O jogo é um elemento intrínseco da cultura, como considera Huizinga (1993). Ele se amplia para além das fronteiras das práticas lúdicas em que os indivíduos assumem as regras de determinada atividade, como o jogo de xadrez por exemplo. Ele se atualiza na existência de uma coletividade que também se estrutura segundo códigos, crenças, mitos, convenções – valores que esse grupo social passa a exigir de seus integrantes. Neste enfoque, o jogo apresenta uma natureza reprodutora. No entanto, essa mesma natureza por vezes é negada, gerando brechas para o surgimento de outras normas, de outras interpretações, estabelecendo, deste modo, novo jogo: o pensamento antigo versus o pensamento novo. Assim sendo, o jogo, dentro da cultura, também tem uma natureza recriadora. É sob este entendimento do jogo, constituído por essas categorias (da reprodução e da recriação), que analisaremos a visão mítica do sebastianismo presente em :O conquistador.
O referido romance situa-se dentro da larga produção literária portuguesa contemporânea, que discute a imagem do homem lusitano na fase pós-colônia, visto como um sujeito fragmentado, deslocado do eixo axial da sua identidade. Dois são os aspectos determinantes que têm concorrido para que esta problemática se torne um dos grandes temas literários: um deles está ligado às circunstâncias históricas mundiais decorrentes dos resultados acachapantes do sistema capitalista que desreferencializa o homem, mina-lhe a essência, e, no seu ritmo alucinante e envolvente, despersonaliza-o ao classificá-lo segundo certo perfil de consumo, padronizando os seus gostos, as suas necessidades. Outra grande variante condicionadora são os sistemas políticos, que desde a segunda metade do século XVI têm manipulado de tal sorte os destinos do povo português que se tem deixado conduzir às cegas, inconsciente da distância abissal entre a imagem que ele criou de si e a sua identidade, conforme pensamento de Eduardo Lourenço, em O labirinto da saudade (1982). O retorno ao mito do sebastianismo surge como possibilidade de esse homem refletir sobre a sua consciência histórica.
A questão da identidade nacional é o tema central de O conquistador, publicado em 1990. Este romance de Almeida Faria, um dos nomes mais expressivos da literatura portuguesa, revê a mitogenia lusitana segundo o viés da desconstrução da convenção, ou seja, questiona a tradição e persegue uma nova forma de interpretar o passado. A narrativa se reelabora como um discurso polêmico, em que o jogo discursivo instala uma paródia do mito sebastianista. A expressão, por sua vez, trabalha na mesma linha da dissolução do significado para a construção de novo sentido, criando uma constante tensão interna no texto, provocada pela ação da ironia, do grotesco e do fantástico, como adiante veremos.
Na revisão da História e do homem português, o retorno mítico realiza-se ficcionalmente mediante o processo de rememoração que o narrador-personagem realiza aos vinte e quatro anos. Esse número de anos estabelece estreita correspondência com a idade que tinha seu homônimo, D. Sebastião, quando desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir, na África. A lembrança da morte prematura do monarca português leva o narrador-personagem a pensar na sua própria existência. Dessa feita, a rememoração organiza-se em um jogo entre o passado e o presente, a partir do qual o protagonista questiona a visão messiânica cultivada pelos lusitanos e tenta conhecer a sua própria estrutura ontológica. Sebastião, perdido no marasmo existencial, é a metonímia acabada do homem português herdeiro de uma tradição imperialista destituída de império; descobridor de mares ancorado em um vazio de referências.
Movido pelo desejo de autoconhecimento, Sebastião abandona a vida de conquistas amorosas, deixa os ruídos do mundo exterior e propõe-se, nos sete meses que durará o seu relato, a repensar a sua existência. Face ao mistério da morte, indaga-se sobre o mistério da vida. O número sete, por excelência, associa-se a uma relação simbólica com o ritual de iniciação. Nascido aos sete meses como o jovem rei, o número sete será fator decisivo para o narrador-personagem. Como sua vida uterina se cumpre aos sete meses, o partejar da palavra só dará corpo à escrita em igual período. Ao refletir sobre a vida, ele faz também a reflexão sobre o seu processo de escrita. Estamos, portanto, diante de um ritual iniciático tanto do homem quanto do escritor-personagem. Servindo-nos do verso camoniano, Sebastião “começa de servir outros sete anos” (1968, p. 108), consciente de que o ato criador sempre propõe um recomeçar, porque a vida humana é uma constante busca de sentidos.
