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Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


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O JOGO DA TRADUÇÃO

Thaís Helena Affonso Verdolini
Universidade Mackenzie


Mini currículo dos autores
 


Muitas são as teorias que buscam explicar a tradução, seus procedimentos, seus caminhos e sua relação com diversas áreas do conhecimento.

Há séculos se estendem as discussões em torno da complexidade do ato tradutório e da busca de regras que orientem as traduções, principalmente a de textos literários. Há um empenho incansável – desde o início dos estudos formais, são diversas obras publicadas todos os anos, e pelo mundo todo acontecem congressos, encontros e discussões fervorosas – de tradutores e tradutólogos para teorizar sobre o assunto, a fim de se buscar uma convergência entre as muitas áreas de conhecimento envolvidas.

Essa tarefa tão complexa que atinge, de algum modo, todos os âmbitos da vida cotidiana – das obras literárias aos filmes; dos artigos científicos aos jogos eletrônicos; dos livros técnicos aos manuais de produtos – é inegavelmente um recurso extremante útil e poderoso à sociedade e à cultura.

Considerando-se a importância e a onipresença da tradução, não é nada fortuito o fato de haver tantos estudos de diversas áreas que, de alguma maneira, procuram contribuir com os estudos da tradução com novas perspectivas e abordagens. Hoje, a tradução pode ser considerada multidisciplinar, de grande profundidade e amplitude, que busca subsídios nas mais variadas disciplinas.

Johan Huizinga, notável filósofo e grande estudioso do jogo como elemento da cultura, em sua obra Homo Ludens (publicada em 1938), construiu um tratado sociológico que se tornou referência em estudos sobre a Teoria dos Jogos, estabelecendo uma relação profunda entre jogo e cultura. Na referida obra, comparou a vida jurídica ao jogo. Também o fez com a guerra. Equiparou a criação da poesia a uma tarefa lúdica. Por que não considerar, por conseguinte, a tradução como um jogo? Esse será o desafio deste ensaio.

O jogo está na gênese do pensamento, da descoberta de si mesmo, da possibilidade de experimentar, de criar e de transformar. O jogo é tido como uma categoria absolutamente primária e essencial da vida. Os elementos constitutivos do jogo, tais como a fantasia criativa, a imaginação, as regras e a competitividade são circunspetos e necessários, e podem se aplicar a vários setores da vida diária. As atividades humanas, das leis à linguagem, podem ser vistas como o resultado de um jogo, conforme apontou Huizinga: “não vejo, todavia, razão alguma para abandonar a noção de jogo como um fator distinto e fundamental, presente em tudo o que acontece no mundo” (2004, prefácio).

Huizinga (2004) evidencia em sua obra as características fundamentais do jogo, como sendo este um ato voluntário, que se concretiza como evasão da vida real, com orientação própria, ocorrendo dentro de um limite específico de tempo e de espaço. Outro componente presente no jogo é a tensão, expressa pela incerteza: não se sabe o desfecho antes que o jogo acabe. As regras, contudo, são possivelmente as que têm papel primordial em um jogo, consoante aponta o autor: “as regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão (...) e não há dúvida de que a desobediência às regras implica a derrocada do mundo do jogo” (p.14).

Outro estudioso que analisa cautelosamente os jogos e sua relação com a cultura é Roger Caillois, em seu Os jogos e os Homens, publicado em 1958. O autor afirma que os jogos são em vasto número e de múltiplos tipos, mas que apesar dessa quase infinda diversidade e com uma notável constância, “a palavra ‘jogo’ evoca por igual as ideias de facilidade, risco ou habilidade” (p.9). O termo jogo, para ele, designa também as imagens, símbolos e instrumentos necessários para seu funcionamento. Bem como Huizinga, – apesar de divergir de algumas noções por ele propostas, o que não caberá ao presente artigo discutir – o sociólogo francês menciona ainda o desempenho de papéis, o conceito de risco e o sistema de regras que definem o jogo e não podem ser violadas.

