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Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


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LOUISE LABÉ: UMA INTELECTUAL E UM "EU LÍRICO FEMININO" EM UMA HARMONIOSA ARTICULAÇÃO DO DISCURSO AMOROSO

Egisvanda Sandes
Universidade Mackenzie


Mini currículo dos autores 



O Renascimento é uma época caracterizada por transições. Transição econômica e política (feudalismo – capitalismo), transição social (ruptura com as estruturas medievais) e transição artística (redescoberta e revalorização das referências da antiguidade clássica). Todas estas transições resultam em valores humanistas e naturalistas que levam em sua base conceitos associados ao Humanismo: o neoplatonismo, o antropocentrismo, o hedonismo, o racionalismo, o otimismo e o individualismo [1], cujo precursor é Petrarca.

Apesar de todas essas mudanças na sociedade e no pensamento da época, a mulher parecia estar em absoluto repouso intelectual e histórico; e continuava-se esperando que uma mulher fosse o objeto de mais alta virtude, que possuísse apenas dons naturais: bela e adorada, que se dedicasse às atividades cotidianas reduzidas ao casamento, em uma vida isolada e que, intelectualmente, somente desenvolvesse artes como tricô, tapeçaria, pintura e música (Fortuna, 1995). No entanto, nesse contexto aparece uma mulher que diz:

Beijai-me agora, e muito, e outra vez mais,
Dai-me um de vossos beijos saborosos,
E depois, dai-me um desses amororos,
E eu pagarei com brasa o que me dais.

Virei vos socorrer, se vos cansais,
Com mais dez beijos longos, langorosos,
E assim, trocando afagos tão gostosos,
Gozemos um do outro, em calma e paz.

Vida em dobro teremos, sendo assim;
Eu viva em vós e vós vivendo em mim.
Deixai que vague, pois, meu pensamento:

Não dá prazer viver bem comportada;
Bem mais feliz me sinto, e contentada,
Quando cometo algum atrevimento.


Assim sendo, é mais apropriado analisar a vida e a obra dessa autora sob a perspectiva de uma mulher que soube adaptar-se e comportar-se de acordo com esse contexto de transições e que inflamou o pensamento de sua época e das épocas posteriores com suas atitudes, baseadas em um “feminismo” que desvendava sabedoria e, sobretudo, o sentimento de um “eu poético” explicitamente feminino. Louise Labé nasceu em 1522/1526, em Lyon, e morreu em 1566, em Parcieux-em-Dombes, na França. Era filha de um rico cordoeiro, fato de unido à sua beleza, resultou em seu apelido, la Belle Cordière. Teve uma educação refinada: sabia latim, grego, italiano, música e, inclusive, arco e flecha. Segundo Fortuna (1995), alguns murmúrios dizem que ela chegou a participar no cerco de Perpignan (1542) como Capitain Loys. Sua obra se resume a três elegias, 24 sonetos e uma Disputa de Amor e de Loucura, mas de tamanha acuidade que não seria necessário mais além do que esta poetisa publicou.

O mais intenso de seus textos é o Disputa de Loucura e de Amor, escrito por volta de 1552, em que deuses da mitologia greco-romana são apresentados como metáforas/alegorias dos comportamentos/sentimentos humanos, em uma representação que projeta o constante conflito. A atemporalidade das colocações, o texto totalmente pagão sem alusão a dogmas ou a valores cristãos, a vivacidade e rapidez dialógica, que é uma grande inovação para a sua época, pois foge inclusive das regras rígidas petrarquistas, mostram que Louise Labé possuía grande conhecimento tanto da moda como da ciência de sua época. Inclusive, traz uma série de exemplos que são alusões e referências históricas que dão à obra um caráter realista, sobretudo apresentando os modos dessa nova sociedade burguesa renascentista, a subjetividade do amor, a função da arte amorosa, a visão erótica da beleza e o amor instintivo. Quanto ao tema, a poetisa trata da questão crucial da renascença: distinção entre Razão (harmonia entre os indivíduos) e Ação (o estímulo, o risco, a ciência e a imaginação), ou seja, o querer e o fazer. No entanto, é por meio de suas elegias e de seus sonetos que Louise Labé explicita as principais características de sua obra. Os seus sonetos, sobre os quais comentaremos neste artigo, possuem uma construção formal aos moldes petrarquistas. Neles se encontram os três estigmas presentes em toda sua poesia: o amor, o desejo (que escapa ao silêncio) e o lamento, como no Soneto II:

Ó belos olhos, ó olhares cruzados,
Ó quentes ais, ó lágrimas roladas,
Ó negras noites em vão esperadas,
Ó dias claros em vão retornados!

