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Revista Pandora Brasil - ISSN 2175-3318
Revista de humanidades e de criatividade filosófica e literária


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LUDICIDADE E LITERATURA: O RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

Beatriz Pereira de Santana
Cristiane de Paula Finetti
Universidade Mackenzie


Mini currículo dos autores
 


Jogar é uma das maneiras mais divertidas de ter um lazer inteligente. Porque jogando você também exercita seu raciocínio, capacidade de comunicação e tantas outras habilidades. (autor desconhecido)


LUDICIDADE E ENSINO

Lecionar no mundo contemporâneo exige uma reflexão constante sobre o exercício docente. Para ser professor é necessário estar disposto a (re)formular e atualizar regularmente métodos, práticas e técnicas pedagógicas capazes de tornar o processo de ensino-aprendizagem cada vez mais atrativo ao alunado.

A contemporaneidade não admite mais uma sala de aula marcada por um ensino passivo, sem vínculos efetivos ao contexto ao qual o aluno está inserido. Segundo Mendonça,

nesse sentido sugere-se que a sala de aula não possa mais ser marcada apenas pela relação autoritária advinda da escola tradicional, mas sim que a atividade docente compreenda o ensinar e o aprender como processo interdependente e que aconteça num ambiente de ludicidade (2008, p.353).

Vê-se, assim, diante desse processo contínuo de inovação da práxis pedagógica, o resgate do universo lúdico como um caminho para a renovação do exercício docente, capaz de aproximar professor e aluno, de forma que o ensino e a aprendizagem estejam intrinsecamente ligados.

É sabido que a atividade lúdica infelizmente ainda é mal vista e muito contestada por alguns educadores, tanto da área de exatas quanto de humanas. Acredita-se que as atividades que não utilizam o trio giz, lousa e caderno, em uma sala de aula, sob a supervisão de um professor, não são sérias e, por isso, comprometem o processo de ensino e não permitem a aprendizagem efetiva. Sob essa perspectiva, o conhecimento é apresentado aos alunos “[...] como algo cinzento, sisudo e sem vida... a escola trata o conhecimento como objeto rígido que não pode ser penetrado com os instrumentos da emoção, da sensibilidade, da imaginação, da invenção [...]”. (PERROTTI apud PASSARELI, 2004. p. 41).

O desprezo pela educação lúdica é um equívoco que advém da concepção de que um ensino comprometido com a seriedade não deve abandonar as práticas que já deram certo: giz, lousa e caderno. Desconsiderando-se, assim, a capacidade que um jogo tem de exercitar a mente e de fixar o conhecimento. Nesse sentido, o lúdico é, muitas vezes, entendido como um mero exercício para “matar a aula”. E, assim, sob o argumento do desperdício de tempo, mantém-se uma prática educacional que é rejeitada pela nova geração de alunos, levando-os ao desinteresse pelo ensino.

Passarelli lembra que:

Os tempos são outros. [...]. Os indivíduos também mudaram. Logo, é preciso que essas práticas se apresentem adequadas aos imperativos de hoje, resgatando do passado o que dele for pertinente para uma prática que contribua para a construção de um futuro real e não-utópico. (2004, p.50).

Logo, se o mundo mudou, a escola tem que mudar, ressignificando suas experiências e permitindo novos olhares para o desenvolvimento de processo de ensino-aprendizagem. Para Candau e Lellis,

Há a necessidade do redimensionamento da formação do educador, o qual implica a negação de um tipo “ideal de educador”, uma vez que não tem sentido a definição da sua competência técnica em função de um conjunto de atitudes e habilidades estabelecidas a priori. A ação do educador deverá, ao contrário, se revelar como resposta às diferentes necessidades colocadas pela realidade educacional e social. [...] Acreditamos que esta alternativa traz em si a possibilidade do educador desenvolver uma “práxis” criadora na medida em que a vinculação entre o pensar e o agir pressupõe a unicidade, a inventividade, a irrepetibilidade da prática pedagógica. (2000, p. 60).

