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EU VOU A LA SERENA


Com a alma nos olhos, te contemplei extasiado.
Fui pronunciar teu nome e fiquei sem voz...
E por meu ser inteiro passou um tremor sagrado,
Como se em ti, nua, se me mostrara Deus.

(Manuel Magallanes Moure)




I

Ontem me aposentei. Foi meu último dia de trabalho. Nunca mais na vida voltarei. Hoje é a primeira quarta-feira, dos últimos anos, que passo uma manhã em casa. É meio dia. Há sol. Logo irei almoçar. É verão, vinte e oito graus. O céu está azul. Simplesmente vejo passar o tempo. Estou tranqüilo. Uma suave calma invadiu minha casa esta manhã. Penso em tantas coisas do passado. A janela, meio aberta, deixa entrar um agradável cheiro do jardim. O sol entra radiante pelos vidros. Penso também nas montanhas distantes. Neste primeiro dia de descanso estou pensando em coisas que não tenho. Que nunca tive. Ou que simplesmente perdi.

Para dizer a verdade, só tenho pensado em uma coisa. Ou, mais verdade ainda: em uma única pessoa. Faz anos que não a vejo. E esta manhã penso nela. Sim, é “ela”.

“Laura, espera de tantos anos, desejo triste, amor sem medida, meu fogo e ternura. Meu amparo e desventura. Desamor inacabável. Esquecimento. Neve caindo em minha existência. Se não fosse por ti a vida teria sido menos triste. Mas tu tinhas de existir e eu tinha que te encontrar. Hoje, depois de tanto tempo, ainda te amo. E neste dia de descanso perdurável penso em ti”.

Nesta quarta-feira penso em Laura. E penso tanto nela, que estou pensando em outra coisa. Em viajar. Em voltar a vê-la. Sim... Irei buscá-la! Está resolvido!

“Laura... o Vale desce por minhas veias cada vez que pronuncio seu nome. E o pó de todos os caminhos se deposita em minha pele e o sol cega minha vista. E o deserto aparece diante de meus olhos... e uma alegria infinita me invade ao pensar que você existe, que você é, que está em alguma parte. E você é tempo. Só tempo e areia...”.

Irei vê-la. Sem mais nem menos. Quero um instante frente a seus olhos. Só isso. Um único instante, esperado por tanto tempo. Desejado e temido.

“Laura, você também me amou. Eu sei. E se todos estes anos vivemos separados não é culpa de ninguém. Hoje eu sei. É só a vida, o destino vazio e sem sentido. Ninguém é culpado. Nem você, nem eu. Nem ninguém. É somente a roda da vida que gira e gira. Laura, paz de minha alma. Hoje que sei que não devo odiar você, nem amar você, nem esperar nada, vou te procurar. Hoje que sei que nunca mais terei você, que já faz mais de quarenta anos que a perdi, quero vê-la. Só ver você, Laura. Não tenho nenhuma ilusão, nem esperança, nem temor, nem tristeza. Só esta ânsia de estar com você novamente”.

Sim, hoje me sinto diferente. Não há em mim nenhum sentimento, a não ser este desejo ardente de ir a La Serena. Este dia será dedicado todo a Laura. Sem amor, sem rancor, sem medo, sem ciúmes: um dia para ela.

“Este dia é para você, anjo da aurora. Pensamento de todas minhas manhãs. Sua lembrança envelheceu junto comigo. Você se transformou em vazio, em ruas sozinhas, em estações solitárias, em desertos. Houve vezes que sua lembrança não tinha nenhuma cor, mas você sempre estava em mim. Laura, quantas chuvas passei dizendo seu nome baixinho, quanto tempo, quanto nada, quanta tristeza, quanto sentimento inútil. Laura, você não tem culpa de meu amor. Você é inocente: eu não pedi licença para te amá-la assim. Somente a amei. Porém, também não lhe peço perdão, porque eu tampouco tenho culpa. Eu não escolhi você. Somente a amei. Não sei como, só sei que eu não escolhi. Muitas vezes quis deixar de lhe amar e não pude. Sou inocente, não dependia de mim, por isso, não me condene por tantos anos de amor.

