A AQUISIÇÃO DE LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS E LÍNGUA PORTUGUESA ORAL POR UMA CRIANÇA OUVINTE NUM LAR BILÍNGUE
Débora Rodrigues Moura
Pesquisadora da área da surdez, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Centro Universitário Unifieo , tutora do curso de Letras Libras da USP e mãe de Fábio (criança foco deste artigo)
Fábio de Sá e Silva
Surdo, pesquisador da área da surdez, professor de Língua Brasileira de Sinais do SENAC, das Faculdades Anhanguera e pai de Fábio (criança foco deste artigo)
O presente relato tem como principal objetivo compartilhar a experiência em relação à aquisição de línguas por um bebê ouvinte num lar bilíngüe, onde os pais comunicam-se em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e em Língua Portuguesa. Trata-se de um estudo inicial que pretende dar base e sustentação para futuros trabalhos de pesquisa mais aprofundados. No ambiente em questão, o pai surdo profundo utiliza exclusivamente a LIBRAS para comunicar-se, a mãe ouvinte utiliza a LIBRAS e a Língua Portuguesa e na ausência do pai predominantemente a Língua Portuguesa. Salienta-se que a criança interage em ambientes onde se usa exclusivamente a LIBRAS, pois freqüenta eventos, festas, casas, etc. em que as pessoas são, em sua grande maioria, surdas usuárias de Língua de Sinais e em outros em que se utiliza exclusivamente a Língua Portuguesa. É interessante observar ainda que, nos ambientes em que se usa somente a língua oral, o bebê faz uso da língua gestual, quando deseja algo e quando simplesmente quer partilhar, confirmar ou refutar alguma afirmação. Para ilustração do exposto no relato, serão utilizadas fotos, vídeos e análise dos mesmos, ancorada em alguns estudos desenvolvidos na área da surdez.
Fábio é uma criança ouvinte que já recebeu seu nome em Língua Portuguesa e seu nome em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) na maternidade. Este último, denominado seu sinal em LIBRAS foi escolhido por seus pais, após seu nascimento, observando algumas características visuais que lhe eram peculiares. Sorrindo desde o primeiro dia, fora possível observar covinhas em seu rosto e a maneira de dormir, sempre colocando a mão ao lado do queixo, próximo ao local da covinha, conforme exposto na foto abaixo.
Abaixo podemos observar por meio da imagem o sinal de Fábio sendo produzido pelo pai.
Um dos aspectos que merecem destaque neste relato é a percepção visual da criança. Fábio presta atenção a tudo que acontece ao seu redor, ao que o pai sinaliza, mesmo antes de se expressar oralmente ou em sinais. Já nos primeiros meses, observava atentamente o pai lhe contando histórias, sem desviar o olhar ou dormir. De acordo com Quadros e Karnopp (2001), para que o bebê possa transcender para etapas posteriores na aquisição da língua de sinais, o contato visual mantido com o interlocutor tem papel importante, pois é nesta prática que o uso de expressões faciais, repetição de alguns sinais, além de movimentos mais lentos ou amplos são fundamentais para que a criança compreenda e se aproprie dos significados envolvidos, podendo assim emiti-los posteriormente. No vídeo abaixo podemos observar o pai brincando com Fábio e utilizando a língua de sinais.
É interessante observar que a criança foca o olhar no pai, no rosto, movimentos e responde com o sorriso. Nesta época estava com cerca de 4 meses de vida e nem conseguia sentar ainda.
Com o passar do tempo, observou-se que Fábio começou a tentar imitar não só a língua oral por meio de vocalizações, mas também a língua sinalizada, por meio de gesticulações. A pesquisadora Petitto, da Universidade McGill, no Canadá, inicia em 1987, os estudos sobre a aquisição de língua de sinais por crianças surdas filhas de pais surdos. Apesar desse não ser o caso, pois Fábio é ouvinte, pode-se constatar que o mesmo se aplica nesta situação. A autora afirma que, da mesma forma como os bebês ouvintes balbuciam, os bebês surdos expostos à línguas de sinais também o fazem com as mãos, tentando imitar os movimentos seus pais. Em alguns vídeos e livros, a professora comparou os movimentos realizados com as mãos por bebês expostos a línguas orais e por bebês expostos a língua de sinais, verificando que as gesticulações são distintas nos lares onde se utiliza uma língua visual. Os movimentos em dessas crianças seguem o que a autora chamou de um padrão de rítmo específico e diferem de outros movimentos realizados com as mãos por bebês expostos somente a línguas orais. No Brasil, Karnopp e Quadros respectivamente em 1994 e 1995, iniciam os estudos sobre a aquisição de Língua Brasileira de Sinais. Ao pesquisarem as fases de aquisição denominam de pré-linguístico, o período que corresponde do nascimento aos primeiros sinais. No vídeo abaixo podemos observar Fábio com 6 meses de vida, sentado no colo do pai imitando-o com suas mãos, ainda que de forma imprecisa. Em várias outras situações de vida diária foi possível observar o balbucio em sinais de Fábio, principalmente quando os pais conversavam nesta língua visual e, na tentativa de participar, ele começava a movimentar suas mãos utilizando movimentos circulares, com expressão facial, sem inteligibilidade, porém demonstrando intenção comunicativa.