Para um cotejamento com a tradução, buscar-se-á eliminar a banalização e a vulgarização que se fez do jogo, ressaltando-se os seus aspectos criadores e não os negativos, alteando-se o jogo como possibilidade do exercício da criatividade humana. Em quadra, o tradutor. Seu adversário, o texto que precisa verter. As regras, muitas. O desafio, intenso. O risco e a tensão, constantes. Na torcida, o leitor, que aguarda o resultado final sem sequer imaginar a batalha que se travou para tanto.

Na conhecida definição de Catford (1965, p.20), um dos primeiros linguistas a teorizar sobre tradução, a tradução é “a substituição de material textual de uma língua por material textual equivalente em outra”. Sabe-se hoje que não é tão elementar assim. A tradução não é um simples jogo de azar ou uma partida ao acaso. Não basta conhecer dois idiomas e transpor palavras de um para outro. A tradução pode ser tão complexa e laboriosa quanto um jogo de quebra-cabeças ou de xadrez, e tão exaustiva e estuante quanto uma partida de bola.

Como em um quebra-cabeça, as palavras precisam ser encaixadas com precisão, as frases têm de ser enfileiradas com astúcia, para se criar um cenário belo, suave, uniforme. É preciso ter paciência, atenção, disciplina. Qualquer peça mal colocada transforma o resultado do jogo em fracasso, no caso, um texto mal escrito ou sem fluência, que certamente será criticado ou mal interpretado pelo público.

Conforme explicado por Madeira (2001), no jogo de xadrez, o fator sorte – presente em muitos outros jogos – quase inexiste; são necessários muito mais o raciocínio e a inteligência para jogar, o que se aplica plenamente à tradução. Além disso, apesar da parte divertida, por ser um jogo – entram aí a paixão por línguas e pela profissão – o xadrez não é um jogo social; apresenta um caráter sério. Caillois (1990) cita também o elemento de tensão e solução que domina todos os jogos solitários de destreza e aplicação. Em que outra profissão encontrar-se-ia um jogador tão solitário, aplicado e hábil quanto na tradução?

Huizinga (2004, p.12) aponta que “o jogo tem tempo para acabar, enquanto está acontecendo tudo é movimento, mudança, sucessão, associação, separação”. Exatamente o mesmo ocorre na tradução: prazos estritos para o término do jogo e, durante o processo, o tradutor-jogador faz experiências, muda o que foi escrito, relê, edita, revisa. Muito interessante, também, é o que diz Huizinga (2004) a respeito do que ocorre após o jogo: “mesmo depois de terminado o jogo, ele permanece como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória” (p.13). Tal afirmação cabe perfeitamente na tarefa tradutória, que culmina em uma nova produção a ser mantida.

O autor cita, ainda, a importância cultural de o jogador poder gabar-se aos outros de seus êxitos ao término do jogo: “os frutos da vitória podem ser a honra, a estima, o prestígio” (Huizinga, 2004, p.57).

Em esportes como o futebol, os jogadores cometem vários erros, os quais são esquecidos tão logo uma boa jogada é realizada. Um gol marcado, então, leva-os à glória e aos aplausos incessantes dos espectadores. Bons artilheiros conhecem a fama e o prestígio.

Os tradutores, infelizmente, são como os goleiros.[1] Os goleiros podem até fazer defesas brilhantes durante toda a partida, mas um gol tomado irá provocar vaias e críticas ferrenhas durante a semana toda, às vezes uma chacota durante anos. Cada bola perdida – no caso, cada deslize na tradução – é lembrada e motejada incessantemente, até por aqueles que não conhecem a árdua trajetória dos bastidores do jogo. Raramente um tradutor recebe elogios por um texto bem versado, mas certamente é fustigado a qualquer mínima palavra esquecida em um projeto enorme. A plateia é cruel.

