Cora Coralina, vivendo de 1889 a 1985, influenciada por diversas tendências culturais, sociais, políticas e econômicas, desenvolveu aguda percepção da realidade vivamente transposta para seus textos poéticos. Com a admiração de figuras importantes como Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado, a autora conquistou o campo literário a partir de 1965, por ocasião do lançamento de seu primeiro livro, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, pela editora José Olympio.
Nascida Ana Lins de Guimarães Peixoto Bretas, na Cidade de Goiás, iniciou a produção literária com o conto “Tragédia na roça” e tornou-se conhecida pelo público leitor brasileiro principalmente a partir da homenagem de Carlos Drummond de Andrade (1983, p. 23):
Minha querida amiga Cora Coralina:
Seu “Vintém de Cobre” é, para mim, moeda de ouro, ou de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia.
No entanto, o nome de Cora Coralina ainda não alcançou até hoje o reconhecimento merecido e isso se dê, talvez, pela cor local que predominantemente aplicava a seus textos, retratando a sociedade da qual ela participava. Para Heloísa Marques Miguel (2003, p.12) poucas vezes Cora tem sido posta no lugar que lhe cabe no panorama nacional da poesia moderna. José Mendonça Teles (2001, p.44) afirma que
Não se sabe o que é mais admirável, nesta Cora que estreou na literatura, publicando seu primeiro livro, numa idade em que a maioria dos escritores abandona sua pena: se a sua lírica singela, mas expressiva, ou se a forte personalidade, que agigantava a figura humana, apoiada em muletas. Transfigurada pelo fogo sagrado do verbo, incendiada pela emoção poética, Cora Coralina dava a impressão de ser uma força vital, uma explosão da natureza, quando erguia-se trêmula, mas segura, para dizer seus versos. Os auditórios silenciavam-se reverentes, quando ela aparteava sonolentas reuniões literárias, desafiando oradores, questionando conceitos modorrentos.
Vendendo seus livros em casa, juntamente com o comércio de seus doces que eram muito procurados, Cora Coralina divulgava de maneira discreta a sociedade de Goiás dos séculos XIX e XX, sua vida e seu olhar crítico daquela sociedade, registrando a importância da leitura dos efeitos do tempo (2006, p. 25):
Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso.
É o que procuro fazer para a geração nova, sempre atenta e enlevada nas estórias, lendas, tradições, sociologia e folclore de nossa terra. Para a gente moça, pois, escrevi este livro de estórias. Sei que serei lida e entendida.
Em 1907, foi criado em Goiás um jornal feminino, A Rosa, impresso em papel cor-de-rosa e dirigido por Rosa Santarém Godinho Bello, Alice Augusta de Santana Coutinho, Leodegária de Jesus e Cora Coralina, o qual publicava, ao lado dos socialmente necessários textos de autoria masculina, as produções das mulheres que não eram incorporadas aos jornais comuns da época, mas que formaram um grupo determinado a avançar pelo mundo machista e limitador da mulher, como afirma Cora Coralina (2006, p. 87-88) nos versos de “O passado” :
O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
“Clube Literário Goiano”.
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.
Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.
Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.
D. Virgínia, Benjamin.
Rodolfo, Ludgero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.
O Passado ...
A partir de 1911, Cora Coralina começa a vivenciar radicais mudanças intelectuais favorecidas pelas Vanguardas européias que começavam a invadir o país. No entanto, seu marido a proíbe de integrar-se à Semana de Arte Moderna em 1922, mesmo vindo morar na capital de São Paulo.
Sua vida na grande metrópole limitava-se ao lar, à leitura das obras de autores modernistas, a alguns trabalhos assistenciais e à escritura de poemas que ficariam esperando pela publicação por um bom tempo ainda. Quando Cora Coralina (2007, p.135) voltou para sua terra natal, mais de quatro décadas depois, percebeu que trazia hábitos diferentes dos comuns de Goiás como afirma nos versos de “Voltei”:
Voltei. Ninguém me conhecia.
Nem eu reconhecia alguém.
Quarenta e cinco anos decorridos.
Procurava o passado no presente e lentamente fui
identificando a minha gente.
O livro, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, publicado pela primeira vez em 1965 e reeditado em 1978 (hoje esgotado na editora), tornou-se de conhecimento público quando Cora Coralina contava já com idade avançada, o que não a impediu de apresentar em seus poemas uma escrita consciente em termos sociais e, partindo do princípio de que as lutas contribuem para mudanças importantes, a autora assumiu um estilo firme e denso, refletindo a respeito dos comportamentos padronizados moralmente pela sociedade de Goiás.
Quando Carlos Drummond (2001, p.45) recebeu um exemplar do livro, ele quis imediatamente saber mais sobre Cora Coralina e escreveu uma carta à universidade:
Rio de Janeiro, 14 de julho de 1979. Cora Coralina. Não tendo o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã do teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina. Todo o carinho, toda a admiração do seu Carlos Drummond de Andrade.
Carlos Drummond de Andrade, como era de seu feitio, após ler alguns escritos da autora, manda-lhe uma carta elogiando seu trabalho, a qual, ao ser divulgada, desperta o interesse do público leitor e a faz ficar conhecida em todo o Brasil.
Depois de inúmeras homenagens e prêmios, Cora Coralina ganha o título de Doutora Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal de Goiás e o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano de 1983, prêmios que, embora meio tardios, representam a sensibilidade de alguns intelectuais ao valorizarem a poesia feminina brasileira tão intensamente rejeitada.
Cora Coralina em 96 anos de vida envolvida por doces e palavras semeou na poesia nacional do século XX grãos que se transformaram em grandes alimentos da alma de seus leitores famintos da sensibilidade que nela era algo de existência natural: a doçura da observação da vida em diversas dimensões que eternizam a figura de Cora Coralina, como dizem os versos por ela compostos e que adornam seu túmulo na Cidade de Goiás:
Morta… serei árvore
Serei tronco, serei fronde
E minhas raízes
Enlaçadas às pedras do meu berço
São as cordas quebradas de uma lira.
Enfeitai de folhas verdes
A pedra do meu túmulo
Num simbolismo
De vida vegetal.
Não morre aquele
Que deixou na terra
A melodia de seu cântico
Na música de seus versos.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond de [Rio de Janeiro, sete out. 1983]. Carta de Drummond. In: Coralina, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 8ª. ed. São Paulo: Global, 2001.
CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 22ª. ed. São Paulo: Global Editora, 2006.
______. Melhores Poemas de Cora Coralina. Seleção Darcy França Denófrio. São Paulo: Global, 2004
______. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 9ª. ed. São Paulo: Global Editora, 2007.
CURADO, Bento Araújo Jayme Fleury Curado. Sopro em brasas dormentes: inventário das precursoras da literatura em Goiás. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, 2003.
MIGUEL, Heloísa Marques. A poesia de Cora Coralina: um modo diferente de contar velhas estórias. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, 2003.
PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,1998.
TELES, José Mendonça. No santuário de Cora Coralina. 2. ed. Goiânia: Kelps, 2001.