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Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


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QUE HÁ DE LÚDICO NO POEMA?

Luiz Camilo Lafalce
Universidade Mackenzie


Mini currículo dos autores
 


Poema que é bom/acaba zero a zero./
Acaba com./Não como eu quero. [...]
(Leminski)

As principais perspectivas teóricas que, durante o século XX, tiveram como objeto de reflexão a literatura e, em particular, a poesia, apoiadas em grande parte nos estudos de Saussure, desenvolveram seus fundamentos e métodos analíticos tendo como foco principal a própria materialidade lingüística do poema, num movimento contrário à tendência crítica impressionista ou mesmo biográfica praticada no passado. Deslocaram, assim, do fazer poético para o fazer crítico, a conhecida boutade de Mallarmé: poesia não se faz com idéias, se faz com palavras.[1] Essa mirada analítica convergiu para investigações que pretenderam buscar o modo de ser específico da linguagem poética, a sua literariedade, independentemente do aspecto temático e/ou de possíveis relações que a obra pudesse estabelecer com o contexto social e político.

Tratava-se, antes de tudo, de isolar o objeto em si mesmo e buscar sua constituição formal, suas leis de composição, sua estrutura. É, de um modo geral, a linha de pesquisa desenvolvida, por exemplo, por estudiosos do Círculo Linguístico de Moscou (1915-1920) – Chklovski, Tynianov, Jakobson –, pelo estruturalista Samuel Levin, pelos adeptos do New Criticism –, como Eliot, Clean Brooks, Allen Tate, entre muitos outros.

Tynianov (1982), por exemplo, endossando a idéia de Rosenstein, concebeu a construção poética como cerrada “correlação objetiva das partes da representação”, abordagem eminentemente linguística – do texto poético em particular e do texto literário em geral – que encontrará seus fiéis defensores tanto no New-Criticism norte-americano, como no Estruturalismo. De acordo com sua tese, o poema seria mais um jogo de significantes, com sugestões semânticas “flutuantes”, do que propriamente um texto com objetivo de comunicar algo, como já assinalava ironicamente Goethe – para o grande romântico alemão, na poesia “uma palavra chama a outra e resulta finalmente não se sabe o quê, que, decerto, não significa nada, mas parece significar alguma coisa” (apud Tynianov, 1982, p.16). De acordo com Tynianov, no texto poético, a carga semântica comunicativa da palavra passaria para um segundo plano e, em seu lugar, em função da relação que as palavras assumiriam no texto, surgiriam os “traços flutuantes da significação”, ou o “semantismo aparente”:

Numa série (verso) particular, a palavra poderia estar inteiramente “desprovida de conteúdo”, isto é: 1) o traço fundamental da sua significação pode introduzir muito poucos elementos novos, ou então 2) pode mesmo não ter nenhuma relação com o “sentido” da unidade rítmica e sintática. E todavia, a ação da contração da série estende-se igualmente sobre ela: “embora não se tenha dito nada, parece que se disse algo”. É que a contração da série (a contiguidade estreita) pode determinar e pôr em evidência os traços flutuantes da significação, uma “ilusão de significação” (Ibidem, p.18-19).

No poema “Serenata sintética”, de Cassiano Ricardo (1957, p.279), por exemplo,

Rua
torta,

Lua
morta.

Tua
Porta.

o substantivo “porta” (último verso”), não qualificado nem eufórica nem disforicamente, (estaria aberta ou fechada?) rima com os dois adjetivos anteriores (“torta” e “morta”), formando uma “série” (esquema rímico). Mas não só: são vocábulos dissílabos e paroxítonos. Essa relação formal entre as palavras – incluindo-se ainda a posição que assumem nos versos ( as três correspondem ao segundo verso das respectivas estrofes), possibilita que os “traços flutuantes da significação” migrem dos adjetivos para o substantivo. Ocorre, aqui, uma contaminação semântica por conta da equivalência morfossonora. A sugestão de mistério e medo, semas que os adjetivos assumem nos sintagmas anteriores, é transferida, pela “contração da série”, à percepção que o eu lírico tem de sua amada, a quem faz a serenata sintética. Não seria absurdo levantar a hipótese de essa porta estar, pelo menos até a audição da “serenata”, fechada.