Ó tristes queixas, ó anseios dobrados,
Ó tempo gasto, ó aflições passadas,
Ó mortes mil em redes mil jogadas,
Ó duros males contra mim lançados!

Ó riso, ó fronte, dedos, mãos e braços!
Ó alaúde, viola, arco e compassos:
Chamas demais para uma só mulher!

De ti me queixo: esses fogos que trago
No coração causaram muito estrago,
Mas não te queima um lampejo sequer.


Como comenta Fortuna (1995), nos sonetos de Louise Labé o amor é apresentado “como o mal terrível”, mas “a falta de desejo é a morte. A ausência de amor talvez seja muito pior do que a espera pelo amado. Quem busca o amor, encontra veneno, e neste veneno encontra a cura. O amor faz errar – por ser equivocado e por ser errante.” (p. 37), como expressado no Soneto IV, apresentado mais adiante. Ressalta Martínez (1976), que o tema único e exclusivo da poesia de Louise Labé é o “Amor”:

“un ‘tú’ y un ‘yo’ poéticos articulan el discurso amoroso. Pero a través de él y como implicaciones importantes, vemos aparecer la transferencia a otros temas más absolutos, como son el arte, la poesía, o el poder creador, así como otros que afectan más terrenalmente al poeta o a la pareja poética, como son la muerte, el tiempo, la distancia… Este tema de la distancia, unido al de la conciencia de la falta de reciprocidad en el amor, ante la que la poetisa unas veces se rebela y otras se resigna, es importante.” (p. 40)

Assim, sua obra possui um caráter pessoal e um aspecto confessional e nela suspira de amor, como quase todos os poetas de sua época, mas sem re restringir à na idealização. Labé falou de amores reais como o Rei Henrique II (tinha privilégios reais, mas nunca lhe dedica claramente um poema) e o diplomata francês que servia na Itália, Oliver de Magny. No Soneto X, a autora faz alusão aos feitos reais destes amantes, que são apresentados como um poderoso Orfeu, grande amante da mitologia grega, e até mesmo como Apolo, o deus da divina distância, que levava em si a própria antítese da vida, entre curar e proteger e ao mesmo tempo ser o deus da morte súbita, como é o amor na obra da poetisa:

Quando te vejo, o rosto louro ornado
De lauréis verdes, tocar o alaúde,
E a te seguir forçar de modo rude
Árvores, pedras, quando coroado,

Te olho de dez mil virtudes cercado,
Erguendo a honra à maior altitude,
E dos demais ofuscar a virtude,
Meu coração pergunta apaixonado:

“Tantas virtudes te fazem amado,
Tantas te fazem ser tão estimado;
Não poderiam, pois, fazer-te amar?

E, acrescentando à virtude louvável,
Tua maneira de ser muito amável,
Meu doce amor ainda te inflamar?”


Louise Labé poderia ter sido o exemplo maior do platonismo amoroso da renascença francesa, mas ultrapassa o idealismo e fala do ato amoroso, como no Soneto VIII, no qual fala de um desejo que faz e se desfaz e da exaltação e da pressão diante da existência, em uma construção paradoxal própria do Renascimento:

Eu vivo, eu morro; no fogo eu me afogo.
No calor sinto o frio que me perfura;
A vida é muito mole e muito dura.
Sinto fastios e alegrias logo.

Jorrando as lágrimas, o riso eu jogo,
E com prazer sofro muita amargura;
Meu bem se vai, mas eterno perdura;
Vicejo assim que me resseca o fogo.

Assim amor volúvel faz comigo;
E quando penso estar mais dolorida,
Sem mais pensar me vejo sem castigo.

Se penso estar feliz e sem perigo,
E estar bem no auge da sorte querida,
Ele me faz novamente sofrida.