Os tradutores são os goleiros da língua escrita. O crédito fica sempre com o autor do texto original, restando àqueles somente as penalidades de qualquer lapso. Os tradutores são amantes das palavras, e devem aproveitar suas horas em busca da melhor tradução sem esperar aplausos; só pelo prazer de jogar. Os tradutores, como os goleiros, assumem os riscos, que são “a avaliação dos recursos disponíveis e o cálculo das eventualidades previstas” (Caillois, 1990, p.11).

A publicação de Caillois (1990) também explicita formas diferentes de interação dos indivíduos a partir da natureza do jogo, delineando as categorias de Agon, Alias, Mimicry e Ilinx.

Agon é a que está presente nos jogos de competição, nos quais a igualdade de oportunidades se torna artificial, para que os competidores se enfrentem em condições ideais. A rivalidade é o elemento principal, e o resultado se estabelece por meio de mérito pessoal.

Alea é a categoria característica de jogos nos quais a decisão não depende do jogador, em que o elemento principal compreende o acaso. Nela, a habilidade não tem poder e o jogador lança-se ao destino. É o caso dos jogos de azar.

Mimicry caracteriza o jogo em que se faz presente a ilusão, a interpretação e a mímica. Permeados pelo uso de máscaras, o jogo torna-se uma grande representação com a construção de diversos personagens. Incluem-se nessa categoria as interpretações teatrais e dramáticas.

Ilinx refere-se à busca da vertigem e o do êxtase, consistindo em romper por algum instante a estabilidade da percepção e da consciência em um pânico voluptuoso, como os dançarinos quando se põem a girar.

Pode-se paragonar a tradução à classe de Mimicry, pois a tradução é um jogo que demanda do tradutor o uso de várias máscaras, a interpretação de diversos personagens, como apontou Robinson (2002, p.42) “que habilidade faz com que seja possível ‘tornarem-se’ médicos, advogados, engenheiro, poetas, executivos, mesmo que por alguns momentos diante da tela do computador?”

O estilo e o modo de desempenhar esses papéis são únicos a cada tradutor. Embora tenha que seguir as regras determinadas pela língua – e pelo cliente que contratou o jogador ou o time – o profissional tem suas idiossincrasias, sua liberdade inventiva, as quais certamente afetarão o texto. Arrojo (2007, p.44) corrobora essa afirmação: “nossa tradução de qualquer texto será fiel não ao texto original, mas àquilo que consideramos ser o texto original, (...) à nossa interpretação do texto de partida, que será sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos”. Essa prerrogativa igualmente pertence ao jogo, consoante assinala Caillois (1990, p.11): “o termo jogo combina, então, em si, as ideias de limites, liberdade e invenção”.

A propósito de invenção, Huizinga (2004) também fala da poesia como um jogo, refutando a ideia de que a mesma só tem uma função estética; afirma que ela possui uma função social e litúrgica. A tradução, principalmente a tradução literária, é também uma criação, na qual o tradutor precisa exercer toda sua força criativa para encontrar soluções. É ainda, sem dúvida alguma, uma ferramenta que possui função social. É um jogo que produz bens e cria riquezas e, por conta dessa característica, não se encaixa na particularidade do jogo em seu sentido stricto.

Segundo Caillois (1990), o jogo se opõe ao caráter sério da vida real, e por isso é considerado frívolo. Opõe-se ao trabalho e não produz nada – nem bem, nem obras. Não cria riqueza e se fundamenta na gratuidade, sendo, portanto, desacreditado quaisquer que sejam os cuidados que nele se ponham e rigor que ele exija.

O autor francês, porém, continua a descrever sua concepção de jogo dizendo que: “se o jogo é, verdadeiramente, a mola primordial da civilização, é impossível que seus segundos sentidos não se revelem também instrutivos”. (p.10). Ou seja, é admissível que o jogo crie frutos que perdurem.

Graças ao jogo da tradução, podemos trocar informações e conhecimentos em todos os campos do saber. A tradução existe como necessidade de compreender o mundo circundante, o universo cultural e as diferentes políticas, além de a globalização ter demonstrado que as culturas precisam umas das outras no seu desenvolvimento político, econômico e social, conforme comenta Bassnet (2003, p.2):

A explosão dos meios eletrônicos de comunicação nos anos noventa e as suas implicações nos processos de globalização deram particular visibilidade às questões ligadas à comunicação intercultural (...). A tradução tem papel crucial a desempenhar ao contribuir para melhorar a compreensão de um mundo cada vez mais fragmentado.


