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EDIFÍCIOS E NUVENS:
FILOSOFIA E POESIA DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Ângela Zamora

Mestra em Filosofia (PUCSP). Professora da Universidade Mackenzie.



RESUMO: Esta palestra foi realizada em setembro de 2009, no evento QUINTA POESIA no Mackenzie-SP, e o principal objetivo foi o de aliar alguns aspectos da filosofia de Nietzsche às suas poesias, principalmente quanto á sua visão de mundo e certas características do perfil psicológico do Senhor.


LINK: QUINTA POESIA, quinta com poesia e filosofia...



Quando assistimos a uma apresentação de um evento como este, a Quinta Poesia, quinta com poesia e filosofia..., às vezes temos a impressão de que, como numa corrida de fórmula-1, a poesia é sempre vencedora e não sem motivo: ela é uma motorista extremamente habilidosa e tem um poderoso carro em suas mãos. Parece que sua irmã-gêmea, a filosofia, nunca a alcança, ganhando ou perdendo por décimos de segundo. Aquela se evidencia por si mesma, ressaltando aquilo mesmo que quer dizer: uma imagem que se fixa a cada verso e ao final resgata-se a si mesma; enquanto que essa se detém: explica conceitos, esmiúça-os e os diferencia de outros, de modo que ao compará-las a idéia que se presentifica na mente do leitor é a de que a filosofia nunca transcenderá a poesia. Mas por que optar? Por que ter que escolher? Fiquemos, portanto, com as duas. Em ambas, as falas sobre o Ser e o Ser do Ente de Heidegger.

Nietzsche, poeta-filósofo, um dinamite a explodir as certezas do ‘real’, recolhe desta poeira, sua matéria-prima: das sutis cores e composição de elementos lançados ao ar e mais acima, das próprias nuvens - filosofia e poesia. Como também depois de destruir, reconstrói: edifícios com alicerces completamente outros, eles próprios repletos de carga explosiva – aforismos ou versos. Tanto nuvens cintilantes que convidam a dançar, quanto as de cor cinza, cor do genealogista; edifícios demolidos ou em reconstrução – encontramos em uma só pessoa, Nietzsche.

Seus poemas são pouco conhecidos, eles próprios são aforismos - exigem a instrumentação de uma arte: a arte da interpretação. Deste modo, Nietzsche seleciona seus leitores. “Todo espírito nobre escolhe seus ouvintes quando deseja se comunicar; escolhendo-os, previne-se contra os ‘outros’” (DIAS, 1985, p.2) Ao proibir o acesso para todos, exclui o populacho, que banaliza e reduz os sentidos de significação. “Escrevo de modo que nem o populacho, nem os populi, nem os partidos de qualquer espécie tenham vontade de me ler.” ( HDH, II).

Poemas e aforismos devem ser decifrados, sua escrita é descontínua e assistemática, pois nasceram ao ar livre. “Entre um fragmento e outro há um espaço indeterminado que não separa nem junta fragmentos. Este espaço em branco é para o aforismo aquilo que a pausa é para a música, um vazio cheio de significação (...) a escritura sistemática por ser contínua ignora o vazio, o espaço em branco e deve ser preenchido a qualquer custo de modo a não ficar à mercê do acaso e da exterioridade.” (DIAS, 1985, p.6). Há poesias tão densas que, se não fosse pela sua forma, seriam aforismos. Há aforismos tão poéticos que soam poesia – embora o conteúdo de ambos conflua sempre para ou a crítica ou para a elevação de um estado de forças aumentado, elevado, diria até divinizado. Em outros termos, quer falar do alto, criar, voar, extravasar, enfim daquilo que está cheia sua alma, ela transborda! O leitor de Nietzsche, embora fascinado não deve manter com os textos uma relação servil – é necessário ‘ruminar’ – versos e sentenças devem ser degustados, remoídos, misturados a outros tantos ingredientes, transformando aquilo que é alheio em algo próprio. A criação implica na apropriação e na produção de um movimento que quer criar.

Nossa proposta consiste em justamente em apresentar esta confluência – poemas e aforismos são apenas formas diferentes de apresentar sua filosofia, e instigar o leitor a apreciá-los e ‘ruminá-los’ pela arte da interpretação.