O discurso se constrói carnavalizando o mito sebastianista, constituindo-se, assim, escrita-leitura de outros textos. Procede-se, portanto, a um enfrentamento da memória coletiva, dessacralizando o mito. Aqui, as relações dialógicas se estabelecem segundo o princípio do oxímoro e são atravessadas pela exclusão do Outro, como teremos oportunidade de observar no extrato do romance que examinaremos. As vozes, elaboradas, citadas, assimiladas, interpenetram-se de maneira a ficar nas sombras do discurso monologizado de Sebastião.
Do ponto de vista composicional da narrativa podemos dividi-la em duas partes: do nascimento até a primeira infância, em que narra segundo informações do Outro – sua avó Catarina; a partir da idade escolar, o enfoque é inteiramente centrado no narrador-personagem. Deste momento, conta as suas próprias experiências, os seus sentimentos e até mesmo se torna porta-voz das outras posições ideológicas, via discurso indireto. Percebe-se ainda no discurso desse narrador de primeira pessoa a intenção de conferir veracidade, principalmente aos sucessos dos primeiros anos, quando não tem possibilidade de recorrer à rememoração. Para dar confiabilidade ao que transmite, lança mão de dois expedientes importantes: primeiro, estrutura a narrativa mediante as “histórias” que a avó “costumava contar”; segundo, ao falar de suas experiências, fundamenta-se com muita frequência na sabedoria dos provérbios, transmitida por seu pai.
O primeiro recurso apoia-se, de início, na natureza repetitiva do relato, que garante sua existência pela transmissão oral. A seguir, acrescenta a informação de que “as avós nunca mentem” (FARIA, 1990, p. 15). Aqui caminham juntas a forma e a ideia. Expliquemo-nos. O recurso da oralidade conjuga-se à perfeição com o topos do velho, imagem da sapiência. Este reforça a credibilidade do relato, fundando-o numa asserção de caráter generalizante que soa como uma verdade universal, traço que também encontraremos nos provérbios. O ponto de vista de outras “testemunhas” – seus pais e os cavaleiros (o cavaleiro maneta e seus peões e o cavaleiro Alcides, personagens presentes no seu nascimento), as vizinhas, etc – é filtrado, redimensionado pela perspectiva da avó que legitima ou coloca em descrédito essas vozes. O fragmento abaixo ilustra bem os processos dessa transmissão:
Levava uma vida soturna e embotada. Até os três anos não articulava uma única palavra. Este atraso linguístico encontrou em meu pai, nas vizinhas, nos respectivos maridos, tantas leituras quantas as dos oráculos sibilinos. Houve quem garantisse que eu beijara um espelho de algibeira que me emprestavam para brincar, e criança que beije espelho fica muda para sempre. Revelou-se falsa tal sabença, ainda que meu incipiente narcisismo lhe desse certas probabilidades de acertar. Não querendo atribuir culpas a quem inadvertidamente me tivesse deixado a sós com o espelho, meu pai opinava que eu tomara o bafo de um gato vadio que andava por ali. Ora, é do conhecimento geral que se um bebé se aproxima do focinho de um bicho, se arrisca a tatibitate.
Um dos faroleiros era de parecer que a minha mudez provinha de me terem cortado as primeiras unhas à tesoura, e não com os dentes como manda o preceito. Ao que minha mãe, mais instruída que a vizinhança, ripostava protestando contra tal superstição e contra o mau agoiro de já me chamarem o Miúdo Tartamudo. Nem estava pelos ajustes quando as comadres quiseram usar das mezinhas habituais em tais casos, mas acabou por concordar ante a insistência de meu pai. E lá me deram banho em água passada por cu lavado, uma vez que não nasci com o cu virado para a lua; e me meteram num saco e me levaram às casas de três vizinhas durante três dias; e me fizeram atravessar sete vezes a sala de entrada que, tendo duas portas, permitiria que a corrente de ar desentupisse as cordas da glote; e mataram um piolho da minha cabeça na asa de um cântaro de barro, remédio com fama de nunca falhar; e me obrigaram a comer ovos-moles; e rezaram muitos terços a Santa Clara, preceptora e protetora da linguagem, a quem minha mãe se dirigia já zangada:
Santa Clara vê se me consolas
Olha o menino que tenho ao colo
Que quer falar e não pode.
