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Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


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O INDIVÍDUO HERÓICO E A COMUNIDADE [1]

Gloria Karam Delbim
Universidade Mackenzie


Mini currículo dos autores
 


Brazil-Maru conta a saga de três gerações de imigrantes japoneses e seus descendentes a partir de 1925, após o Ato de Exclusão de 1924 nos Estados Unidos, que baniu a entrada de asiáticos àquele país. A narrativa segue uma linearidade histórica e a autora nipo-americana Karen Tei Yamashita valeu-se de fatos reais para contar o romance, situando-o no tempo e espaço do Brasil, dos Estados Unidos e do Japão.

A história é narrada por cinco personagens, quatro homens e uma mulher, a partir da data de chegada ao Brasil até os anos 90, terminando com o retorno ao Japão por brasileiros, em um movimento semelhante ao que deu início àquela civilização idealizada por japoneses que para aqui vieram em busca de uma vida melhor e mais digna para todos, a fim de criar para seus descendentes um lugar onde poderiam encontrar a liberdade e a felicidade.

Karen Tei Yamashita recria ficcionalmente a comunidade de nome “Esperança”, fundada por um pequeno grupo de imigrantes japoneses cristãos, perseguidos no Japão. Na mescla de ficção e história a autora constrói um espaço intercultural e às vezes híbrido, fazendo uma transposição de valores culturais norte-americanos na construção de suas personagens, bem como na representação desta comunidade nipo-brasileira.

“Esperança”, palavra que evoca a idéia utópica de uma terra onde todos encontrariam dinheiro ou ouro nas ruas, a solução para seus problemas e a consequente felicidade que esperavam achar no Novo Mundo, foi escolhida por Yamashita como o nome da comunidade onde se passa o romance Brazil-Maru.

Neste trabalho serão analisadas algumas imagens e valores norte-americanos presentes na construção das personagens, enfatizando uma relação centro-margem entre o líder da comunidade, Kantaro, como centro do novo poder estabelecido em “Esperança” e as demais como margem, objetivando mostrar como Yamashita projeta as imagens e valores reapropriados da cultura norte-americana para representar um grupo de imigrantes japoneses em uma outra realidade, a brasileira.

Focaremos nossa análise neste líder comunitário, cujo poder concentra-se em suas mãos, e que levou a comunidade ao seu ápice e depois à sua derrocada. Líder carismático, arrogante, orgulhoso, inteligente, ao falar de si próprio, Kantaro remete ao que as pessoas diziam sobre ele “um grande idealista, um romântico, um dissimulador, um ditador, um ator e até um monstro.”[2] (p.163) (YAMASHITA, 1992) Apesar de todas essas referências ele comenta que quaisquer comentários negativos a seu respeito podem ser atribuídos à inveja de seus adversários.

No entanto, será que seria só inveja ou realmente se aplicam à sua personalidade?

A partir do relato de outra personagem, Ichiro, veremos como isso é retratado, e como a voz da autora ecoa na construção da identidade da personagem em questão.

Sua admiração pelo jovem Kantaro, com cerca de 20 anos na ocasião, é o tema central da narrativa de Ichiro, “um velho com memórias”[3] (p.5), ao relembrar os fatos ocorridos desde a chegada do navio Brazil-Maru em 1925, quando tinha 9 anos, até meados da década de 30. É durante esse período de construção de “Esperança” que Kantaro começa a se afirmar e ter ascensão como líder dessa comunidade idealizada.

O leitor toma conhecimento de Kantaro a partir das primeiras páginas do romance, pela narração de Ichiro, mesmo antes de aportarem em Santos, ainda durante a viagem de navio. Kantaro Uno e sua família eram alvo de crítica entre os passageiros do navio por terem um comportamento arrogante e exibirem um ar de superioridade. Contudo, para Ichiro, essa atitude era condizente com a maneira como agiam, pois, em seu olhar inocente, os via como pessoas dotadas de um prestígio especial. Essa idéia persistiu ainda por muito tempo e Kantaro, sem dúvida, foi um modelo para esse jovem que se manteve fiel ao seu herói até o dia em que soube das mazelas causadas por ele. Mostrou assim o seu caráter íntegro ao se afastar de quem tanto admirava, porém jamais se vingou ou mesmo exibiu rancor contra ele.