ECCE HOMO

Sim, bem sei donde provenho
Insatisfeito, como chama em seco lenho,
Vou ardendo e me consumo,
Tudo o que toco faz-se luz e fumo,
Fica em carvão o que foi minha presa:
Sim, sou chama com certeza.


1. Como filólogo de formação, há uma escolha criteriosa das palavras que ecoam em sons ritmados e perfeitos. Para Nietzsche, o homem não só por necessidade, mas também por vontade - gosta de se sentir protegido e aconchegado - vive em comunidade. Para tanto, tornou-se imprescindível tornar-se inteligível para o outro, isto é, a linguagem nasceu da vida gregária e visa em primeira instância à manutenção e conservação da própria comunidade, enfatizando seu caráter utilitário. Dar nome às coisas implica em “forjar uma unidade que a pluralidade das coisas não apresenta” (Mosé, 2004, p.72), o que implica na redução das diferenças entre elas e simplificação das experiências pessoais em conceitos fixados e aceitos por todos. “Toda linguagem nasce da identificação do não-idêntico” (SVM, 1988, p.68), e toda experiência singular torna-se inefável ou cristalizada na medida mesma em que o próprio pensamento só pode ser expresso mediante as malhas da gramática. “O curioso ar de família de todo o filosofar indiano, grego e alemão tem uma explicação muito simples. Onde há parentesco lingüístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática – quero dizer, graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais -, tudo esteja predisposto para uma evolução e seqüencia similares dos sistemas filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a certas possibilidades outras de interpretação do mundo. Filósofos do âmbito lingüístico uralo-altaicos (onde a noção de sujeito teve o desenvolvimento mais precário), com toda a probabilidade olharão ‘para dentro do mundo’ de uma maneira mais diversa e se acharão em trilhas diferentes das dos indo-germânicos ou muçulmanos: o encanto exercido por determinadas funções gramaticais é, em última instância, o encanto de condições raciais e juízos de valor fisiológicos.” (PABM#20) (grifos nossos)

E embora a linguagem vise em primeira instância à conservação, também serve ao homem como sobrevôo – permite contemplar uma constelação de sentidos, o que requer a admissão de um pluralismo essencial. “O sentido é então uma noção complexa: há sempre uma pluralidade de sentidos – uma constelação, um complexo de sucessões, mas também de coexistências – que faz com que uma interpretação seja uma arte, “toda subjugação, toda dominação, equivale à uma interpretação nova.” (DELEUZE, 1976, p.3). A linguagem, enquanto sobrevôo, adquire um sentido elevado e superior, e sua unidade essencial: a palavra, está a serviço da vontade de potência – o que permite criar inumeráveis arco-íris de significações.


A PALAVRA

À Palavra viva é que eu tenho amor:
Salta tão jovial ao nosso encontro,
Saúda com gesto gracioso,
É bela mesmo sem jeito,
Tem sangue, é capaz de esbravejar com brio,
E então entra até nas orelhas de um surdo,
E em tudo o que faz – a palavra encanta.
Mas a palavra é um ser delicado,
Ora doente, ora outra vez sadia.
Se lhe queres poupar a pequenina vida,
Tens de lhe pegar com leveza e graça,
Sem a apalpares nem a apertares à bruta,
Que ela morrer por vezes já de um mau-olhar –
E aí fica ela, tão desfigurada,
Tão sem alma, tão pobre e fria,
O seu corpinho a tal ponto transformado,
Da morte e da agonia mal-tratado.

Uma palavra-morta – feia coisa,
Um chocalhante e seco cling-ling-ling.
Fora esses ofícios hediondos
Que fazem morrer as palavrinhas!