Perto do Pentecostes desentaramelou-se a língua. Estávamos, meus pais e eu, sentados à chaminé quando cabeceei de repente e caí para diante, como se fosse aterrar de bruços nas brasas. Minha mãe agarrou-me a tempo, impedindo que eu tombasse desamparado e, na melhor das hipóteses, ficasse desfigurado. O meu futuro teria sido outro, ou nulo, se numa fração de segundo os reflexos maternos não me salvassem do lume. Nesse mesmo momento saiu da minha garganta um ruído esquisito, e vomitei uma papa repulsiva, que caiu na lareira e ardeu logo ali num pestilento estrugir verde de bílis, semelhante às alforrecas que o mar atira à praia. Esta cena seria evocada vezes sem conta por minha mãe, que atribuía aquilo ao Santo Espírito em luta contra o Maligno (ibidem, p. 32-33, grifos nossos).
A extensão do fragmento justifica-se em virtude de ser o nosso propósito analisar as diferentes versões do relato. Dando sequência, chama a nossa atenção o fato de que a voz narrativa se preocupa em apresentar as outras posições ideológicas. No entanto, não se trata da incorporação das falas das outras personagens; o enunciador coloca-se alheio à citação como se ela estivesse entre aspas. Uma vez que ele próprio não se sente dono do fazer dessas experiências, o propósito de assim se posicionar reside na intenção de criar uma falsa noção de respeito ao ponto de vista do Outro. Este fala pela voz que rememora. Há, portanto, nesse processo, uma dominância da subjetividade do fazer interpretativo, inteiramente permeado pela ironia, que se instaura ao ladear o ponto de vista crédulo das outras personagens à posição ideológica de quem desacredita o que diz. A dupla leitura que se configura na sua organização verbal desencadeia a inversão semântica que, por sua vez, gera a ambiguidade na enunciação. Assim, o texto constrói o seu sentido dentro de um contexto, estabelecendo uma relação de conivência entre produção e recepção.
Segundo Brait, “a duplicidade enunciativa promove a adesão do enunciatário na medida em que esse passa a reconhecer não os valores do objeto enunciado, mas os do sujeito do ato enunciado" (1996, p. 94). Essa cumplicidade vai sendo reiterada e intensificada no processo irônico, permitindo o desdobramento da leitura e consequentemente o do sentido. Aos poucos, o enunciatário apreende o jogo discursivo em que se superpõem duas camadas semânticas no enunciado: uma que rememora, simulando fidelidade ao relato recebido; outra que põe em derrisão o que é contado. Cria-se, portanto, a ambivalência entre o que se diz e o que se pretende dizer.
Ademais, a presença de certos marcadores das sequências narrativas garantem o caráter da transmissão oral do relato. Cortázar, em Valise de cronópio, afirma que o narrador, quando transmite a história, exerce não só a função demiúrgica, como também aproxima o ouvinte dos tempos remotos em que a tradição oral era aguardada ao pé da fogueira (1974, p. 158). As expressões “ora, é do conhecimento geral que”, “e lá me deram banho”, “nesse mesmo momento” encadeiam o fio narrativo dentro da sequência temporal do contador de histórias. O princípio do relato oral é a temporalidade, que se desdobra em duas categorias: o passado, que se constitui no momento em que o fato teve sua origem e o presente, que confirma a narração segundo a voz do consenso, auferindo-lhe um caráter de verdade eterna. É importante notar que o recurso do saber partilhado está tanto na gênese (“houve quem garantisse”), quanto na permanência do relato (“Ora, é do conhecimento geral que se um bebé se aproxima do focinho de um bicho, se arrisca a tatibitate”; “criança que beije espelho fica muda para sempre”; “remédio com fama de nunca falhar”). Esta categoria temporal coincide com a circularidade do relato garantida pela transmissão e, por sua vez, também coincide com a reversibilidade: uma das categorias do mito, segundo Mircea Eliade (1992, p. 64).
