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Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


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A INCONSTÂNCIA E O DESEJO DE AMOR NA OBRA
POÉTICA DE FLORBELA ESPANCA

Samuel Macário
Aluno da Universidade Mackenzie


Mini currículo dos autores 


Uma voz de mulher invade o silêncio. Uma voz que quer dizer, confessar, chorar. Uma alma que tem anseios fortes pelo amor e pela dor. Assim é a obra de Florbela Espanca (1894-1930), cheia de mistério, profunda dor e Amor.

Florbela d’Alma da Conceição Espanca nasceu em Vila Viçosa, no Alentejo. Freqüentou o curso primário na própria vila de nascimento e o secundário em Évora. Em seus trinta e seis anos de existência, viveu de forma conturbada, uma vida cheia de sofrimentos, angústias e decepções e em sua obra reproduz toda a carga destes sofrimentos. Pode-se considerá-la a voz mais forte da lírica feminina da história de Portugal e até mesmo da literatura em língua portuguesa. Sua poesia é intensa e elevada de traços e cores em forma de palavras; é carregada de erotismo e toda a voz de feminilidade, num “malabarismo poético” em que ela nunca deixa que esses “malabares de versos em chamas” caiam, e nesse visual de imagens artísticas ela conversa com sua alma e esta dialoga com a nossa.

Suas primeiras composições datam dos anos de 1903/1904, textos os quais a autora assinava como Flor d’Alma da Conceição. O poema “A Vida e a Morte”, um soneto em redondilha maior em homenagem ao irmão é o primeiro texto da poetisa que se tem registro. Nestes primeiros versos já se podem observar dois dos elementos que aparecerão em toda sua obra, a dor e a tristeza. Seu primeiro texto em prosa é um conto chamado “Mamã!”, de 1907; no ano seguinte Florbela perde sua mãe, que falece com apenas 29 anos.

Devido à Revolução Republicana de 05 de outubro de 1910, Florbela Espanca se torna uma das primeiras mulheres em Portugal a freqüentar o curso secundário. Logo sua família muda-se para Porto e a poetisa interrompe os estudos, porém, buscava sempre ocupar seu o tempo com leituras de grandes autores.

Casou-se pela primeira vez em 1913 com Alberto de Jesus Silva Moutinho, o casal reside primeiramente em Redondo e depois, por conta de dificuldades financeiras, voltam a Évora e se instalam na casa dos Espanca. Três anos mais tarde a poetisa reúne uma seleção de sua produção desde o ano anterior e inaugura o projeto “Trocando Olhares”. Esta coletânea, que conta com oitenta e cinco poemas e três contos, servirá como ponto de partida para suas publicações posteriores. Nesse mesmo ano a tentativa de divulgar suas poesias falhou.

No ano de 1917, em Évora, a poetisa completou o 11º ano do Curso Complementar de Letras e matriculou-se na Universidade de Lisboa no curso de Direito, sendo uma das catorze mulheres entre trezentos e quarenta e sete alunos inscritos. Sua primeira obra sai dois anos depois, “Livros das Mágoas”, e teve uma edição de 200 exemplares que se esgotaram rapidamente.

Um ano depois, Florbela Espanca abandona o curso de Direito, se separa de Moutinho para se casar com o amante, o alferes de Artilharia da Guarda Republicana, António José Marques Guimarães. Ela vai residir com ele em Porto e, no ano seguinte, o casal se muda para Lisboa.

Sua segunda publicação, “O Livro de Sóror Saudade”, é em 1923 e a edição foi paga pelo pai da poetisa. Nesse mesmo ano Florbela Espanca começa a dar aulas de Português por causa de uma crise financeira. Em 1925 a poetisa divorcia-se pela segunda vez e se casa com o médico Mário Pereira Lage. Durante alguns anos, a poetisa não encontrou editor para seu terceiro livro, “Charneca em Flor”. Preparava também por volta dos anos de 1927 o seu livro de contos, “O Dominó Preto”, publicado apenas após sua morte em 1982. Neste ano morre seu irmão Apeles em um acidente de avião e a perda leva a autora a um estado de depressão. Em 1930, morre Florbela Espanca as vésperas da publicação de “Charneca em Flor”, em sua terceira tentativa de suicídio, provavelmente por uma dose excessiva de Veronal.