Ora, se por um lado, a linguagem visa a conservação e, portanto, trabalha apenas com as semelhanças, por outro, escolhe, ressalta, rejeita e atribui valor, esclarece Mosé, eleva para o alto, permitindo uma transposição. Ela é capaz de permitir desdobramentos, destruindo e tecendo novas tramas, e “ao contrário de dizer o que as coisas são, o que a linguagem pode fazer é se compor como um contorno ficcional e provisório, que busca, não deter, mas manifestar a atividade interpretativa infinita que é a vida.(MOSÉ, 2004, p.230). Para ser filósofo ou poeta, é preciso gostar de escrever, é mister ter como recurso um vasto vocabulário, mais: é preciso revelar-lhe o que há por detrás de um simples dizer. Um bom escritor é, praticamente, um alquimista, a transmutar o sentido cotidiano das palavras: faz e refaz experiências com tons e sons, recoloca, muda de lugar, cozinha, frita, põe no forno, desloca, hifeniza, confere, nomeia, encontra elementos e ingredientes novos, trama, ilude. Palavras não são escolhidas ao acaso, mas derivam de uma escolha criteriosa em Nietzsche, cada uma delas são cuidadas como crianças ou frutas delicadas da estação, escolhendo-as cuidadosamente entre tantas a fim de que se dê a verdadeira significação. As palavras ganham vida própria, há a entonação perfeita, na gramática e os sons.

Nesta última estrofe, uma crítica a língua chinesa, onde todos os sons soam iguais.


2. Filosofia e Poesia estão vinculadas à concepção trágica da existência. Tudo o que há, irá morrer um dia e não há mal nenhum nisto, não se deve munir de juízos morais, ou seja, não se deve julgar a vida. A vida deve ser entendida como gratuidade – um presente que deve ser apreciado todos os instantes, mesmo aqueles que comportam dor e sofrimento. Na verdade, o sofrimento é um chamariz para a vida. E, a arte, fonte de transbordamento e superação.


RIMUS REMEDIUM
(OU COMO OS POETAS SE CONSOLAM)


Da tua boca,
Ò tempo, bruxa babosa!
Pinga lentamente hora após hora.
Em vão todo o meu nojo grita:
“maldita, maldita
Goela da Eternidade!”
O mundo – é de bronze:
Um touro em brasa, - é surdo aos gritos.
Com punhais alados a Dor escreve
Nos meus ossos:
“O mundo não tem coração,
E a estupidez seria ter-lhe rancor por isso.”
Verte as papoulas todas,
Verte febre! Veneno no meu cérebro!
Há tempo demais me provas já a mão e a fronte.
Que perguntas? O quê? “Para que – galardão?”
- Ah! Maldita galdéria
Mais o seu sarcasmo!

Não! Volta cá!
La fora faz frio, ouço cair a chuva –
Que seja mais meigo contigo?
- Toma! Aqui tens ouro: olha como a moeda brilha! –
Que te chame “Ventura”?
Que te abençoe, febre?
A porta salta!
A chuva esguicha até minha cama!
O vento apaga a luz, - desgraça sobre desgraça!
-Quem agora não tivesse uma centena de rimas
Aposto, aposto,
Que estava perdido!

Nietzsche, na 2ª estrofe deste poema, apresenta o embate entre duas filosofias antagônicas, como pano de fundo: entre Anaximandro e Heráclito. “Anaximandro foi, segundo Nietzsche, o filósofo que deu expressão perfeita a essa concepção de existência. Dizia: ‘os seres pagam uns aos outros a pena e a reparação de sua injustiça, segundo a ordem do tempo. Isto quer dizer: 1. que o devir é uma injustiça e a pluralidade das coisas que vêm à existência é uma soma de injustiças; 2. que elas lutam entre si e expiam mutuamente sua injustiça pela phtora., 3. que todos derivam de um ser original (Apeíron) que cai num devir, numa pluralidade, numa geração de culpados, cuja injustiça ele redime eternamente destruindo-os” (DELEUZE,1976, p.16)(grifos nossos). Para Heráclito – o múltiplo é a afirmação do Um, o devir, a afirmação do ser, a afirmação do devir, ela própria, é o Ser. “Heráclito olhou profundamente e não viu nenhuma expiação do devir, nenhuma culpa da existência – o um é o múltiplo” (DELEUZE,1976, p.20). O múltiplo é o um. Não é preciso ter rancor para com a vida. Ela deve ser entendida nesta inocência, sem a imputação de juízos morais. A tendência do homem ao perceber a finitude de todas as coisas e de si mesmo é a de se ressentir: é doloroso para o homem que ela seja assim, no geral, a interpretação que se apresenta é a de um devir culpado. Para todos os homens, um deserto se impõe. “(...) Por isso (o viajante) não pode prender seu coração com demasiado firmeza a nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e transitoriedade. Sem dúvida sobrevêm a um tal homem noites más, em que ele está cansado e encontra fechada a porta da cidade que deveria oferecer-lhe pousada; talvez, além disso, como no Oriente, o deserto chegue até a porta, (...) É então que cai para ele a noite pavorosa, como um segundo deserto sobre o deserto e seu coração se cansa de andança” (HDH,I,638).