Nessa ressignificação, no que se refere ao ensino de língua e literatura, é importante destacar que:

[...] a perspectiva lúdica aqui adotada não tem ligação direta com aquelas que se voltam a estratégias que implicam charadas, adivinhações ou palavras cruzadas. O foco de interesse estará direcionado a explorar a possibilidade da integração do jogo a um processo de aprendizagem da língua escrita. [...] o desenvolvimento da expressão encontra terreno privilegiado na simulação, nos jogos de papeis e nos jogos de teatro [...]. (PASSARELLI, 2004. p.38)

Assim, conceber o lúdico apenas como uma atividade de diversão, negando seu caráter educativo, é uma concepção bastante ingênua, uma vez que a inserção de práticas ludopedagógicas no processo educacional visa estabelecer não só uma interação agradável entre professor e aluno, como também despertar o interesse do aluno pelo conteúdo programático a ser apreendido.


O LÚDICO NO ENSINO DE LITERATURA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

O lúdico aplicado à prática de ensino de literatura não apenas contribui para o processo de ensino-aprendizagem da linguagem, como também possibilita ao docente tornar suas aulas mais dinâmicas e prazerosas.

Contudo, na prática, o universo lúdico ainda é algo distante da formação docente e, consequentemente, da sala de aula. O curso de formação de professores de língua portuguesa, mais especificamente a licenciatura em Letras, de modo geral, não apresenta a temática da ludicidade em sua grade curricular.

Nota-se que nem mesmo as chamadas disciplinas pedagógicas, que tratam especificamente da prática de ensino, abordam em seu conteúdo programático o processo de ensino-aprendizagem por meio de técnicas ludopedagógicas. Constata-se que as disciplinas que fundamentam a formação do professor pouca contribuição têm fornecido, em virtude de sua pouca articulação com o contexto da prática pedagógica desenvolvida na escola. (PICONEZ, 2004. p. 21).

Sendo assim, o lúdico é eventualmente estudado no processo de formação docente quando o professor universitário se interessa pelo assunto e não detém uma visão ingênua e restrita da dimensão lúdica.

Pelo professor da educação básica, observados os relatórios de estágios de duas turmas de Letras, de uma determinada universidade, no decorrer do ano de 2008, pode-se notar que a presença de atividades lúdicas é praticamente nula tanto em escolas públicas quanto particulares.

A partir desta observação, reconheceu-se a necessidade de dinamizar as aulas de língua e literatura. Na tentativa de diversificar metodologias e estratégias de ensino e considerando-se que, segundo Piconez (2004, p.22), “o espaço do estágio é o eixo que pode articular a integração teoria-prática entre os conteúdos [...]”, o professor da disciplina de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa propôs um desafio aos alunos universitários, futuros professores de língua e literatura: a elaboração de uma aula lúdica para a fixação de conteúdo na disciplina.

A proposta objetivava, de modo geral, entrelaçar a teoria e a prática de maneira lúdica, levando o futuro professor ao exercício crítico e criativo exigidos pela docência. Especificamente, o objetivo da atividade era despertar a valorização do lúdico como complemento significativo do processo de ensino-aprendizagem e buscar a aproximação da realidade escolar e a prática da reflexão.

Sendo assim, estabelecido o desafio de adotar uma metodologia lúdica como o fio condutor do processo de ensino-aprendizagem, os alunos tiveram cerca de 30 dias para desenvolver o projeto de aula e apresentar aos colegas de sala.

No decorrer do desenvolvimento, foi possível notar entre os envolvidos certo encantamento pela elaboração deste trabalho. Os futuros professores perceberam a capacidade de criar, inovar e elaborar a sua própria prática de ensino, reconhecendo que é possível estabelecer uma identidade docente autônoma e própria.

Foram desenvolvidos cerca de 40 trabalhos lúdicos: Dominó; Corrida maluca da língua portuguesa; Trava-língua; Descubra quem é o autor; Palavra-cruzada; Caça-palavra; Pista Literária; Jogo da velha. Além disso, aulas ilustradas com músicas, vídeos-clipe, filmes, entre outros.

Dentre as diversas atividades lúdicas apresentadas, destacou-se o Perfil Literário, o qual aqui merece relato.


O RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

O Perfil Literário, desenvolvido com base no jogo “Perfil” da empresa Grow, encontrou terreno privilegiado no jogo de papel. É um jogo de tabuleiro e cartela que reúne dicas sobre os principais autores e obras literárias estudadas no Ensino Médio, bem como personagens, características da obra e características do período literário.

O jogo principia-se como qualquer outro: divisão de equipes, escolha dos peões, etc. Neste jogo, o professor assume o papel de mediador, o qual tem a tarefa de ler as dicas ao demais participantes (alunos). O mediador então sorteia uma carta do monte e deve anunciar qual a dica da carta, porém sem falar o que é. Por exemplo, na carta está escrito : MACHADO DE ASSIS – diga que sou uma pessoa. O professor deve, então, dizer: Sou uma pessoa (e não o nome de Machado de Assis).