Filho primogênito e mimado, Kantaro tinha desejos que pareciam intermináveis. Além da máquina fotográfica adquirida durante a viagem para o Brasil, Ichiro relembra ainda que pouco tempo depois de instalados em “Esperança”, ele apareceu cavalgando seu “belo cavalo branco de raça árabe que ostentava uma crina e rabo enormes” [4] (p.16). (YAMASHITA, 1992). Cavalgando pelos campos, grande e garboso, em cima de seu cavalo, Kantaro era sem dúvida, para Ichiro, um herói maravilhoso.

Depreende-se dessa passagem que Kantaro é investido por Ichiro com características do herói norte-americano, cavalgando sozinho em seu cavalo branco como um cowboy. A imagem do cowboy usada para mostrar os valores norte-americanos de coragem e habilidade em enfrentar novos desafios, é bem representada por Kantaro, que demonstra ser capaz de tais habilidades e, por essa razão, conquistava a admiração dos jovens de “Esperança”.

A imagem do cowboy, que sempre age sozinho, bastante comum na mídia e na vida da sociedade norte-americana, é também explorada e enaltecida por pessoas importantes e renomadas, tais como John Wayne, Ronald Reagan e Henry Kissinger, por exemplo. Da mesma maneira, Kantaro cultua essa imagem. Indo e vindo entre as vilas e locais da redondeza, sozinho em seu cavalo, trazia notícias e era reconhecido entre todos por ser o elo de ligação entre os membros da comunidade. Já naquela época, Kantaro destacava-se dos demais ao tomar decisões e fazer com que os outros as cumprissem, como se fosse uma honra seguir suas ordens. Um exemplo disso aconteceu na ocasião ainda durante a formação de “Esperança”, em que Kantaro arrebanhou alguns homens para ajudar outros moradores a construir suas casas, a desmatar a terra, a plantar. Ele mesmo, no entanto, limitava-se a dar ordens e observar, sem participar do mutirão. Agindo dessa forma, Kantaro de maneira semelhante ao gentleman, valorizava a elegância, o ócio, a sabedoria e, boas idéias, que, no exemplo acima, e no seu discurso posterior, ao tornar-se líder da comunidade, consistia na idéia do bem comum, conduta esta baseada na razão e não na emoção.

Ao envolver os demais membros de “Esperança” a agir com emoção e solidariedade para ajudar aos outros, nota-se que, habilmente, Kantaro soube usar a razão em seu favor e, de maneira sábia, aos poucos, foi evocando sua imagem como centro do poder, enquanto os outros, seriam os subalternos. Como na história dos Estados Unidos, a idéia do bem comum como meta geral é usada pela personagem que aos poucos vai conquistando seus pares como se fosse um benfeitor e assim vai afirmando sua liderança entre os membros da comunidade.

Em Brazil-Maru, o toque mágico de Kantaro abrangeu e seduziu não só Ichiro, mas também os outros jovens da comunidade, ao introduzir o jogo de beisebol entre os moradores de “Esperança”. Ao lembrar-se daquela época, Ichiro comenta: “...tenho certeza de que foi Kantaro que ligou beisebol ao nosso modo de vida em Esperança. Parece estranho dizer que beisebol se tornaria parte do nosso sonho de imigrante, porém isso realmente aconteceu” [5] (p.26).

Mais uma vez, voltando à imagem do gentleman que tinha como característica fundamental o lazer, Kantaro foi aos poucos inventando-se de maneira semelhante ao que acontecia com o sulista norte-americano do período colonial. Afirmando-se através da introdução do jogo (lazer), o qual, em suas palavras, uniria os membros da comunidade, ele diz: “Há muitos de nós jovens em Esperança que seríamos unidos pelo beisebol, [...] bem, é só um jogo, mas é um jogo de muitas virtudes”[6] (p.26) (YAMASHITA, 1992). Virtude é uma palavra que os puritanos usavam para justificar suas atitudes e fazer-se eleitos do Senhor, idéia semelhante à expressa por Kantaro nesse contexto.