Nietzsche, com sua investigação genealógica, compreende que há uma dupla origem dos valores – há povos que entendem que a vida é expiação, como ao modo de Anaximandro, o homem nasce para sofrer devido a um erro cometido por alguém num passado primordial. Outros, entretanto possuem a concepção de gratuidade em relação à vida. Para Nietzsche, os valores, cerne de sua filosofia, são sintomas de apreciação em relação à vida. O modo de ver as coisas e a própria vida decorrem dos valores. Aceitar a vida enquanto gratuidade implica em aceitar a dor e o sofrimento como seus ingredientes,assim como todos os pares de opostos integralmente - inverno/verão, alegria/tristeza, saúde/doença, vida/morte, noite/dia, verdade e mentira. Ela deve ser compreendida no seu sentido mais amplo: a vida é caos – imprevisível e implacável, um abismo que comporta um mundo sem fundo. Entretanto, tal interpretação não é para todos, nem todos são fortes para suportar o devir e o caos. Somente os homens guerreiros e bravos terão condições de dizer SIM À VIDA. Somente o perfil psicológico do Senhor poderá apreciá-la, como o albatroz, do alto, mesmo, por vezes, passando pelo deserto.


O ALBATROZ

Que maravilha! Voa ele ainda?
Continua a subir, e co’as asas paradas!
Que é que o levanta e agüenta?
Qual é o seu fito, o seu curso, as suas rédeas?
Voou ao máximo – agora é o próprio céu
Que ergue do alto o que voa triunfante:
Fica agora parado a pairar
Esquecendo o triunfo e o que triunfa.
Como a estrela e a eternidade,
Vive agora em alturas de que a vida foge,
Com dó mesmo da inveja:
E alto voou quem só o vê pairar!
Ó pássaro Albatroz!
Um eterno desejo me impele pra as alturas.
Pensei em ti: e então correu
Lágrima após lágrima, - sim, amo-te!


REGRAS DE BEM-VIVER

Para bem viveres a vida,
Deves ‘star acima dela!
Aprende, pois, a elevar-te!
Aprende a olhar para baixo!..

O mais nobre dos instintos
Enobrece-o com prudência:
Para cada quilo de amor,
Um grão de desprezo-próprio.


Nietzsche, nos seus poemas, faz uma exaltação à vida, que deve ser entendida como superabundância de forças, como mais tarde veremos na metafísica de artística, onde a alegria é mais profunda que o sofrimento. Platão dizia que a alegria quer a eternidade de todas as coisas, assim também é para o autor, e em relação ao sofrimento ansiamos pela hora em que ele cesse.


CANÇÃO DA EMBRIAGUEZ

Ó HOMEM! ATENÇÃO!
QUE DIZ A FUNDA MEIA-NOITE?
‘ESTAVA A DORMIR, A DORMIR -,
DE UM SONHO FUNDO ACORDEI: -
O MUNDO É FUNDO,
E MAIS FUNDO DO QUE O DIA PENSAVA
FUNDA É A SUA DOR –
A ALEGRIA – MAIS FUNDA AINDA QUE O PESAR:
A DOR DIZ: PASSA E MORRE!
TODA A ALEGRIA, PORÉM, QUER ETERNIDADE -,
QUER FUNDA, FUNDA ETERNIDADE.”


Neste próximo poema, Nietzsche ressalta que, para ser mestre, ou senhor é necessário uma extrema disciplina para consigo mesmo. Certas artes, conforme comenta em Schopenhauer Educador, não podem ser "adquiridas sem a orientação mais minuciosa e a aprendizagem mais penosa" (Schopenhauer Educador, 2004, p. 144)


PARA QUEM SOUBER DANÇAR

GELO LISO,
UM PARAÍSO
PARA QUEM SOUBER DANÇAR.