O primeiro jogador (ou equipe) solicita as dicas – que totalizam dez por cartela – uma a uma, até adivinhar a quem pertence a carta (ou seja, Machado de Assis). Se o jogador (equipe) acertar na primeira dica terá o direito de andar nove casas (quanto maior o número de dicas, menor o número de casas a serem andadas). Alguns números da cartela poderão conter: volte uma casa, escolha um jogador para avançar duas casas, um palpite a qualquer hora, etc. Essas opções são bastante semelhantes ao Perfil original, acrescida no Perfil Literário de uma casa denominada Tinha uma pedra no meio do caminho, a qual deixará o jogador uma rodada fora do jogo. Ao final da rodada com o primeiro jogador (equipe), o mediador deverá escolher aleatoriamente outra carta e iniciar novamente a sequência de dicas para o segundo jogador (ou equipe) e assim sucessivamente.

Ressalta-se que o jogador (equipe) que tiver obtido o direito de dar um palpite a qualquer hora poderá utilizá-lo na vez de qualquer outro jogador (equipe), se acertar anda o número de casas correspondente ao que o outro jogador (equipe) andaria.

O Perfil Literário apresenta, como diferencial do jogo original no qual se baseou, a divisão das cartas por níveis e por cores: as cartas com dicas mais fáceis e com obras voltadas aos estudantes de literatura em fase inicial tem a cor verde, as cartas cujas obras são voltadas aos estudantes em fase intermediária têm a cor amarela e as cartas mais difíceis, destinadas aos alunos de conhecimento mais avançado, são da cor vermelha. Diante disso, é importante esclarecer que a divisão por cores não indica que os jogadores em nível mais avançado (último ano do Ensino Médio) não devam utilizar as cartas correspondentes aos demais níveis de conhecimento. Esta divisão é apenas para facilitar a mediação do professor no momento da prática e para não ter que criar o mesmo jogo para turmas diferentes.

A atividade desenvolvida foi aplicada em cinco momentos distintos: quatro salas de aula de uma escola pública e para uma sala de aula de alunos de Letras, futuros professores de língua e literatura. De modo geral, a atividade foi bem aceita tanto pelos alunos quanto pelos futuros professores, atingindo o foco principal, que além de chegar até o fim do tabuleiro, era o de despertar o gosto dos alunos pela literatura. E, para os professores, demonstrar a possibilidade de criar seu próprio método e técnicas de ensino que se aproximem da realidade do aluno sem perder ou desqualificar o conteúdo.

Ressalta-se ainda que a estrutura do jogo apresentado permite adaptações para conteúdos diferenciados, como por exemplo, gramática.


CONCLUSÃO

Observa-se a partir do exposto que é fundamental para um bom desempenho docente a constante disposição em rever regularmente os métodos e técnicas adotadas para o desenvolvimento de um processo de ensino-aprendizagem que se aproxime da realidade do aluno. Vê-se que o lúdico é um dos caminhos que levam a prática de ensino a superar didaticamente métodos e técnicas pedagógicas alienadas pelo tempo. Por isso, a importância de abordar o universo lúdico nos cursos de formação de professores, onde as disciplinas pedagógicas devem exercer um papel de atividade integradora entre prática e teoria, sempre conscientes das constantes mudanças pelas quais o mundo passa e, consequentemente, do contexto educacional de cada nova geração de alunos, que exige cada vez mais aulas teóricas com reflexões dinâmicas.


BIBLIOGRAFIA

CANDAU, V. M.; LELLIS, I. A. Rumo a uma nova didática.11.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

GROW JOGOS E BRINQUEDOS S.A. Perfil 4.São Bernardo do Campo, SP: 2007. Jogos mais legais para adultos. Disponível em Acessado em 30.08.2010.

MENDONÇA, João Guilherme Rodrigues. Formação De Professores: a dimensão lúdica em questão. In: Cadernos da Pedagogia - Ano 2, Vol.2, No.3 jan./jul 2008. Disponível em: Acessado em 19.08.2010.

PASSARELLI, Lílian Ghiuro. Ensinando a Escrita: o processual e o lúdico. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2004.

PICONEZ, Stela C. Bertholo. A prática de ensino e o estágio supervisionado. 10.ed. Campinas, SP: Papirus, 2004.



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