação – proliferação da própria comunidade. Eles são “imperativos de ação porque integram aquilo que Nietzsche denominou de ‘vida provada por uma enorme e bem crivada experiência; daí advém sua autoridade: de um lado, porque, tendo sido diretamente comunicados por uma instância sobre-humana por meio da revelação são intocáveis; por outro lado, porque por eles se orientou a vida dos antepassados. Duvidar desta autoridade constitui impiedade, recusar-lhe obediência equivale a sacrílego atentado, eis que ela se funda na revelação e na tradição. “(Giacóia Jr,1988, p126)

Os costumes servem como proteção e garantia de estabilização de um determinado modo de vida. Sua implantação não se deu de modo pa- cífico ou gradual – mas como uma fatalidade inevitável, como uma ruptura e violência terríveis, separando o homem de seu passado selvagem, para empreender a grande tarefa de fazer dele um ser dotado de forma. “(...) o sentido de toda cultura é amestrar o animal de presa ‘homem’, reduzí-lo a um animal manso e civilizado, doméstico.” (GM I,11)

Para tanto, houve a necessidade de construir uma faculdade nova no homem: a memória, pois o esquecimento se apresenta na filosofia de Nietzsche como sendo uma força ativa e positiva que, entretanto “condena o animal-homem a ser nada mais que um embotado entendimento-de-instante” (Giacóia Jr,1988,p.126). Há que, consequentemente, coagí-lo a lutar contra o esquecimento. E o meio empregado pela moralidade dos costumes para modelar o ‘bicho-homem’ foi através da dor. Apenas o que não cessa de causar dor fica na memória. A dor, no processo civilizatório é tida como o mais poderoso auxiliar da mnemônica, pois os mais horrendos sacrifícios e penhores, mutilações, rituais, punições – fazem presentificar na memória do homem alguns “não-quero”. Hipnotiza-se, desta forma, o sistema nervoso com algumas idéias que se tornam fixas. Em outros termos, a mudança do animal-homem em ser social, deveu-se, principalmente aos exercícios de crueldade empregados contra si próprio. Agora, sujeito e submetido à disciplina e regras de comportamento imposto pelos costumes, o homem desenvolve a memória; com isto, lembra-se a tempo das prescrições, livra-se da crueldade da aplicação de castigos.

Num segundo momento, Nietzsche trata de explicitar a criação de uma “ segunda natureza do homem, que substitui o embotamento inicial cravado à eternidade do instante e do esquecimento. Trata-se da memória da vontade, com o que se lhe descortina a possibilidade das dimensões temporais do passado e do futuro; trata-se da criação das faculdades psiquicas das quais se originam a consciência e a memória, com o que se adestra o animal-homem para o exercício da capacidade ou do poder de se comportar o comando de uma regra.”(Giacóia Jr,1988, p107)

A faculdade da memória da vontade é resultado de um processo que, por um lado, revela o respeito e reverência aos costumes estabelecidos, isto é, o homem que aprendeu a obedecer e, por outro, se lembra daquilo que desejou anteriormente, podendo responder por si mesmo no futuro. Isto é, a faculdade da memória da vontade torna o homem capaz de oferecer garantias de si mesmo no futuro, faz do homem um ser capaz de fazer uma promessa.

Aquela primitiva relação contratual entre credor/devedor (“Obligatio”), posteriormente, foi objeto de uma profunda reestruturação, a saber: transplantou-se para o domínio de relações supra-pessoais – as relações entre as gerações presentes e a de seus antepassados. Os antepassados são vistos como sendo os responsáveis pela vida da comunidade no que concerne à sua proteção e prosperidade. Isto leva a geração presente a tomar consciência de que deve retribuir tal proteção. Ora, quanto mais a comunidade se fortalece e prospera, mais se sente na obrigação de retribuir tais benefícios para com o ancestral. Aos poucos, os ancestrais vão se transformando em uma divindade doméstica, com a qual se contrai uma dívida: “Na originária comunidade tribal – falo dos primordios – a geração que vive sempre reconhece para com a anterior, e em especial para com a primeira, fundadora da estirpe, uma obrigação jurídica ( e não um mero vínculo de sentimento: seria lícito inclusive contestar a existência deste último durante o mais longo período da espécie humana). A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacríficios e às realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes pagar isso com sacríficios e realizações: reconhece-se uma dívida (“Schuld”), que cresce permanentemente, pelo fato de que esses antepassados não cessam, em sua sobrevida como espíritos poderosos de conceder à estirpe novas vantagens e nova força”. (GM II, 19)