É importante destacar aqui alguns aspectos relevantes desse jogo que está sendo introduzido na comunidade. Beisebol é um jogo americano por excelência. Mesmo sendo um jogo popular no Japão, onde teve sua primeira disputa em 1873, na Universidade de Tokyo, sob a instrução de um norte-americano chamado Horace Wilson, os valores imprimidos no jogo, são os norte-americanos. O historiador James Oliver Robertson (1987), em sua explicação sobre a criação dos jogos grupais, entende que, a idéia do grupo é como uma máquina em que todos os envolvidos devem trabalhar juntos e de maneira uniforme. Robertson liga a imagem do ritual do jogo a uma máquina humana em que cada pessoa desenvolve sua especialidade para todos obterem o produto final desejado, ou seja, o “sucesso”.

Yamashita, na obra, está refletindo a mesma filosofia de sua terra natal. Os princípios puritanos de trabalho, ainda hoje presentes nos Estados Unidos, refletem-se em Brazil-Maru. O lazer através do esporte é assim relacionado com a virtude que todos deveriam seguir. Robertson, ao falar sobre trabalho e lazer, expressa essa idéia de maneira semelhante, por entender que o jogo faz as pessoas se sentirem úteis e virtuosas, invocando os princípios puritanos que permeiam a sociedade norte-americana.

Sendo o beisebol eleito como algo intrínseco em suas vidas, a competição passou a ser importante entre eles. O espírito de colaboração e cooperação que os guiou na construção de uma nova civilização dá lugar à rivalidade e disputa entre os homens, traindo os princípios iniciais do projeto desse grupo de cristãos ao vir para o Brasil.

Para justificar a introdução do jogo em “Esperança”, nos moldes da ética puritana, Kantaro comenta seus projetos em relação à comunidade, dizendo: [7]

Bem, há tanto trabalho para se fazer em Esperança, que não me parece que devemos encorajar as pessoas a gastar seu tempo jogando beisebol sem uma boa razão. Conseqüentemente, estou pensando em boas razões. (p. 26)

Daqui se infere, inclusive, o prestígio e a liderança de Kantaro junto ao grupo. Ao escutar esse comentário, um membro da comunidade acrescentou: “Trabalho em equipe...Concentração...Competição...Espírito...”, ao que alguém complementa: “Recreação...Lazer!” [8] (p.26) (YAMASHITA, 1992).

Percebe-se, dessa maneira, como o espírito desse grupo traduz e reflete a ética protestante norte-americana de trabalho, sempre presente, mesmo no momento de lazer, que faz parte da felicidade à qual todos tem direito, de acordo com a Declaração da Independência dos Estados Unidos.

Ichiro, ao falar sobre essa época, diz que todos se lembravam de Kantaro, o jogador mais rápido da colônia, “o jovem imigrante japonês que jogava beisebol porque tinha vindo morar no Brasil” [9] (p.41) (YAMASHITA,1992). Questionado sobre como as pessoas conseguiam aliar trabalho e tempo para praticar beisebol, Kantaro dizia: “Sempre respondo que nós, em Esperança, tínhamos vindo construir uma nova vida e o esporte, como outras atividades culturais, devia ser parte dessa nova vida”[10] (p.41) (YAMASHITA,1992). . Enfatiza a necessidade de terem lazer depois de trabalharem o dia todo abrindo novas estradas e desmatando florestas virgens: “Sem este elemento de lazer, como poderíamos ser um povo íntegro? Nós, em Esperança, viemos ao Brasil para colonizar e produzir”[11] (p.41) (YAMASHITA, 1992).

Além do lazer e do trabalho em grupo, em Brazil-Maru, o jogo de beisebol também evoca outra imagem bastante valorizada na sociedade norte-americana, a do ganhador e do perdedor, ou a do Bem versus Mal, exemplificada pela rivalidade existente entre Kantaro e Yogu. Ao desafiar Yogu, Kantaro diz: “Bem, eu sou o melhor”[12] (p.31) (YAMASHITA, 1992), e Yogu tenta responder a essa provocação aceitando jogar no mesmo time, aliados no mesmo objetivo de serem vitoriosos. No entanto, o problema não é tão simples como poderia parecer, pois Kantaro e Yogu eram rivais e competiam não só para mostrar quem poderia ser o melhor jogador, mas também, pelo amor de Haru Okumura, filha do líder da comunidade.