Não se pode deixar de apontar que, ao mesmo tempo em que se inserem essas perspectivas, a voz enunciativa elabora o discurso para lhes dar uma orientação que as rebaixa. Esta degradação permeia a narrativa com a carnavalização das simpatias, como a do referido banho para “desentaramelar a língua”. Convém lembrar que nos rituais ligados ao banho lustral, via de regra, a água é aromatizada com ervas específicas. Mais: esse ritual tem a função de purificar, de elevar espiritualmente aquele que o realiza. Ora, não é bem o que acontece nessa cena; o rito integra elementos do baixo corporal. Apuremos um pouco mais essas ideias: a ausência da fala constitui-se, nesse contexto, como falta de algo que inabilita o protagonista a viver bem na comunidade. Daí o empenho do grupo em reparar este dano com inumeráveis “mezinhas” e simpatias. Entretanto o narrador-personagem retoma os rituais fundados nas crendices que preconizam que certas ações devem ser reiteradas três ou sete vezes e profana estas superstições recriando outras, em que a linguagem remete ao baixo corporal ou funde as primeiras a outros saberes da cultura popular, deixando explícita a intenção de escarnecer essas práticas.
A carnavalização do discurso não se restringe a essa passagem; ela está na dominância do texto. Ainda no extrato sob exame, ocorre outro procedimento de carnavalização. Nele se estabelece a relação entre o surgimento da fala da personagem com o episódio de Pentecostes. Nesta passagem do Novo Testamento, há o relato da descida das Ígneas Línguas, sobre os apóstolos para que eles pudessem “falar em outras línguas” (Atos dos Apóstolos 2, 4). Agraciados com este dom divino, eles poderiam mais facilmente realizar as conversões. No diálogo com a Bíblia, a narrativa penetra na zona da instabilidade. Do ponto de vista do crédulo, dá-se a reatualização da Descida do Espírito Santo por formas concreto-sensoriais; da parte do narrador-personagem, há a profanação do instituído por meio da ironia. O ponto de vista materno concebe uma série de manifestações que reforçam a crença na manifestação divina: o “lume”, “o ruído esquisito” que a personagem exterioriza, “a bílis” que expele. A enumeração de todas essas formas concretas, singulares, constitui uma percepção de metamorfose no ser e, ao mesmo tempo, uma anomalia na natureza, descrita no parágrafo seguinte ao excerto citado: a ave branca que “girava devagar, vogava sem bater asas, em círculos concêntricos à volta do Cabo, sobre a [sua] casa transfigurada por uma brancura fora do normal” (FARIA, 1990, p. 34, grifos nossos). A rememoração do episódio do surgimento da fala na personagem gera, a princípio, uma dubiedade, que se relaciona com o fantástico, tomado na nossa análise, de acordo com o conceito de Todorov.
O fantástico ocupa o tempo d[a] incerteza [...]. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. (1970, p. 148.)
Distribuídos em vários momentos do enredo, o fantástico surge como um dos traços que criam a hesitação na narrativa. Ele se materializa mediante a introdução de células dramáticas que geram o clima de mistério. Esse traço do fantástico torna-se argumento decisivo também para o convencimento do pai de Sebastião, referido como um homem que sempre fora cético. Entretanto, instaura-se um jogo entre o texto bíblico, emblema da verdade universal, e o olhar irônico e cético do narrador-personagem sobre a manifestação do Paracleto em Peninha. Este ponto de vista é recorrente na apresentação de acontecimentos que parecem sobrenaturais e que provocam sua hesitação: realidade ou fantasia? A Descida do Espírito Santo em Peninha ocorreu ou tudo não passou da imaginação das personagens portadoras do relato? No mesmo momento em que o enunciatário experimenta a vivência do fantástico, quer revisitando crendices populares ou fatos “sobrenaturais”, o narrador-personagem adianta-se e desvela o jogo expresso pela linguagem que desconstrói, negando o que antes afirmara.