Dançar, na filosofia de Nietzsche, compõe um dos elementos básicos da possibilidade de transmutação, assim como o riso e o jogo – são poderes "afirmativos de transmutação: a dança transmuta o pesado em leve, o riso transmuda o sofrimento em alegria, o jogo do lançamento de dados transmuda o baixo em alto. (...) São poderes afirmativos de reflexão e de desenvolvimento. A dança afirma o devir e o ser do devir." (DELEUZE, 1976, p. 161) Todos eles estão em franca oposição ao anão da gravidade com quem Zaratustra se degladia.

Já que o Senhor corresponde a um estado de forças aumentado, se esconde dentro do corpo algo mais belo, a alma – no sentido do grande trabalho que o homem realiza consigo mesmo. No homem, temos criador e criatura) "A disciplina do sofrer, do grande sofrer – não sabem vocês que até agora foi essa disciplina que criou toda a excelência humana? A tensão da alma na infelicidade que lhe cultiva a força, seu tremor ao contemplar a grande ruína, sua inventividade e sua valentia no suportar, persistir, interpretar, utilizar a desventura, e o que então lhe foi dado de mistério, profundidade, espírito, máscara, astúcia, grandeza – não lhe foi dado em meio ao sofrimento? No homem estão unidos criador e criatura: no homem há matéria, fragmento, abundância, lôdo, argila, absurdo, caos; mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo, deus-espectador e sétimo dia – vocês entendem esta oposição? E sua compaixão diz respeito a 'criatura no homem', ao que tem que ser formado, quebrado, rompido, forjado, queimado, encandescido, purificado – ao que necessariamente tem de sofrer e deve sofrer? (PABM# 225 p. 132).


O MAIS BELO CORPO – UM VÉU APENAS...

O MAIS BELO CORPO – UM VÉU APENAS
COM QUE, PUDICO, SE COBRE – ALGO MAIS BELO.


Neste sentido, temos também a própria questão concernente à vida cotidiana, para o Senhor, prenhe de vontade de potência, os obstáculos servem de desafio, enquanto que para o escravo, de desestímulo e até mesmo de desistência.


FRAGMENTOS DE DITIRIMBOS DE DIONISIO - 15

A ESTA BELEZA DE PEDRA
SE REFRESCA MEU ARDENTE CORAÇÃO.


3. O AMOR

LAMENTO DE ARIADNE

Antes de entrarmos propriamente na poesia – Lamentos de Ariadne, teremos que recuar um pouco mais: na mitologia grega. A seguir, apresentaremos a poesia e posteriormente alguns focos de interpretação.

A figura de Ariadne está ligada tanto ao seu meio-irmão, o Minotauro, quanto ao grande herói, Teseu. Ambos são filhos de Poseídon, embora o herói não o saiba. Conta o mito que o rei Minos, pediu a Poseidon por um sinal que ele e não o seu irmão fosse o rei de Creta. Poseídon aceitou o pedido, porém pediu em troca que Minos sacrificasse, em sua homenagem, um lindo touro branco que sairia do mar. Mas Minos ficou tão impressionado com a beleza do animal que sacrificou um outro touro em seu lugar. Furioso, Poseidon fez com que sua esposa, Pasífae se apaixonasse pelo touro. Dessa paixão nasceu o minotauro. Com medo, Minos pede a Dédalo que construísse um labirinto subterrâneo para prender a criatura.

Androceu, filho de Minos foi morto pelos atenienses que invejaram suas vitórias no festival panátinaico. Para vingar a morte do filho, sete casais de jovens deviam ser levados de Atenas para servir de pasto ao Minotauro.

Teseu, após várias incursões heróicas, como matar o touro de Maratona, por exemplo, substituiu um dos rapazes escolhidos, o que confirma a origem etimológica do nome Teseu – Theso: o "homem forte por excelência". Ao chegar à ilha de Cnossos, Ariadne, uma das filhas de Minos se apaixonou perdidamente por Teseu, entregando-lhe uma espada e um novelo de lã, para que Teseu pudesse marcar na entrada o caminho e não se perder para sempre no labirinto, sob a condição de que se casaria com ela após esta empreitada. Com todo cuidado, Teseu escondeu-se entre as paredes do labirinto e atacou o monstro de surpresa, matando a terrível criatura. Teseu leva consigo Ariadne e faz uma parada na ilha de Naxos. Mas ela adormece e quando acorda está só. Ovídio em seu texto, Heróides -10,36, retrata seu lamento: " – O que lês, Teseu, envio-te daquela praia, donde, sem mim, as velas levaram teu barco, onde o perverso sono me traiu, de que perversamente tu me aproveitaste." (BRANDÃO,1987, p.163)