Pequeno jogo de tradução de palavras Diferentes línguas tratam de diferentes maneiras a carga semântica das palavras. Palavras e expressões sofrem modificações ao longo da história. Alguns idiomas têm três ou mais palavras para expressar conotações relacionadas ao jogo, como é o caso do alemão e do sânscrito, entre outras. Brincar e jogar são as expressões que em português determinam as ações ligadas ao jogo. Mesmo que a brincadeira sugira a premissa do objeto brinquedo, a ação representada pelo uso da palavra torna a atividade um jogo.

Pinheiro (2007) elucida essa distinção comparando com as expressões utilizadas em inglês, idioma no qual as palavras utilizadas são game e play. Em português há a diferença de dois verbos, no inglês, de um substantivo e um verbo (que também pode vir a ser um substantivo, mas com outro significado). Play significa brincar, jogar, tocar. Possui um sentido atrelado a um ato determinado de competição ou entretenimento.

Em inglês, a expressão “brincar de um jogo” leva a uma frase que em português soa como um pleonasmo, “jogar um jogo”, mas na qual se percebe que a simplicidade do ato realmente é indispensável para o entendimento da atividade. Em inglês “play a game” é a expressão que designa o ato de jogar, que em português seria o que parece óbvio e inevitável. Em língua inglesa, no entanto, não é redundante pelo fato de haver outras expressões que podem ser atribuídas ao verbo play, como “play the guitar”, “play a CD” etc.

As traduções para o português mudam como significado do objeto, pois para os falantes desta língua jogar possui um significado bastante restrito no cotidiano. Na língua inglesa, o sentido de jogo parece estar imbricado, por forçada sua expressão, a um campo mais vasto que na língua portuguesa.

O próprio tradutor de Huizinga (2004) para o português adverte, no primeiro rodapé de nota do tradutor, sobre a falta de exatidão de tradução que ocorrerá ao longo da obra por conta da diferença nos termos entre as línguas europeias e a língua portuguesa.

Huizinga, por sua vez, comenta a diferença de termos entre os idiomas:

Não seria lícito esperar que cada uma das diferentes línguas encontrasse a mesma ideia e a mesma palavra ao tentar dar expressão à noção de jogo. (...) acontece que a categoria geral de jogo não foi distinguida com idêntico rigor por todas as línguas, nem sempre sendo sintetizada em uma única palavra. (p.33-34).

Diferentes conotações à parte, notáveis obras, frutos de pesquisas, e os mais diversos produtos circulam pelo mundo de maneira reconhecível e familiar por conta da tradução, jogo que demanda treinamento, assiduidade, disciplina e estratégias muito eficientes contra o adversário, o texto que insiste em apresentar novidades a cada partida.


BIBLIOGRAFIA

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática . São Paulo: Ática, 2007.

BASSNETT, Susan. Estudos de tradução: fundamentos de uma disciplina . Trad. Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

CAILLOIS, Roger. Man, Play and Games . Translated by Meyer Barash. Chicago, University of Illinois Press, 2000.

CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os Homens . Trad. José Garcez Palha. Lisboa: Cotovia, 1990.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens . Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2004.

MADEIRA, Wagner Martins. Machado de Assis: homem lúdico . Uma leitura de Esaú e Jacó. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001.

PINHEIRO, Cristiano M. P. Apontamentos para uma aproximação entre jogos digitais e comunicação . Tese de doutoramento. PUC-RS, 2007.

ROBINSON, Douglas. Construindo o Tradutor. Trad. Jussara Simões. São Paulo: EDUSC, 2002.


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NOTAS

[1] Analogia com base em artigo de Gabe Bokor, disponível em http://translationjournal.blogspot.com/2007/02/goalie.html



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