Este sentimento de dívida para com a divindade, tempo substrato não o sentimento religioso, mas o da obrigação jurídica. Cria-se um vínculo inseparável entre a vida da comunidade e os antepassados, sendo estes os responsáveis da geração presente, de modo que a comunidade procura encontrar uma forma de indenização e resgate dos benefícios. E a forma encontrada é a dos sacrifícios de sangue.

“O que se pode lhes dar em troca? Sacrifícios (inicialmente para alimentação, entendida de modo mais grosseiro) festas, música, homenagens, sobretudo obediência – pois os costumes são, enquanto obra dos antepassados, também seus preceitos e suas ordens -: é possível lhes dar bastante? Esta suspeita permanece e aumenta: de quando em quando exige um imenso resgate, algo monstruoso como pagamento ao ‘credor’ (o famigerado sacrifício do primogênito, por exemplo, sangue, sangue humano, em todo caso”. (GM II,19)

Para Nietzsche, o fundamento da moral não está baseado nos sentimentos altruístas como propuseram os moralistas, antes refere-se às relações mais complexas da obligatio e, sem dúvida, ao medo do poder dos ancestrais, o que implica, necessariamente na solidez dos costumes. Entretanto, quando um individuo desobedece as normas, ele torna-se um ‘infrator’ e deve pagar pelos danos cometidos, já que atentou contra a comunidade que até então o protegia, quanto ao seu credor, devendo ser privado de todas as vantagens e benefícios que até então usufruía. Neste caso, a comunidade despeja toda hostilidade e crueldade sobre o infrator sob a forma de castigo. O castigo e as leis penais funcionam como um equivalente reparatório às lesões causadas à comunidade de modo que o pagamento pelos danos cometidos visa a uma restauração da sua integridade de poder, através da prática da ação da crueldade, criando uma equivalência entre dano e resgate através da dor.

A crueldade desempenha juntamente com os instintos agressivos, o papel de constituinte do processo civilizatório. Isto é, agressividade e crueldade – os ‘instintos de liberdade’, nas palavras de Nietzsche, são “sobretudo uma energia positiva de assimilação e assujeitamento (‘Uberwaltingung’); é por meio de seu ilimitado exercício que se obtém a transformação do explosivo caos instintivo do animal-homem em ser social submetido a formas rígidas, inibições, disciplinas e regramento.” (Giacóia Jr, 1988, p.126)

Com esta transformação, os ‘instintos de liberdade’ não foram eliminados, mas interiorizados, tornados ‘subterrâneos’, pois forçados a encontrar novas condições de satisfação, acabaram por se voltar contra o homem mesmo. O homem, impossibilitado de agir no exterior, cria sua interioridade, a partir destes ‘instintos fundamentais’, posto que estes não podem expandir-se devido à repressão própria aos costumes.

“Todos os instintos que não se descarregam para fora – voltam-se para dentro - isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua ‘alma’” (GM II, 16)

É assim que se constitui a noção de culpa, originada do conceito de dívida. “Esses genealogistas da moral teriam sequer sonhado por exemplo, que o grande conceito moral de ‘culpa’ teve origem no conceito muito material de dívida?” (GM II,4)

A existência passa a ser entendida não apenas como uma dívida eterna que não se pode pagar, mas ainda como castigo e expiação devido a um crime ou ‘pecado original’ cometido pelos ancestrais. Se outrora os ancestrais eram dignos de veneração, agora são representados como culpados e devedores ou ainda, a natureza passa a ser vista como princípio do mal ou a existência passa a ser considerada como possuindo um valor de nada.