Teseu, um grande herói, explorou o amor de Ariadne e depois a traiu. Sua vitória sobre o minotauro acabou, pois sendo efêmera na medida em que usou das perversões da alma: astúcia e mentira. Em Naxos, Dionísio teria se apaixonado pela bela Ariadne. No início, sentindo-se só e totalmente desconsolada, ela rejeita Dionísio, mas depois acaba por aceitá-lo, casando-se com ele e, como presente de núpcias, o deus teria lhe dado um diadema de ouro, cinzelado por Hefesto, antes de levá-la ao Olimpo. O tal diadema teria se transformado em constelação. Para Nietzsche, como veremos, Ariadne e Dionísio, representam o par-perfeito e por vários motivos. Vamos, então, ao poema:


Lamento de Ariadne

Quem me aquece, quem me ama ainda?
Daí-me mãos quentes!
Daí-me braseiros para o coração!
Estendida, transida,
qual semi-morta a quem se aquecem os pés,
tiritando, ai! de desconhecidas febres,
estremecendo ante as ponteagudas e frias setas de gelo,
acossada por ti, pensamento!
Inominável, Oculto! Medonho!
Tu, caçador por trás das nuvens!
Fulminada pelo teu raio,
ó olhar escarninho que me fita do escuro!
Assim estou prostada,
vergo-me e contorço-me, torturada
por todos os eternos tormentos, atingida
por ti, crudelíssimo caçador,
ó desconhecido – deus...
Fere mais fundo!
Fere novamente!
Trespassa, quebra este coração!
Para quê este tormento
com setas de dentes embotados?
porque olhas de novo,
sem te cansares do suplício humano,
com os divino olhos que relampejam malícia?
Não queres matar,
Só torturar, torturar?
Para quê – atormentar-me a mim
Ó malicioso deus desconhecido?

Ah! Ah!
vens furtivamente
por esta meia-noite?
Que pretendes?
Fala!
Sufocas-me, oprimes-me,
Ah! demasiado perto já!
Ouves-me respirar,
auscultas o meu coração,
ó ciumento!
- ciumento de quê?
Vai-te! Vai-te!
para quê a escada?
queres penetrar nele, no meu coração, entrar nos meus mais recônditos
pensamentos, entrar?
Desvergonhado! Desconhecido! Ladrão!
Que queres tu roubar?
Que queres tu espiar?
que queres extorquir de mim pela tortura,
ó torcionário!

ó deus-carrasco!
Ou deverei eu, como um cão,
espojar-me diante de ti?
Submissa, fascinada, fora de mim
pedir-te amor – abanando a cauda?
v Em vão!
Fere novamente!
crudelíssimo aguilhão!
Não teu cão – mas tua presa sou agora,
crudelíssimo caçador!
a tua altiva prisioneira,
ó salteador por trás das nuvens ...
Fala enfim!
Tu, oculto no relâmpago! Desconhecido! Fala!
Que queres tu, salteador, de – mim? ...

Como? Resgate?
Que queres tu de resgate?
Exige muito – aconselha-te o meu orgulho!
e fala pouco – aconselha-te o meu outro orgulho!

Ah! Ah!
A mim – queres-me? a mim?
a mim – toda?

Ah! Ah!
E torturas-me, ó doido,
quebras com suplícios o meu orgulho?
Dá-me amor – quem me acalenta ainda?
quem me ama ainda?
dá-me mãos quentes,
dá-me braseiros para o coração,
dá-me, à mais solitária
a quem o gelo, ai! sete camadas de gelo,
ensinam a ansiar pelos inimigos,
pelos próprios inimigos,
dá-me, sim, rende-me,
crudelíssimo inimigo,
- a ti!...

Desapareceu!
Fugiu,
o meu único companheiro,
o meu grande inimigo,
o meu desconhecido,
o meu deus-carrasco!...
Não!
Regressa!
Com todos os teus tormentos!
Todas as minhas lágrimas correm
em torrente para ti
e a derradeira chama do meu coração
inflama-se para ti.
Oh! regressa,
meu deus desconhecido! minha dor!
minha derradeira felicidade! ...

