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Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


Índice  Autores deste número  Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


Índice  Autores deste número 




REFLEXÃO SOBRE EXCLUSÃO E PRECONCEITO A PARTIR DA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DE FOUCAULT [1]

Marcela Cristina de Meireles
Aluna Universidade Mackenzie


Mini currículo dos autores 


O debate acerca do diferente sempre despertou muitos conflitos. Ao longo da História o que mais se verifica são exemplos de preconceito, discriminação e intolerância.

Na alta Idade Média a personagem que mais sofria discriminação, exclusão e isolamento era o leproso. A sociedade da época o expulsava da cidade e, posteriormente, o mantinha enclausurado nos hospitais para leprosos, também chamados de leprosários. Relata Foucault em seu livro A História da Loucura na Idade Clássica (FOUCAULT, 1978) que no fim da Idade Média, entretanto, a figura do leproso no posto de excluído social será substituída pela figura do louco. Os considerados loucos, os quais durante muito tempo também foram expulsos das cidades como passageiros sem destino da “Nau dos Loucos” – navegação em que eram levados para portos distantes, ou abandonados à deriva –, passaram a ser institucionalizados, ocupando as estruturas que antes eram destinadas aos leprosos; na Idade Clássica o poder eclesiástico e da nobreza irá estender a classificação de louco a todo aquele que representasse perturbação, incômodo ou ofensa aos seus padrões, internando, assim, tanto loucos como mendigos, prostitutas, deficientes físicos e etc..

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Freqüentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados estranhamente semelhante aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento [...] e numa cultura bem diferente as formas subsistirão – essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas a reintegração espiritual. (FOUCAULT, 1978, pp. 6-7).

Com a industrialização essas personagens passaram a ser utilizadas como mão-de-obra barata, exploradas, mas não menos excluídas e discriminadas.

Posteriormente, esta questão, a saber, a necessidade de padronização, ganha uma nova nuance: seguindo o percurso histórico, devido à industrialização e métodos de produção em série como o Fordismo e o Taylorismo, em que padronização, rapidez e eficiência são as palavras de ordem, as pessoas passaram a almejar o padrão em tudo, inclusive em relação a si mesmas, e a desejar alcançá-lo cada vez mais rápido. Esta sede por padrão e rapidez é alimentada pela comunicação de massa e pela Indústria Cultural. Quanto a isso atesta Adorno e Horkheimer:

Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva fornecia, a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. (...) Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.113).

Com a Indústria Cultural a padronização assume mais uma função: garantir que as pessoas, tomadas agora por meros consumidores, tenham os mesmos gostos, opiniões e desejos. Assim a mídia impõe padrões e estereótipos, modelos a serem seguidos ou não de acordo com as demandas do sistema e os interesses dos poderosos.

Soma-se a esse contexto a idéia defendida por Jean Yves Leloup, Roberto Crema e Pierre Weil segundo a qual a sociedade sofre de uma nova patologia, a normose [2]. Segundo Weil (apud NETO, 2005, p.48),

a normose pode ser definida como o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Em outras palavras, é algo patogênico e letal, executado sem que os seus autores e atores tenham consciência de sua natureza patológica.

Ao comentar a frase do professor Hermógenes (considerado o fundador da ioga no Brasil) quanto à normose , a jornalista e escritora Martha Medeiros (2007), colunista do jornal Zero Hora, refere-se a essa necessidade da sociedade atual por modelos e padrões afirmando que “todo mundo quer se encaixar num padrão. Só que o padrão propagado não é exatamente fácil de alcançar. O sujeito ‘normal’ é magro, alegre, belo, sociável e bem-sucedido. Quem não se ‘normaliza’ acaba adoecendo.”