Em contraste com Kantaro, Yogu é citado como o bandido (bad Guy) considerado por todos como um bruto, sem educação, um “nobre selvagem” que não respeitava regras, nem o Imperador de seu país, não acreditava em Deus e, portanto, era marginalizado. Ao contrário de Kantaro, que era visto como o cowboy,, Yogu era apontado como o bandido, que poderia usar sua arma de maneira irresponsável. É desprezado por todos na comunidade, sendo considerado um perdedor (loser).

Para aplacar os maus instintos de Yogu, há aqui o papel preponderante das mulheres de “Esperança”. Em solidariedade à família de Haru, que o estava hospedando, e para afastar seus maus espíritos, Ichiro conta que:

...as pessoas entravam e saiam da casa do Okumura convencidos de que Yogu cometeria algum crime horrendo. Minha mãe foi corajosa em passar noites com Tomi Okumura sob o pretexto de fazer estudos da Bíblia. (p.28).[13]

Como a mãe de Ichiro, outras mulheres passaram a visitar os Okumuras “uma a uma, vinham em noites alternadas com suas Bíblias em furoshikis”[14] (lenço de forma quadrada usado para se guardar objetos diversos) (p.29) (YAMASHITA, 1992). Há nessa atitude uma mostra da valorização do livro sagrado usado pelas personagens, expressando seu apoio à família e se afirmando como símbolo de um comportamento típico da sociedade norte-americana, que sempre tem a Bíblia em suas mãos, seja diante de um júri ou em cerimônias públicas, ou ainda para dar credibilidade a certas declarações de políticos ao demonstrarem arrependimento e regeneração pelos erros cometidos. A atitude de solidariedade da comunidade, em relação ao comportamento de Yogu, acrescida à simbologia da Bíblia, valor intrínseco dos costumes e herança puritana, permanecem ainda na sociedade dos Estados Unidos. Assim, a autora lê nossa cultura com a lente norte-americana, transferindo a cor da imigração de seu país para o Brasil.

Aos poucos, Yogu foi se mostrando menos selvagem. No entanto, o que parecia ser um milagre da oração, no entender de Ichiro, foi o milagre do amor dele por Haru Okumura, de 17 anos, uma das poucas moças solteiras na época. Apesar de cortejada por Kantaro, que aos olhos de Ichiro era o homem ideal para qualquer mulher, apaixonou-se por Yogu. Yamashita mostra, dessa maneira, a ironia existente entre a realidade e a idealização de uma situação. De maneira adversa às expectativas, o Mal vence o Bem.

Ao tecer comentários sobre o caráter de Kantaro com referência a essa conquista, Ichiro lembra sua determinação e persistência frente à adversidade tanto em beisebol quanto no amor, ele não admitia derrotas e faria de tudo para vencer.

Sentindo que poderia perder essa disputa para Yogu, Kantaro, sutilmente manda-o ao Japão para comprar material para beisebol. Se Kantaro sentiu-se vitorioso por isso, teve, em contrapartida, que esperar por um ano até que Haru, desiludida com a não-volta de Yogu, aceitasse ser sua esposa.

Mesmo considerando-se vitorioso, Kantaro nunca conseguiu que Haru se esquecesse de Yogu, que voltou no dia de seu casamento, abalando o relacionamento entre os dois para sempre. Assim, Kantaro, acostumado a vitórias, mesmo não admitindo a verdade, é, nesse caso, o perdedor (loser), pois, não é capaz de derrotar os sentimentos da mulher amada e obrigá-la a amá-lo.

Após o casamento, Kantaro concentrou-se mais no trabalho e na terra, deixando de lado o lazer. Juntamente com Befu, seu cunhado e amigo, fazia planos para expandir “Esperança”, criar galinhas, produzir ovos e esterco para fertilizante. O nome dado ao local em que desenvolveram esse projeto chamou-se “New World Ranch”, conhecido também por “casa de Kantaro”[15] (p.73) (YAMASHITA, 1992)

Atraídos pelo novo empreendimento, conta Ichiro, ele e vários jovens da comunidade, deixaram suas famílias para irem morar no local chamado “casa de Kantaro”. Trabalhavam, divertiam-se e sonhavam com o futuro que se descortinava à sua frente.