Ao contrário de Platão, que concebe a alma como o refúgio do amor, que leva à felicidade a partir da elevação espiritual (para tanto, era necessário estar acima da matéria e, no caso das mulheres, ter virtudes como as amenidades naturais e a contemplação da natureza, ou seja, certa castidade), Louise Labé trata do desejo, dos prazeres e do amor conforme a visão petrarquista do mal necessário, como no Soneto IV, em que trata da força cruel do amor, com seu doce veneno que mata e ao mesmo tempo cura:

Desde que Amor cruel envenenou
O peito meu no fogo que fulmina,
Ardi-me sempre na fúria divina,
Meu coração jamais o abandonou.

Qualquer tormento, a que ele me obrigou,
Qualquer perigo e vindoura ruína,
Ou mau presságio que tudo termina,
Meu coração jamais se amedrontou.

Por mais que Amor nos ataque raivoso,
Mais nos obriga a vê-lo venturoso,
Sempre saudável ao vir combater.

Não é por isso que nos favorece,
Ele que os Deuses e os homens esquece,
Mas por mais forte aos fortes parecer.


Além disso, Labé inverte o papel do amado, pois agora é claramente a dama que o louva, inclusive expressando sensualidade ao descrever o ato do amor, como no soneto Soneto VII:

Vê-se morrer toda coisa animada,
Quando do corpo a alma leve parte. [2]
Eu sou o corpo, e tu a melhor parte.
Onde estás, pois, ó alma bem-amada?

Nunca me deixes tão sobressaltada,
Para salvar-me após seria tarde.
Ah, não coloques teu corpo em tal arte:
Junta-lhe a parte e metade estimada.

Mas vem, Amigo, e sê bem cuidadoso
Nesse reencontro e retorno amoroso,
Acompanhando-o, nunca de dureza.

Nem de rigor: mas de graça amigável,
Que docemente tem tua beleza,
Antes cruel, agora favorável.


Sua condição de rica e estudiosa, além de bonita e, embora casada, independente, permitia que ela recebesse em sua casa humanistas e poetas, entre os quais não só divulgava seus escritos, mas também defendia as ideias feministas de seu tempo. Em uma carta enviada por Louise Labé para uma amiga de Lyon, Mademoiselle Clemence de Bourges, em 24 de Julho de 1555, escreve:

“É chegado o tempo, Mademoiselle, em que as leis inflexíveis dos homens não mais impedirão as mulheres de se devotarem às ciências e disciplinas; parece-me que aquelas que forem capazes, irão empregar esta honrada liberdade, a qual nosso sexo outrora tanto desejava, em estudar estas coisas e mostrar aos homens o mal que causaram em nos privar do benefício e da honra que poderiam nos advir. E se alguém chega ao estágio no qual seja capaz de pôr suas idéias no papel, deveria fazê-lo com muito intelecto e não deveria desprezar a glória, mas adornar-se com ela antes do que com correntes, anéis e roupas suntuosas, as quais não podemos considerar realmente como nossas exceto pelo costume. Mas a honra que o conhecimento nos trará, não nos pode ser tomado – nem pela astúcia de um ladrão, nem pela violência de inimigos, nem pela duração do tempo.”

Desta forma, essa mulher, nascida em pleno século XVI, com uma “filosofia de vida praticada com liberdade e fundamentada no amor” (Fortuna, 1995: 15), deixa seus vestígios da voz feminina, em um verdadeiro desvendar dos caminhos da sabedoria e do sentimento, que a transforma em um acontecimento em Lyon e, desde então, em uma grande representante da poesia francesa no Renascimento e da força da mulher que penetra o espaço reservado exclusivamente aos homens em sua época, mas que, para isso, sofreu difamações de seus contemporâneos como meretriz e cortesã, resultando-lhe, conforme destaca Martínez (1976), apelidos, com alusões positivas e negativas à sua livre conduta, como “la dame au luth”, “le Capitaine Loys”, “la nymphe du Rhône” e “la Sapho du XVI siècle”. Difamações estas às quais não deixou de responder à altura, embora com extrema elegância, como no último soneto de sua obra, Soneto XXIV, dirigido principalmente às “damas” de sua época:

Não censureis, Damas, se tenho amado:
Ou se senti mil tochas abrasantes,
Fadigas mil, mil dores penetrantes.
Se por chorar vi meu tempo esgotado,

Ah! Que meu nome não seja acusado.
Se eu falhei, sofro as penas atuantes,
Não aguces os ferrões acirrantes:
Pensai que Amor, quando tiver chegado,

Sem vosso ardor de um Vulcano[3] escusar
Sem a beleza de Adônis usar,
Vos tornará talvez mais amorosas.