(Um relâmpago. Dionísio aparece na sua esmeraldina beleza)

DIONISIO: Sê sensata, Ariadne!
< Tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas:
acolhe nelas uma palavra sagaz! –
Não há que odiar primeiro, antes de amar? ...
Eu sou teu labirinto...


Prá começar, podemos retomar a imagem do labirinto e das orelhas. As orelhas de Ariadne, assim como as de Dionísio, são pequenas, em forma de labirinto. "Tu tens orelhas pequenas, tu tens as minhas orelhas". As orelhas cheias e curvas e recônditos são afoitas ao entendimento de uma sabedoria inaudita, diferentemente das orelhas do asno que são pontiagudas. Sabemos muito bem que em Assim Falava Zaratustra, que o espírito sofre três mutações: do asno ou camelo para o leão, do leão para a criança. Neste momento, nos deteremos na figura do asno e de suas orelhas.

No geral, 'o asno representa o povo' – porém não devemos ser como o asno precipitando a interpretação – o próprio Nietzsche se denomina como o anti-asno, assim também deve ser o seu leitor, munido de um espírito crítico, sob pena de vulgarizarmos a preciosa interpretação. O asno, segundo Salaquarda, não se mostraria como uma "figura secundária de mera ridicularização da plebe, mas como uma figura de importância insuspeitada." Recorrendo à tradição oral das fábulas e contos de fada, Salaquarda, cita o dicionário dos Irmãos Grimm, onde o asno representa – "perseverança, tenacidade, capacidade para suportar, robustez, obstinação, esperteza e adesão, mas também mostra preguiça, rudeza, e insolência." Assim, Salaquarda procura indicar que o asno "não representa diretamente o povo, mas sim uma síndrome complexa que apenas se aplica ao povo", isto é, designa a tendência a compreender o que é dito ou escrito em seu significado mais trivial e imediato. "O asno, com suas grandes orelhas não tem uma escuta suficientemente refinada para penetrar, por exemplo, naqueles discursos cujo estilo se origina do estabelecimento de obstáculos seletivos para seus leitores". Com seu I-A, diz Sim, mas na verdade gostaria de dizer não, carregando fardos que outros não suportariam. Suas orelhas pontudas fazem dificultar o ingresso nos círculos subterrâneos do labirinto.

As orelhas pequenas são labirínticas. E um dos labirintos mais temíveis e colossais, é o labirinto de si mesmo, ou seja, a escalada para o auto-conhecimento. Esta é uma das tarefas mais difíceis de todo o homem. Como têm orelhas, o asno também não deixa de participar dela, mas não avança em demasia. "Mas o asno, portanto, não está absolutamente distante de Nietzsche, e esse anti-asno não é uma exclusão total do sentido de asno na compreensão que Nietzsche tem de si mesmo, pois se define como anti-asno, ou seja, pelo asno." Em outros termos, há que se precisar de certas virtudes de asno para se tornar seu antípoda – o anti-asno: obstinação e persistência.

Quem sabe, ele venha a ganhar orelhas pequenas que percebem os sons sutis, dotados de malícia e senso crítico, próprias do filósofo e de seu leitor cauto, onde poderá não só ouvir, mas acatar – como diz Dionísio: "Sê sensata, Ariadne (...) acolhe nelas uma palavra sagaz!" – palavras que pronunciam segredos, como a doutrina do eterno retorno. E ele continua: "Eu sou o teu labirinto", Dionísio é o labirinto de Ariadne, o inconsciente.

Para tanto, temos que recorrer ao mito do próprio Dionísio que foi retalhado ainda criança pelos titãs, que cozinharam suas carnes e as devoraram, mas renasce da coxa de Zeus, como Zagreu, porque Afrodite ou Atená salvou-lhe o coração que ainda palpitava. O mito de Dionísio reconduz-nos a questão elaborada por Heráclito – do Uno e Múltiplo, do eterno ciclo de nascimento e morte, ou do eterno retorno.