Sua obra poética caracteriza-se pelo “eu” e se desvincula de qualquer cunho social ou de engajamento político. Seus textos apresentam beleza, cores e egocentrismo, nos quais a forma e o verso são carregados de emoções que se entrelaçam. Algumas palavras são repetidas em quase todos os seus poemas, como reflexo da paixão que é sempre tema central de seus textos: alma, amor, saudade, beijos, versos, poeta e algumas outras que derivam sempre do sofrimento recorrente em sua obra. O “eu” Lírico nunca é um observador distante, mas sempre aquele que está interno a este sofrimento.

Uma das principais questões nos poemas da autora é a busca do amor como, por exemplo, no soneto “Amar!”:

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Este poema foi publicado em sua obra póstuma, “Charneca em Flor”. Nele há uma discussão sobre o amor, tão recorrente na poesia de Florbela Espanca. Pode-se ligar esse texto ao próprio contexto de vida da autora, já que este mostra um amor que não se prende a um ser, pois, como já comentado, autora se casou por três vezes. Nestes versos, o “eu” lírico demonstra a mesma tendência a não se prender a um único Amor e até faz uma denúncia ao amor que seja eterno e o julga como hipócrita ou como falso amor, como nos versos: “Quem disser que se pode amar alguém/Durante a vida inteira é porque mente!”. É um dos sonetos mais conhecidos da autora e exprime uma tendência inconstante do “eu” lírico. Em outros textos de Florbela também se apresenta esse contexto de “desapego”, como no poema “Inconstância”:

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

Este poema foi publicado em seu segundo livro, “Livro de Sóror Saudade”, obra que passou quase que despercebida pelo público de sua época. Apresenta a procura de um Amor que surge e foge do “eu” lírico, diferentemente de seu poema “Amar!”, em que a inconstância do “eu” para com o Amor era o tema. Aqui ocorre o contrário, o Amor, personificado, é quem em certos momentos se apega e se desapega desse "eu", como nos versos finais: “E esse amor que assim me vai fugindo/É igual a outro amor que vai surgindo/Que há-de partir também... nem eu sei quando...”. O jogo de luz descrito no poema entre luz/trevas comparam-se ao fato de o amor ir e vir, como o dia e a noite. A construção com cores em seus poemas é outra característica da obra de Florbela: uma mistura sempre de cores fortes, que em um quadro seriam pinceladas de cores vivas e sombrias, ao mesmo tempo, em um jogo entre claro e escuro, como os momentos da vida e dos sentimentos da própria autora.

Outro poema que trata do amor, mas agora como lamento, é “Alma Perdida”:

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!...

Publicado em seu primeiro livro, “Livro de Mágoas”, este poema expressa um amor não alcançado e a dor da Alma queixosa por este feito, que se compara à de um rouxinol e há um lamento por não ter este amor verdadeiro. A mágoa e a dor de não encontrar são definidos nos gestos alucinantes do pássaro que está angustiado como a alma do “eu”. Nas duas primeiras estrofes, há muitos verbos no passado que remetem a amores de outrora (“um sonho que passou”): alguém que parecia ser o amor verdadeiro e foi só um sentimento passageiro.

Essa busca por um amor verdadeiro aparece nos três poemas apresentados e, inclusive, pela própria temática, nota-se em Florbela uma obra desvinculada de qualquer tratamento social. Há a presença de um “eu” lírico que procura fazer uma confissão de suas angústias ao leitor e fazê-lo examinar questões mais espirituais e sentimentais. No entanto, em sonetos como “Versos de Orgulho”, o “eu” lírico, que coincide com a autora, mostra uma reação às críticas a ela feita em sua época. Aqui Florbela ressalta sua condição de pensadora, superior aos demais, mas ao mesmo tempo, se mostra angustiada pela solidão e pela falta de amor:

O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém!

Porque o meu Reino fica para Além!
Porque trago no olhar os vastos céus,
E os oiros e os clarões são todos meus!
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em flor,
A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos meus braços:
Via Láctea fechando o Infinito!...

A partir dessa breve apresentação sobre Florbela Espanca e alguns de seus poemas, é possível perceber em sua obra textos carregados de temas implícitos ao ser humano, como a dor e a tristeza, causadas pela falta do mais primordial dos sentimentos, que é o amor. Esses sentimentos se resumem a uma angústia recorrente em seus versos, que se mostram mais confessionais e totalmente desprovidos de discussões sobre temas sociais.


BIBLIOGRAFIA

MOISES, Massaud. A Literatura Portuguesa Através dos Textos. São Paulo: Cultrix, 1968.

ESPANCA, Florbela. Poemas. Edição de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

GONÇALVES, Maria M. T. et al. Homenagem à Florbela Espanca, Cadernos de Teoria e Crítica Literária, nº.15, Araraquara, 120 p., 1988.






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