O caráter lúdico do poema mobiliza o leitor a “jogar com os significantes” em busca de uma possível significação, como se estivesse frente a um enigma de múltiplas respostas. O poema passa a ser o tabuleiro que convida o leitor a participar ativamente do jogo, fazendo seus lances de interpretação, suas escolhas, nesse campo de significância que é o texto. Seguindo orientação mais estruturalista, Samuel R. Levin, em Estruturas linguísticas em poesia, obra de 1962, lançada no Brasil em 1975, também perseguiu o modo de ser específico da linguagem da poesia. Descreveu a unidade constitutiva do poema a partir das relações de equivalências (paralelismos) fônica, sintática, semântica e de matriz convencional, cuja convergência produz os chamados acoplamentos. Assim, no poema, as palavras se agrupariam não em função da comunicação imediata, ou mesmo da função representativa; elas se procuram por afinidades de vária natureza, como no caso das rimas, por exemplo, em que há convergência sonora. No poema anterior, por exemplo, “Rua” e “Lua” entram em equivalência fônica e morfossintática, formando, pois, um acoplamento.

Um dos teóricos formalistas que se destacou aqui no Brasil nas décadas de 60 e 70 foi Roman Jakobson. No seu antológico ensaio “Linguística e poética”(1970), conceituou a função poética da linguagem, uma das funções que a linguagem pode exercer prioritariamente quando seu foco incide sobre a própria organização da mensagem – diferentemente de outras funções que colocam em destaque outros fatores, como, por exemplo, o referente, o emissor, o receptor, o código ou o canal. A função poética da linguagem estaria presente não apenas no poema ou no texto literário como alguém supostamente poderia entender, mas também nos ditos populares, nos trocadilhos, nos slogans publicitários etc.[2] Partindo inicialmente de comentários analíticos acerca de registros linguísticos variados – como a expressão horrendo Henrique, pronunciada em conversa informal por uma moça, ou mesmo o slogan político I like Ike –, Jakobson assim conceitua a função poética, apoiado em dois princípios organizadores da linguagem, a seleção e a combinação: “A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção da linguagem sobre o eixo de combinação” (Ibidem, 1970, p.130).

No exemplo citado, a moça que declarou detestar Henrique poderia escolher, atuando no eixo da seleção, outro adjetivo, como, por exemplo, medonho ou terrível, os quais manteriam com horrível relação de equivalência morfológica e semântica. Do ponto de vista referencial, todos eles funcionam como sinônimos. Entretanto, ao ser questionada acerca de sua escolha, ela simplesmente justificou-se dizendo que o adjetivo horrendo “caía melhor”. Por quê? Na verdade, o adjetivo e o nome próprio formam uma sequência na qual se observa o princípio de equivalência entre os dois termos: na sonoridade, na extensão silábica, na tonicidade, no destaque da vibrante... Essa equivalência acaba por determinar sintaticamente a expressão. É o jogo paronomástico, tão comum, por exemplo, em trocadilhos [3] (bife à milanesa / bife ali na mesa, capitão de fragata / cafetão de gravata, trocar as bolas / bolar as trocas...), potencializando o sentido da expressão: para o falante, a característica negativa da pessoa impregna, literalmente, sua identidade, isto é, seu nome, revelando-se no som rascante da pronúncia. Lembremo-nos do conhecido poema de Bandeira:

Neologismo

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

                         (Bandeira, 1967, p.330)

É a função poética que determina a invenção da nova palavra, o intransitivo verbo “Teadorar”: “teadorar” só pode ter como alvo a própria Teodora, objeto do amor, pois os significantes se equivalem no jogo paronomástico. Compreende-se que “amar Teodora” é uma experiência única, um sentimento que só pode existir com ela, sentimento tão forte e original que exige a nova nomeação.

Paulo Leminski (1944-1989), poeta e tradutor, lembrou-nos, certa vez, que:

[...] o prazer de usar a linguagem é um dos prazeres humanos maiores [...] O uso da linguagem dá um barato fundamental pro ser humano. Não é preciso justificar isso à luz de nada [...]