Mostravam entusiasmo sempre que ouviam Kantaro falar, e Ichiro relembra que “foi um período de idealismo juvenil e Kantaro nos estimulou a viver nossos ideais”[16] (p.76-77) (YAMASHITA, 1992). É, pois, dentro desse espírito idealista de criar uma nova civilização, ao invés de trabalharem cada um por si, que se propõem a trabalhar juntos, comunitariamente, para o bem de todos.

Assim, Kantaro vai se afirmando cada vez mais como o novo líder de “Esperança” e, segundo a narrativa de Ichiro, ele e outros jovens imbuídos de idealismo juvenil e pureza e espírito, seguem obedientemente as imposições de Kantaro.

Há nessa atitude de Ichiro e desses jovens, que abandonaram suas famílias para se dedicarem ao sonho coletivo de um futuro melhor, uma identificação com o discurso de Kantaro, a quem eles, não só obedeciam, mas também faziam tudo para expressar sua admiração sem limites. Esse processo de identificação, envolvendo pessoas da mesma origem, compartilhando os mesmos ideais, pode ser melhor entendido, segundo a definição de Stuart Hall (1996), ao dizer que:

A identificação é construída baseada no reconhecimento de alguma origem comum ou características compartilhadas com outra pessoa ou grupo, ou com um ideal, e com a conclusão natural da solidariedade e lealdade estabelecida nessa fundação. (p.2).[17]

A identificação do grupo de jovens com Kantaro fica bem clara quando este faz diante deles seu discurso apoteótico. Dispostos ao sacrifício por um futuro alvissareiro, são levados ao delírio ao ver Kantaro incluí-los como parte de seus planos e projetos de uma vida promissora. O único a não aplaudi-lo foi Saburo, que, ao contrário de todos os outros, não acreditava e não confiava nas promessas feitas por seu irmão mais velho, que já tinha dado à sua família demonstrações claras de seu egoísmo e falta de caráter. Saburo chamava a esses jovens “o adubo da comunidade de Kantaro; o material humano que agitava seus sonhos”[18] (p.78) (YAMASHITA, 1992). Mesmo assim, Ichiro não se deixa impressionar por esse comentário e, encerra sua narrativa jurando fidelidade a Kantaro e dizendo: “os sonhos de Kantaro eram sem dúvida, meus sonhos”[19] (p.78) (YAMASHITA, 1992).

Desde o Japão, o sonho desses emigrantes perseguidos por causa de sua religião, de maneira análoga aos puritanos que foram para a América, era o de criar uma civilização em uma terra prometida. Ichiro fala desse sonho compartilhado por seus pais, do qual fazia parte, como algo intrínseco e incontestável que poderia se tornar realidade se todos lutassem juntos para consegui-lo.

Em Brazil-Maru, Yamashita constrói a vinda desses japoneses recorrendo à imagem da colonização dos Estados Unidos, coincidentemente, retratada no romance de maneira semelhante a correntes migratórias para aquele país, em que as famílias vieram colonizar o Brasil aceitando as terras oferecidas pelo líder religioso Momose-sensei, com a intenção de criar e abraçar um novo lar.

Como os norte-americanos que “acreditavam que a América tem uma missão e, que não é simplesmente seu destino ser rica e poderosa e grande, mas ser assim é devido aos desígnios de Deus”[20] (ROBERTSON, 1987, p.25), Ichiro, ao se deparar com a imensidão de terras ainda por explorar no Brasil, expressa o sentimento do grupo ao dizer: “Além do mais, virmos para criar um novo mundo e, começar a vida em uma nova terra foi um presente especial e sagrado dado somente a poucos escolhidos” (p.22) (YAMASHITA, 1992). Há, nessas imagens, diálogos que se tocam, conectando a experiência cultural de Yamashita com a transferida para outra realidade.