Assim como para que o Uno primordial pudesse se expressar, ele só pode fazê-lo através do múltiplo que se individualiza em cada ente. E cada ente é uma manifestação única deste múltiplo que se dissolverá posteriormente no Uno primordial. Esta concepção só pode ser compreendida, em primeiro lugar, se admitirmos um excedente de forças deste Uno capaz de gerar. Isto requer uma precisão conceitual que pode ser pontuada desde o Nascimento da Tragédia – "O pensamento de um deus, se quiserem, mas neste caso, de um deus puramente artista, absolutamente liberto do que se chama escrúpulo ou moral, para quem a criação ou destruição, o bem e o mal, sejam manifestações do seu arbítrio indiferente e da sua onipotência, que se desembarace ao criar mundos, do tormento de sua plenitude e de sua plétora que se liberte do sofrimento dos contrastes acumulados em si próprio. (...) de quem é portador dos sofrimentos mais atrozes, dos conflitos mais irredutíveis, dos contrastes mais perfeitos, de quem não pode libertar-se senão na aparência: eis a metafísica de artista." (OT.4, p. 24).

Este uno primordial, para libertar-se de si mesmo, cria e manifesta-se na sua criação – é por isso que Dionísio precisa de uma noiva: Ariadne. "Quem além de mim sabe o que é Ariadne?" (EH, III, Assim falava Zaratustra, 8)

"A mim – queres-me? a mim?
A mim – toda?"


Mas isto não significa que Dionísio represente um deus triste, pelo contrário, Dionísio é o deus da alegria, sua tarefa é nos tornar leves, "ensinar-nos a dançar, dar o instinto de jogo."(DELEUZE,1976, p.15)

Em segundo lugar, só há sentido neste par, neste jogo entre Dionísio e Ariadne – uno e múltiplo, um verdadeiro e profundo mistério. Este, para Nietzsche, é o par-perfeito, representado pelo anel nupcial ou pela coroa. O anel representa o eterno ciclo da criação e destruição, o eterno retorno, sem começo, meio ou fim. O anel representa a própria eternidade. "O eterno retorno 'aproxima ao máximo' o devir e o ser, afirma um do outro; é preciso ainda uma segunda afirmação para operar esta transformação. Por isso o eterno retorno é um anel nupcial. Por isso, no universo dionisíaco, o ciclo eterno é um anel nupcial, um espelho de núpcias o qual espera a alma (anima) capaz de mirar-se nele, mas também de refleti-lo ao mirar-se." (DELEUZE,1976, p. 156)

"As pedrarias da coroa de Ariadne são estrelas. Será este o segredo de Ariana? A constelação jorrada do famoso lance de dados? É Dionísio quem lança os dados. É ele que dança e se metamorfoseia, que se chama 'Polygethes', o deus das mil alegrias." (DELEUZE, 1976,p 15).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS

BRANDÃO. MITOLOGIA GREGA E LATINA VOLII . Editora Vozes, Petrópolis, 1987.

DELEUZE. NIETZSCHE E A FILOSOFIA. Ed. Rio, Rio, Col. Semeion, 1976

DIAS, ROSA MARIA - MOSÉ, V. NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM. Ed. Civilização Brasileira, Rio, 2004

NIETZSCHE. POEMAS. Ed. Centelha, Coimbra, 1986.

NIETZSCHE. A ORIGEM DA TRAGÉDIA. Trad. Paulo César Souza. Cia das letras,

NIETZSCHE. ECCE HOMO. Trad. Paulo César Souza. Ed. Max Limonad, São Paulo, 1985

NIETZSCHE. ASSIM FALAVA ZARATUSTRA. Guimarães Editores, Lisboa, 1987

NIETZSCHE. PARA ALÉM DE BEM E MAL. Trad. Paulo César Souza. Cia das Letras, São Paulo, 1992

NIETZSCHE. DITIRAMBOS DE DIONISIO. Guimarães Editores, Lisboa, 1988

NIETSCHE. SOBRE A VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA MORAL. In: O Livro do Filósofo. Ed. Moraes, São Paulo, 1988

NIETZSCHE. HUMANO, DEMASIADO HUMANO. Trad. Paulo César Souza. Cia das letras, São Paulo, 2005.

NIETZSCHE. SCHOPENHAUER EDUCADOR. In: ESCRITOS SOBRE EDUCAÇÃO.Trad. Noéli Correia de M. Sobrinho. Ed. PUC-RJ/Loyola, RJ, 2004

SALAQUARDA, J. A CONCEPÇÃO BÁSICA DE ZARATUSTRA’ in Cadernos Nietzsche no.2, Ed. Discurso, São Paulo, 1997













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