Tudo isso mostra como histórica e culturalmente a sociedade se estabelece mergulhada em preconceitos, os quais são alimentados por alguns poucos que detêm o poder em função de seus interesses. Além disso, essa herança histórica imputa às pessoas um medo profundo de serem punidas caso fujam ao padrão estabelecido, o qual é reforçado pela normose. Dessa maneira parece justo concluir que o anseio pela padronização juntamente com o medo da exclusão, alimenta preconceitos entre as pessoas que são facilmente manipuladas pela comunicação de massa (vale a pena ressaltar a importância que tal elemento sempre teve e continua tendo na formação de opinião, desde coisas simples como ditar tendências na moda, até em momentos históricos como o Nazismo), a qual, em contrapartida, reforça tais preconceitos em benefício da perpetuação desse sistema e da dominação.

Desse modo, no atual contexto, a problemática que vive o surdo não foge à regra. Em 19 de maio de 2009, o médico Ricardo Bento concedeu uma entrevista no programa Mais Você, da apresentadora Ana Maria Braga – Rede Globo – afirmando que pessoas surdas somente teriam qualidade de vida se usassem o implante coclear [3] , que uma criança surda iria depender a vida inteira de alguém, não conseguiria estudar nem trabalhar. Com sua entrevista o doutor fez parecer que o implante curaria a surdez e que não existia nenhum ponto negativo quanto à sua utilização.

Porém, o próprio site do implante coclear no Brasil [4] fala de alguns ‘contras’ deste recurso, tais como o fato de que não é permitido aos implantados fazerem alguns exames médicos como a ressonância magnética, de que há interferência por parte de outros aparelhos eletrônicos – celulares e monitores de bebês, por exemplo – e de radiação eletromagnética que existe em telas de computador, televisão e microondas, além de que a eletricidade estática provocada pelos balões, piscinas de bolinhas e escorregadores para as crianças também interfere prejudicando o uso do aparelho. Há também situações em que o implante aciona ou dispara sistemas de seguranças em lojas, detectores de metal e etc., além da recomendação para que o implantado não faça esportes de contato, para não prejudicar o uso do aparelho caso haja alguma pancada na área do implante.

Nada disso foi mencionado durante a entrevista, e o implante coclear apareceu como um aparelho miraculoso que cura a surdez, quando na verdade o que ele faz é estimular o nervo auditivo, substituindo o ouvido interno.

Quando esse tipo de coisa acontece, quando um médico dá uma declaração fragmentária (ou fragmentada), tendenciosa e cheia de preconceitos num programa de grande audiência na televisão, ele está servindo apenas a este sistema manipulador e aos seus próprios interesses profissionais, já que para um cirurgião especialista em implante coclear, quanto mais pacientes convencidos a fazer tal cirurgia, melhor. Além disso, ele está fazendo uso de sua credibilidade médica - e a do programa, que é popular – para sentenciar que esta é uma sociedade de ouvintes e para ouvintes, que ser surdo é fugir do padrão e, portanto, ruim. Assim, quem é ouvinte rapidamente passa a penalizar-se pelos surdos e enxergar algo que é uma diferença física como uma desigualdade ou inferioridade. As pessoas esquecem que os surdos têm sua própria língua e cultura, e de que o som só é algo indispensável do ponto de vista do ouvinte. Ouvir é apenas um aspecto da vida humana, não é o único, de forma que vida nenhuma depende da audição, a felicidade de ninguém depende do som.

Ademais, é preciso aprender a deixar de temer as diferenças e entender que é por meio do outro (que é diferente do eu) que se percebe aquilo que se é e o que não se é. Não é possível a idéia de um ‘eu’ sem a idéia de um ‘outro’ – de vários outros.

A esse respeito afirma Zanella (2005, p.103) que “mais do que reconhecer o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e que não terá, o encontro permanente e incessante com o outro possibilita reconhecer a pluralidade do que se é e do que se pode vir a ser.”

Logo, é preciso que a sociedade se liberte dos seus preconceitos e da dominação, que aprenda a conviver – ou seja, viver junto – com as diferenças entre as pessoas, ciente de que diferença não é o mesmo que desigualdade, e que aquele que é diferente não necessita de pena, mas de aceitação e respeito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas. In: ___. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1978.

NETO, Elydio dos Santos. Normose e Prática Docente: Desafio para a Formação de Professores. In: Revista de Educação do Cogeime. São Paulo, ano 14, n° 26, ju