A ideologia do líder parece ser democrática, buscando persuadir e envolver jovens inexperientes em seus sonhos; no entanto, Kantaro está na verdade tiranizando-os, preocupado com sua projeção pessoal. Ao discursar, Kantaro os exorta ao sucesso, apelando para o grupo e usando sabiamente as palavras que os movem para o futuro: “Nós estamos prontos para uma mudança que garantirá nosso futuro. Juntos, nós temos o potencial para revolucionar (..).”[22] (p.78, grifo nosso) (YAMASHITA, 1992).

Assim, ele fala como um estadista às vésperas de uma guerra e faz com que todos se convençam de sua obrigação de defender a pátria contra os inimigos que podem eventualmente atacá-la. Tal discurso com conotação política, bastante comum na História dos Estados Unidos, sempre convenceu os seus cidadãos da importância de sua missão para controlar seus destinos e negócios, o direito à revolução, à liberdade e à felicidade, preceitos estabelecidos na Declaração da Independência, os quais são considerados inalienáveis a todo e qualquer cidadão daquele país.

De forma semelhante, ao discursar e mostrar aos jovens de “Esperança” o quanto e o que poderiam fazer para atingir seu ideal, Kantaro os incentiva e os eleva a um patamar de privilegiados, cujo merecimento era uma bênção concedida aos poucos escolhidos por Deus, aos quais eles tinham tido a sorte de pertencer. De toda maneira, é preciso destacar que o discurso de Kantaro é uma forma de dominação em que ele tenta controlar os sentimentos e o destino de todos, de acordo com sua vontade pessoal.


BIBLIOGRAFIA

HALL, Stuart; DU GAY, Paul, (Ed.). Questions of Identity. London, Thousand Oaks, New. Delhi: SAGE Publications, 1996.

ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1987.

YAMASHITA, Karen Tei. Brazil-Maru. Minneapolis: Coffee House Press, 1992.


________________________
NOTAS

[1] Este trabalho é um recorte e adaptação do Cap. II da Dissertação de Mestrado intitulada “A Interculturalidade no Romance Brazil Maru, de Karen Tei Yamashita”, apresentada ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profª Drª Laura P. Z. de Izarra, em dezembro de 2002.
Todas as traduções deste trabalho são de autoria e responsabilidade nossa.

[2] “a great idealist, a romantic, a dissimulator, a dictator, na actor, even a monster.”

[3] “old man with memories.”

[4] “a beautiful spirited white Arabian with a long mane and tail.”

[5] “...I am sure that it was Kantaro who tied baseball to our way of life in Esperança. That the sport of baseball should become part of our immigrant dream sounds strange, but it is true.”

[6] “There are many of us young men in Esperança who would be united by baseball, […] Yes, it´s only a game, but it´s a game with many virtues.”

[7] “Well, there is such great labor to be accomplished in Esperança, it just doesn't seem that we can be encouraging people to spend their time playing baseball without a good reason. So I am thinking of good reasons.”

[8] “Teamwork...Concentration...Competition...Spirit...”
“Recreation...Leisure!”

[9] “the young Japanese immigrant who played baseball because he had come to live in Brazil.”

[10] “I always answer that we in Esperança have come to build a new life, and sports, like other cultural pursuits, must be part of this new life.”

[11] “Without this element of leisure,how could we be a whole people? We in Esperança have come to Brazil to settle and to create.”

[12] “Well,I´m the best.”

[13] ...people wandered in and out of the Okumura household, convinced that Yogu would commit some sort of horrid crime. My mother went boldly over to spend the evenings with Tomi Okumura under the pretext of Bible Studies.

[14] “each arriving on alternate nights with their Bibles in furoshikis.” [15] “Kantaro´s place”

[16] “It was a period of youthful idealism,and Kantaro challenged all of us to live our ideals.

[17] Identification is constructed on the back of a recognition of some common origin or shared characteristics with another person or group, or with an ideal, and with the natural closure of solidarity and allegiance established on this foundation.

[18] “Kantaro´s compost”, the human stuff that churned his dreams.

[19] ...Kantaro´s dreams were undeniably my dreams.

[20] They believe America has a mission and that its destiny is not simply be rich and powerful and big, but to be so for some God-given purpose.

[21] Besides, we had come to create a new world, and starting on new land was a special and sacred gift given only to a chosen few.

[22] “ We are ready for a change which will ensure our future. Together, we have the potential of revolutionizing...”



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