Mesmo com menos do que eu tive então,
Será estranha e forte esta paixão.
E não sejais portanto desditosas.


Assim, a poesia de Louise Labé revela uma personalidade cheia dos paradoxos próprios de seu contexto cultural, em uma mistura de sensualidade e paixão, e repleta de sentimentos resultantes da ausência e da presença do ser amado, fator condicionante do “doce mal”, que é o Amor.



BIBLIOGRAFIA

DUARTE, Sérgio. Louise Labé. “Mulher de verdade” ou “criatura de papel”? – mistérios da escrita. Disponível em http://flabbergasted2.wordpress.com/2008/05/09/louise-mulher-de-verdade-ou-criatura-de-papel (Consultado em 2009).

DUARTE, Sérgio (tradução, seleção e apresentação). Três mulheres apaixonadas: poemas de Gaspara Stampa, Louise Labé e Elizabeth Barret Browning. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Desfazendo os mitos do amor: Louise Labé. In: ALCÂNTARA, Beatriz; SARMENTO, Lourdes. Amor nos Trópicos – Ensaios e Seleta de Poemas Contemporâneos. Ceará: UFC, 2000, pp. 123-127.

FORTUNA, Felipe (trad., prefácio e notas). Louise Labé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995.

FORTUNA, Felipe. Louise Labé: criatura de papel?. Jornal do Brasil, Caderno Idéias & Livros, 12 de abril de 2008. Disponível em http://subrosa3.wordpress.com/2008/05/09/louise-labe-criatura-de-papel/ (Consultado em 2009).

MARTÍNEZ, Caridad (tradução, prefácio e notas). Louise Labé: obra completa. Barcelona: Bosch, 1976.

MARTÍNEZ, Caridad. Las elegías de Louise Labé, Anuario de filologia. Secció G, Filologia romànica, Vol. 25, Nº 13, 2003, Poesía y el tiempo trágico, pp. 15-26. Disponível em http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2015939 (Consultado em fevereiro de 2010).

MARTÍNEZ, Caridad. Louise Labé. Una consciència poètica per a la dona nova. In Amor e identidad. SEGARRA, Marta & CARABÍ, Àngels (eds.). Barcelona: PPU, 1996, pp. 21-28.

ARAGÓN, Mª Aurora. El vocabulario afectivo en los poemas de Louise Labé, Archivum, XXXI-XXXII, 1981/1982, pp. 113-131.




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NOTAS

[1] No Neoplatonismo, discutido por Plotino, a perfeição e a felicidade (uma só e mesma coisa) podem ser adquiridas pela devoção à contemplação filosófica (segundo esta corrente, a alma é elevada à divindade e não está submetida aos prazeres do corpo: o desejo); no Antropocentrismo, o Homem passa a ser o centro do universo, portanto, do pensamento da época; no Hedonismo, oriundo da Grécia pós-socrática com Aristipo de Cirene, o prazer é considerado como o supremo bem da vida humana; no Racionalismo, o raciocínio, a lógica e o pensamento liberal são ideais básicos; no Otimismo, que na filosofia é característica do pensamento de Leibniz, vê-se o lado positivo em tudo e desfrutar o possível do mundo em que se vive; e, no Individualismo, prega-se a liberdade frente às imposições sociais e morais.

[2] Este tema da separação entre o corpo e a alma é próprio do Neoplatonismo.

[3] Vulcano era bem mais velho e era o marido de Vênus, que se apaixona por Adônis, que é bem mais jovem e um belo amante, assim como Louise Labé se casou, por dote, com Ennemond Perrin, 32 anos mais velho que ela.




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