Este sentimento de dívida permanente é modificado – o homem passa a sentir-se culpado, não mais no sentido jurídico, mas no moral, posto que interiorizando os ditames da moralidade dos costumes, passa a reconhecer sua inferioridade perante a divindade e a impossibilidade de resgatar-se. O credor se impõe de maneira espiritualizada: coloca-se “sob a forma de consciência de culpa eterna do devedor, que suprime inteiramente o conteúdo jurídico da obligatio contratual de crédito e débito.”

O sentimento de obrigação que se localizava no ‘além’ é transportado para dentro da consciência do homem que passa a ser vivenciado. Este sentimento de culpa é intensificado sob a forma de causar dor e sofrimento a si mesmo, posto que é a única forma que o devedor encontra para expiar-se.

O objetivo da cultura visa a selecionar um homem capaz de prometer, o que implica na formação de um homem poderoso e livre – um tipo ativo, que é o individuo soberano. Ora, para tanto, a cultura empregou meios eficazes, porém cruéis a fim de fornecer ao homem uma consistência: dotando-o de uma forma, fazendo dele um ser responsável através da implantação de uma memória da vontade.
Isto foi possível a partir das relações entre credor e devedor (‘obligatio’) que adestraram o homem através da coação e do constrangimento de seus ‘instintos de liberdade’.
A genealogia se apresenta então, como uma investigação histórica do adestramento do homem, da sua domesticação pelas organizações sociais, formando rebanhos.
Curioso pensar que a genealogia em sua dimensão crítica elucida a ambigüidade que se instala neste processo, pois, se por um lado, a cultura visa a um produto – o individuo livre e soberano, o que assistimos no devir da história é exatamente a intensificação do instinto gregário no homem.

Mas isto já é uma outra história...



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, G. NIETZSCHE E A FILOSOFIA. Ed. Rio. Col. Semeion, RJ, 1976, 1ª ed.

FINK, E. A FILOSOFIA DE NIETZSCHE Ed. Presença, Lisboa, 1988, 2ª ed. GIACÓIA, JR. O Grande Experimento sobre a Oposição entre Eticidade e Autonomia em Nietzsche. In Revista transformação, UNESP, vol. 12 , São Paulo, 1988.

NIETZSCHE. GENEALOGIA DA MORAL Ed. Brasiliense, SP, 1988, 2ª ed. Trad. Paulo César Souza.

NIETZSCHE. PARA ALÉM DE BEM E MAL Cia das Letras, SP, 1ª ed, 1992 Trad. Paulo César Souza.

SALOMÉ, Lou. NIETZSCHE Ed. Zero, Madrid, 1980, 3ª ed.






APRESENTAÇÂO DE ÂNGELA ZAMORA

A coordenação do Curso de Filosofia do Mackenzie e todos os seus professores sentem-se felizes por ocasião desta edição da Revista Pandora Brasil, a Nº 15, pois seu Conteúdo é uma série de artigos escritos pela Professora Ângela Zamora, especialista na filosofia Nietzscheniana. Cuja competência, profissionalismo e dedicação à filosofia e seus alunos e colegas é imensurável.

É por isso que o Centro de Ciências e Humanidades e o Departamento de Filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie sentem-se felizes e honrados com essa publicação, pois não se trata apenas de mais uma na área de filosofia, é a publicação de uma amiga, que é como consideramos a Ângela. A alegria de compartilhar com todos este feito, que é resultado de anos de trabalho e pesquisa com todas as dificuldades e intempéries do dia-a-dia, mas com a glória e o coroamento da vitória.

Apresentar a Ângela como professora, filósofa, pesquisadora e escritora, é algo meramente formal e protocolar, pois para nós é a amiga, a companheira, aquela que com muito sacrifício e muita luta soube como poucos ter a sabedoria e a paciência para mudar os rumos dos ventos e a sobrepujar as situações consideradas por muitos como intransponíveis e por isso, hoje podemos atribuir a querida professora todos àqueles adjetivos.

Atualmente Ângela Zamora é professora do Curso de Filosofia da Universidade Mackenzie e uma persistente pesquisadora da obra de Nietzsche.

Um abraço

Marcelo Martins Bueno
Doutor em Filosofia (PUC-SP)
Coordenador do Curso de Filosofia - Mackenzie
Vice-Diretor do Centro de Ciênciase Humanidades (CCH) - Mackenzie









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