            (pauloleminskipoemas.blogspot.com)

Saboreemos, pois, o seguinte texto do poeta:

nuvens brancas
passam
         em brancas nuvens

                         (Leminski, 1983, p.84)

Nesse “haikai tupinikim”, encontra-se um simples jogo verbal, no caso a inversão do sintagma nominal “nuvens brancas”, encaixada no sintagma preposicional do terceiro verso “em brancas nuvens”. De cara, dois significados podem ser atribuídos ao texto: o primeiro diz respeito ao movimento das nuvens do céu, isto é, as nuvens brancas que em sua dança eólica (e erótica) fundem-se a outras nuvens brancas; o segundo, que as nuvens brancas do céu passam despercebidas – especialmente para aqueles que, longe da infância e/ou da atitude contemplativa do ocioso pastor helênico, vivem estressados nas grandes cidades. Semas do verbo “passar” – como mobilidade, deslocamento – projetam-se ludicamente na configuração espacial do texto, no deslocamento à direita do terceiro verso, uma ocorrência que poderíamos chamar de iconização (para usarmos a terminologia de Peirce), estabelecendo-se um jogo entre palavra e figura. Mas esses semas associam-se ao sema transformação, realizado magistralmente no jogo de significantes que corresponde à inversão dos termos do sintagma: assim como as nuvens em movimento se transfiguram, da mesma forma os termos se deslocam sugerindo a mudança e produzindo a outra possibilidade do sentido: em brancas nuvens = despercebidas. A “linguagem” das nuvens (suas diferentes formas e sentidos) reflete-se na linguagem verbal. Mas o poema, autotelicamente, também fala de si mesmo: no jogo da linguagem, o significante “nuvens brancas” reflete-se no significante “brancas nuvens”. De fato, na função referencial da linguagem um pode “passar” pelo outro (são expressões equivalentes), mantendo o significado de base informativa. (Quem se atreveria a traduzir esse poema?)

Um poeta modernista brasileiro, polêmico e irreverente, Oswald de Andrade, escreveu no início do século XX:

Bonde O transatlântico mesclado
Dlendlena e esguicha luz
Postretutas e famias sacolejam

                         (Andrade, 1976, p.119)

Nesse campo de significância, observemos o princípio de equivalência paradigmática nas sequências sintagmáticas: a equivalência semântica entre o título (referência a um meio de transporte urbano coletivo) e sua expressão metafórica (referência a um meio de transporte transcontinental), refletida em outra equivalência também semântica entre “luz” e “água”; essas, por sua vez, refletem-se no último verso, que retoma o sema da “mistura” (mesclado) em “postretutas e famias”, alusão crítica a um código social.[4] Há também equivalências sonoras (a aliteração dos encontros consonantais e das sibilantes e chiantes) e um de jogo de equivalências muito especial no último verso: primeiro porque o plano semântico se materializa no plano fonético/fonológico (o sacolejar deixa suas marcas no significante) e segundo porque há uma equivalência na esfera do código metalingüístico: as variantes populares se misturam à variante culta, assim como o bonde/navio acolhe pessoas de diferentes posições sociais. Esse jogo poético enlaça o lingüístico e o ideológico, nesse “bonde da história” que “esguicha luz”, expressão que, num código simbólico, alude ao saber, a uma nova era. Aliás, para Barthes, “a análise estrutural pode muito bem colaborar com a análise ideológica”(1971, p.43).


***


Mais para o final do século XX, essas tendências críticas começam a ser contestadas em vários pontos. Por exemplo: o enfoque reducionista na concepção do poema, na medida em que os aspectos discursivos eram excluídos da reflexão; a idealizada “estrutura fechada”, que articulava forma e conteúdo organicamente, como queriam os new critics; a preocupação com um esquema abstrato válido para todos os poemas em detrimento da singularidade das composições; a visão não humanista da arte, concebida como simples artefato, objeto lúdico; a postura supostamente a-política desses críticos, identificada como de fundo reacionário etc. Mas, por mais severas e muitas vezes pertinentes que sejam as críticas aos aspectos polêmicos defendidos pelos pensadores formalistas, estruturalistas e novos críticos, todos à sua maneira envolvidos nesse movimento, não podemos negar a valiosa contribuição que essas correntes deixaram para aqueles que se interessam pela construção poética. [5] E uma dessas contribuições, parece-me, é a abertura para a possibilidade de se compreender o sentido do poema a partir de dentro, isto é, de seus elementos constitutivos – imagens, arranjos morfo-sintáticos, sonoridade, ritmo, espacialização, entre outros – e das relações que esses elementos estabelecem entre si. Essa perspectiva correspodeu, na época em que vieram à luz, a um divisor de águas na crítica literária, até então marcadamente biográfica e impressionista. Ao conceberem o poema como um objeto de linguagem, uma coisa, iluminaram o jogo poético dos significantes. Mas um jogo que não pode parar em si mesmo: projeta-se no sentido. Esse modo de ler o poema – um modo possível, mas não o único – dá relevância a uma organização interna que se revela bastante lúdica, na medida em que as peças se ordenam em função de determinados arranjos que convidam o leitor a participar do jogo de leitura, fazendo seus lances analítico-interpretativos.