Outro recurso significativo na narrativa é o grotesco atuando como mecanismo de carnavalização. O surgimento da fala do protagonista de O conquistador tece relações com o Primeiro Livro de Pantagruel[1] (2003), quando Rabelais descreve os sofrimentos de um homem gago para exprimir determinada palavra. A descrição deste episódio se aproxima ao ato de parir, isto é, após o chute que Arlequim dá no ventre desse homem, parece que este apresenta as contrações e os espasmos do parto. Analisando o trecho, Bakhtin comenta que no ato de dar à luz a palavra, há o destronamento do que é elevado, espiritual, por via da transposição para o plano material e corporal do parto. A palavra que nasce graças a operações mentais passa a ter existência no plano da manifestação corporal: a pressão desencadeada pelo chute no ventre. Situação semelhante é a que ocontece com Sebastião. Ele está prenhe da palavra. Somente após as revoluções do seu corpo (“cabeceei de repente e caí para diante”; “saiu da minha garganta um barulho esquisito, e vomitei uma papa repulsiva”) é que ela nasce. Procede-se, nesse passo, ao agenciamento do aspecto topográfico que instalará a hierarquia corporal do mundo às avessas: a palavra não surgirá da cabeça, mas das entranhas. Consoante Bakhtin, esta cena reconstitui um “pequeno drama satírico da palavra, o drama do seu nascimento material, ou o do corpo que traz a palavra ao mundo” (1987, p. 270). Em outra medida, a escritura representará também o parto da palavra.
Podemos ainda observar que essa sequência de perspectivas variadas (das vizinhas, do pai, da mãe) é arrematada pela justificativa da avó que procura dar coerência à história de vida de Sebastião: se ele nasceu do mar, o retardamento da fala poderia ter sido ocasionado ou pela “água que entrara nos ouvidos e [ele] não ouvia os outros falarem; ou que engolira um bicho marinho que [lhe] enguiçara as cordas vocais” (FARIA, 1990, p. 35). Volta o fantástico e, portanto, sobrevém nova oscilação na narrativa. Teria realmente Sebastião nascido do mar salgado para onde fora o rei D. Sebastião conquistar as terras do norte da África? O próprio protagonista se apoia no relato da avó ao contar que a secreção expelida no surgimento da fala era “semelhante às alforrecas que o mar atira à praia”. Como já dissemos, o ponto de vista da avó sempre tem o caráter de conclusivo em relação aos outros relatos, o que manifesta o traço de discurso autoritário. Sebastião, porém, coloca-o em suspense, para mais adiante destroná-lo com seu chiste, como pode ser observado a seguir.
Quando agora fecho os olhos, no deserto deste ascético fevereiro, regressam com violenta nitidez as lutas de dois gangs rivais que mutuamente tentam liquidar-se [...]. Por palpites distingo quem é quem, sob o sol e a poeira que não me deixam ver e me fazem vacilar de tonturas e vómitos.
Durante noites e noites seguidas, como num livro de muitos capítulos, vinham até mim amostras do que será o inferno, se existir. Mesmo que não exista, haverá qualquer limbo, zona turva de onde saem estes horrores não vividos, ou esquecidos (ibidem, p. 35, grifos nossos).
Neste fragmento, o narrador-personagem resgata o mito sebastianista, fundindo-o com suas experiências. Faz uma associação da “libertação da língua” às “tréguas dos pesadelos que [lhe] assombraram muitos sonos”. Ele não se furta de, na diegese, sempre voltar à concepção do “mito do eterno retorno”. Nessa sequência narrativa, retoma-se a hipótese da alteridade: Sebastião reatualiza o mito, assumindo vicariamente, em momentos, a vida de D. Sebastião. O percurso narrativo desenvolve-se a partir do cruzamento de vários relatos: o de seus pais, que contam sobre os choros e sobressaltos após os sonhos, as suas próprias lembranças, as imaginações e as reações que ainda o desestabilizam, como sendo lembranças de outra existência ou manifestações do seu inconsciente.
Esse procedimento em que se fundem vivências (de D. Sebastião e de Sebastião) é resultado do entrecruzamento de planos temporais no processo narrativo, que se urde imbricando o relato do Outro (pais, avó, dentre outras personagens que asseguram que Sebastião é a reencarnação do monarca português) com a simultânea desmistificação do mesmo pelo narrador-personagem. Fazendo parte do gênero dos romances de formação, o recurso analéptico recupera o mundo da fantasia da criança que, por vezes, ainda ecoa no presente, enquanto a derruição do mito corre por conta da perspectiva analítica e cética do narrador adulto.