Segundo Karnopp e Quadros (2001) após esse período chamado de pré-linguístico, a criança exposta a língua sinais passa ao período denominado estágio de um sinal. Nesta fase, o uso do apontar pela criança diminui gradativamente. Conforme Petitto (1987), neste momento a criança passa a utilizar o sinal como um elemento linguístico. Segundo as autoras este período inicia-se por volta dos 12 meses e se estende até os dois anos. Nos vídeos abaixo podemos observar alguns sinais emitidos por Fábio, que serão explicados em sua respectiva ordem. No primeiro deles estava com 6 meses de vida.
Neste vídeo a mãe diz oralmente que está fazendo, faz o sinal correspondente a comer e ao agir mostra para a criança o significado da palavra e do sinal. A criança imita o sinal apresentando indícios que já começou a estabelecer algumas significações entre a ação, a palavra e o sinal.
No próximo vídeo observa-se uma interação da mãe com a criança que pergunta onde está o pai. Ao dizer oralmente que o pai foi ao banheiro, a criança emite o sinal de banho, demonstrando que já conhece o sinal e o associa com a palavra banheiro. A mãe explica-lhe que o pai não foi tomar banho, mas sim foi fazer xixi e desta forma, a criança corrige o sinal adequando-o a situação comunicativa.
No vídeo a seguir, pode-se observar os sinais correspondentes a tomar banho e a banheiro sendo produzidos da maneira convencional. O bebê ainda não domina totalmente a posição correta para produção dos sinais, do mesmo modo que uma criança ouvinte também não emite os fonemas da mesma maneira que um adulto.
A seguir, temos uma situação em que Fábio, a partir da observação do ambiente, emite o sinal correspondente a coelho ao visualizar duas promotoras de venda fantasiadas devido a Páscoa. O sinal foi emitido espontaneamente e em seguida, confirmado pela mãe.
Podemos concluir que já teve início o período denominado estágio de um sinal e agora aguarda-se que se dê início a combinação de múltiplos sinais para a formação de sentenças.
Um aspecto que suscita debates e discussões entre os pesquisadores, já destacado por Karnopp e Quadros (2001), está relacionado a possibilidade de que a aquisição da língua de sinais tenha início antes da aquisição da língua oral. Nesta experiência, observa-se que Fábio compreende muitas palavras ditas a ele oralmente, porém emite muito mais sinais do que fala palavras em português. De acordo com as autoras, entre os estudiosos discute-se sobre a iconicidade presente nas línguas de sinais, aspecto este que segundo Ferreira-Brito (1995) refere-se as “formas linguísticas que tentam copiar o referente real em suas características visuais”; sobre o desenvolvimento motor das mãos e a própria interferência dos pais na produção dos sinais. Acreditamos que este aspecto merece mais estudos e pesquisas, visto que há tanto a ser descoberto.
Outro aspecto que merece destaque é o questionamento: qual será a Língua Materna de Fábio? Conforme Ferreira-Brito (1995), a língua materna do Surdo é a língua de sinais por ser uma língua que pode ser adquirida sem artificializações, por intermédio de exposição, de modo natural. Além disso, é uma língua que ele pode dominar totalmente, visto que utiliza a visão, canal que tem preservado. Também há relatos de ouvintes, filhos de pais surdos, que utilizam a Língua de Sinais como primeira língua e a língua oral aprendem somente mais tarde. Algumas dessas pessoas relatam no livro de Sacks (1989), que pensam em sinais quando necessitam refletir sobre uma situação mais complexa. E Fábio? Estando num lar bilíngüe desenvolverá duas línguas maternas?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KARNOPP, L. & QUADROS, R. M. de. A criança de 0 a 6 anos e a Educação Infantil: um retrato multifacetado. Edulbra. Canoas. 2001.
PETITTO, L. On the Autonomy of Language and Gesture: Evidence from the Acquisition of Personal Pronoums in American Sign Language. IN: Cognition. Elsevier
Science Publisher B.V. vol. 27, 1987, p. 1-52.
FERREIRA-BRITO, L. Por uma Gramática de Língua de Sinais. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro/ UFRJ, Departamento de Lingüística e Filologia, 1995.
SACKS, Oliver. Vendo vozes. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.