Não se trata de fazer a apologia de uma idealizada “organicidade indestrutível”, como queriam os novos críticos, concepção que afasta, da obra, o acaso, a fissura, a incongruência, a falha ... – aspectos tão determinantes para o sentido (O ato falho é sempre tão certeiro...) como o gesto consciente e premeditado entrevisto nas articulações das palavras. Também não se trata de encarar o poema como um conjunto vazio de significação, a brincadeira do significante pelo significante. Poema é, acima de tudo, linguagem. Como qualquer texto, é significância, no dizer de Barthes (1970, p.37). E, como linguagem, abre-se necessariamente para o sentido, possibilita a constituição de sentidos múltiplos, nesse entrelaçamento de códigos (retórico, social, político, intertextual ...), um entrelaçamento de avenidas que se abrem para o leitor...

Trata-se, antes, portanto, de vislumbrar a possibilidade de um prazer de ler frente aos jogos que a linguagem poética oferece e que se tornam justamente prazerosos pela revelação de sentidos insuspeitados que podem ser capturados na teia de significantes.[6] É partir do pressuposto de que o poema, antes de ser uma estrutura fechada, é um processo aberto de estruturação, a que o leitor tem acesso, para ele mesmo, leitor, organizar, entre possibilidades várias, a estrutura por ele eleita. O leitor passa a ser o organizador de sentidos que o texto lhe oferece. Ler o poema dessa perspectiva, ou participar do jogo de linguagem aí estabelecido, significa também compreender que no poema ocorre outro fenômeno fundamental: o processo de autorreferenciação. Os signos que o compõem chamam a atenção para si mesmos, e, portanto, para sua condição artificial e polissêmica. No poema, estamos diante do “signo saudável”, que

chama a atenção para a sua própria arbitrariedade – aquele que não tenta fazer-se passar por “natural”, mas que, no momento mesmo de transmitir um significado, comunica também alguma coisa de sua própria condição relativa e artificial (Eagleton, s/d, p.145).

Esse modo de ser do signo poético traz, em si mesmo, a desconfiança irônica que as ideologias jamais admitem. Bastaria esse argumento para que sua existência fosse legitimada, não fosse também o lado lúdico e prazeroso da leitura. O que há de lúdico no poema é também o que há de lúcido no poema.


BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.

BANDEIRA, Manuel. Neologismo. In: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.

BARTHES, Roland. Análise textual de um conto de Edgar Poe. In: CHABROL, Claude (apresentador). Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix/Universidade de São Paulo, 1977.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, s/d.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1970.

LEMINSKI, Paulo. Caprichos & relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.

_____ . In: http : // pauloleminskipoemas.blogspot.com.

LEVIN, Samuel R. Estruturas linguísticas em poesia. São Paulo: Cultrix/USP, 1975.

RICARDO, Cassiano. Serenata sintética. In: Poesias completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957.

TYNIANOV, Yuri. Os traços flutuantes da significação no verso. In: O discurso da poesia. Poétique, n.28. Coimbra: Almedina, 1982.


________________________
NOTAS

[1] Aliás, a relação reflexiva entre linguagem poética e linguagem crítica, essa mútua alimentação, repercutiu muito positivamente no Brasil, a partir da década 50 do século passado, quando tivemos o movimento da poesia concreta e seus desdobramentos, movimento esse liderado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari, poetas-críticos simpatizantes das teorias formalistas e estruturalistas.

[2] “Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora” (Jakobson, 1970, p.128).

[3] O prazer produzido por esses jogos está analisado, do ponto de vista psicanalítico, na conhecida obra de Freud, O chiste e suas relações com o inconsciente.

[4] Emprego aqui a palavra código, no sentido explicitado por Barthes: “A própria palavra código não deve ser entendida aqui no sentido rigoroso, científico, do termo. Os códigos são simplesmente campos associativos, uma organização supratextual de anotações que impõem certa idéia de estrutura” (1971, p.58).

[5] A obra de Terry Eagleton, Teoria da literatura: uma introdução (Martins Fontes) traz importantes reflexões acerca das correntes críticas do século XX. Tem como objetivo não só expor os principais fundamentos dessas tendências, como também submetê-los a uma rigorosa avaliação crítica.

[6] “A leitura, para o Barthes da fase final, não é cognição, mas jogo erótico” (Eagleton, s/d, p.153).



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