Nos momentos de confrontação da imagem de D. Sebastião com o seu duplo burlesco, conforme se lê no extrato acima, o imaginário do narrador-personagem converge em formas dramáticas, mimetizando o encontro de “duas gangs”. Atualiza-se um enfrentamento da leitura oficial da História, contrapondo uma oficiosa, ao reduzir o embate em Alcácer-Quibir a um confronto de gangues, ou seja, encontro de grupos rebeldes à margem do sistema. Cria-se um simulacro truanesco do herói épico, com o objetivo de subverter o mito sebastianista. Assim, o mito é desconstruído: não se mantém o tom elevado de que fala Kayser. No momento em que se reconta a História, a ironia estrutura o discurso, entrecruzando com variadas formações discursivas que rompem com a epicidade da saga e erige-se um herói degradado. Ainda segundo Kayser, o que caracteriza a epopeia “é o tom elevado, o modo de contar elevado, épico” (1967, p. 259). Como temos visto, em O conquistador há o rebaixamento da narrativa épica, constituindo-a ironicamente.
O discurso do narrador-personagem assume dupla face, resultado do jogo da linguagem inscrita no romance. Desenvolve-se, aparentemente, na esteira da reflexão filosófica sobre as questões existenciais entretecidas por pensamentos decorrentes da formação humanística desse sujeito: a recuperação do topos da descida ad inferos e o da reminiscência. No fluir da exposição que simula guarnecer-se de um tom sério, o discurso deixa-se permear pelo tom zombeteiro, escapando-se dos fios da meada filosófica. Eis que a narrativa volta a percorrer outra zona de instabilidade, de transição. A linguagem impõe um jogo em que o enunciado ocupa a esfera da mobilidade: o sentido e/ou o tom primeiramente introduzido depressa cede espaço para outros (sentido e/ou tom) que os denegam. A narrativa desconstrói o dito, para construir outras verdades que se apresentam na sua jocosa relatividade. O discurso do narrador-personagem coloca-se sempre na fronteira entre aquele que quer resgatar o passado, mas põe em cheque o relato da tradição. A personagem envolve no mesmo gesto de recusa tanto o seu passado quanto o passado histórico português.
Em síntese, a linguagem que forja o romance é marcada pela ambivalência. Ao mesmo tempo em que se instaura uma escrita fugidia, em cuja dinâmica o significado flutua no significante, ela também desperta o prazer no receptor que se sente desafiado a perscrutar as oscilações dos signos que ora simulam resgatar a tradição, ora desnudam as intenções do jogo verbal e rebaixam o dito. Sob este enfoque, a ludicidade torna-se instrumento de transformação do código e princípio de prazer estético. A ironia, o grotesco e o fantástico, matérias-primas de construção dessa paródia, atuam como expedientes que criam a pluralidade de sentidos no texto e enformam uma nova maneira de ver o mito sebastianista, perspectiva que não mais aceita a visão providencialista legitimada pela memória coletiva.
Permeando a estrutura arquitetônica que plasma a personagem, temos o motivo do homem português em busca da lusitanidade, como diz Eduardo Lourenço (1982). A cosmogonia do protagonista simboliza a demanda da verdadeira imagem portuguesa que rejeita a contra-imagem imposta pela História. A personagem não se fecha. Por um lado, ela vive num marasmo que a inabilita a agir e a comunicar-se, sem encontrar solução para a sua vida e, por outro, este inacabamento representa para si mesma um valor ainda por vir.
No jogo de desconstrução-construção da narrativa, as relações dialógicas excluem a visão do Outro, para refirmar apenas uma posição ideológica. Como resultado, a personagem perde a complexidade humana fundada no entretecer dos vários pontos de vista. O herói torna-se objeto do discurso autoral que deixa manifesto seu ethos dessacralizador.
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NOTAS
[1] Gargântua e Pantagruel, do francês François Rabelais, contam histórias de dois gigantes vorazes, alegres, com força descomunal. Pantagruel foi publicado em 1562 e só depois do sucesso deste livro é que aparece Gargântua. Mais tarde as duas obras passaram a ser publicadas em uma única edição como fez a Itatiaia e tantas outras editoras. Gargântua e Pantagruel fazem uma sátira às instituições públicas e eclesiásticas.
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