Laura, talvez você pense em meus versos e na luz dessa tarde, em que estivemos até a noite em sua cama. Talvez você pense se voltei a lhe escrever algo. Ou, simplesmente, releia o que escrevi um dia, há muito tempo. Quarenta anos são suficientes para enterrar até um templo no deserto. Somente sobreviveu meu amor, este amor, Laura, este amor que nasceu e me consumiu. Nos consumiu, nos uniu e nos separou. Quando você me amava mais, nos separamos. Esse dia, entre todos os dias, foi o que mais a amei. Nos separamos, amando-nos. Somente chorei por você uma semana depois. O sorriso que dei durou só isso. Logo se foi apagando e um dia já não permanecia nada dele. E meu rosto se entristeceu, Laura. E não ficou nada, só o silêncio. Silêncio por você, pela vida. E, desde então, levo uma rebeldia e uma indiferença dentro de mim. Uma apatia frente ao mundo, um certo desinteresse. Um desencanto e um desapego. E uma sede inesgotável de viver, de sentir o sol e amar. Amar sempre. Amar e amar. Apesar de tudo, amar. Laura, você também desejava viver e amar. E eu sei que você me amou. E, naqueles dias em que estávamos juntos em La Serena, eu fui sua alegria, seu ímpeto e a felicidade incessante de viver.

Agora, em alguns dias, voltarei a vê-la. E quero te dizer que nunca parei de pensar em você. Você era um pensamento que chegava a cada manhã. Quando abria os olhos, eu pensava em você. De início, era com tristeza, com raiva, com desespero. Nos primeiros anos, eu queria esquecê-la, e foram anos de tristeza. Logo aprendi a viver com sua lembrança e já não o quis mais. Você era um pensamento afável, que me vinha nas horas de solidão. Com o passar dos anos, sua lembrança foi algo prazeroso. E pensava em você, em minhas noites obscuras e nos invernos gelados. Laura, deserto inesgotável, mar de minha existência”.

Um dia, Laura estava séria, nada dizia, olhava para o céu e para o chão, constantemente. Perguntei-lhe o que estava acontecendo. Disse-me que nada. Logo depois de um instante de silêncio, disse que queria contar-me algo. Perguntei-lhe o que era. Disse que iria deixar-me. Permaneci em silêncio. Ela também. Logo disse que me amava. Logo simplesmente me deixou.

Agora, voltarei a vê-la. O sol me redimirá ante seus olhos. O céu azul e o sol de La Serena verão que quando ela me olhar eu estarei com a maior alegria, a mais intensa, a mais permanente. Serei feliz diante de seu corpo. E a luz desse momento penetrará até o recôndito de minha alma e então lhe direi: nunca deixei de amar você.

“Laura, pão de minha poesia. Sua lembrança envelheceu em meu coração e ainda está ali, chegando-me nas alvoradas. Enchendo-me de vida. Agora, tenho somente a felicidade de saber que um dia encontrei você e que você me amou. E que amei você. Isso me faz feliz. Quando penso que você está em alguma parte, imagino seu cabelo, quiçá agora branco, e seu doce olhar, talvez agora cansado. Gostaria também de ter envelhecido dentro de seu coração, não ter saído dele, estar em cada batida”.

Tenho uma foto de Laura. Faz algum tempo, mandei fazer uma cópia. O original estava tornando-se amarelado. A cópia é de melhor qualidade. Agora, parece nova, recém tirada. Laura está com o cabelo solto que lhe cai até os ombros. Com dois brincos. Blusa preta e calça azul. Olhar intenso e doce. Cabelo escuro. Nessa época, Laura havia emagrecido. Recordo que comia pouco. Na foto, está mais magra que quando a conheci.

“Laura, tempo de meu tempo. Você é velhice e juventude. Imagem tenaz nos vales de minha mente. Imagem indelével numa foto. Teus brincos. Tudo está igual, faz tantos e tantos anos. Porém, quando a vir, Laura, você envelhecerá num instante. E o tempo completará o inacabado e me devolverá sua imagem fragmentada... E, então, você saberá que por toda a vida me preparei para voltar a encontrá-la”.

Conheci Laura em La Serena, numa quinta-feira, na pracinha em frente à igreja Santo Domingo. Era Julho, inverno. A suave chuva do norte entristecia os campanários e o mar na distância. Era uma tarde fria. Laura estava sentada em um banco de pedra. Estava simplesmente sentada. Não fazia nada. Somente estava ali. Com um casaco azul. Olhava a chuva, sentada, com o guarda-chuva aberto. Suas botas estavam molhadas. Era um anjo no meio da chuva. Nesse palco de pedras, conheci Laura. E foi ali que comecei a amá-la. Desde então, as pedras e a chuva permanecem em minha alma, junto à visão de Laura. Eram quatro e vinte da tarde. Umas pombas molhadas procuravam proteger-se da chuva e faziam vôos curtos. As paredes de pedras intensificavam suas cores ao serem tocadas pela água. Sentei-me em um banco perto de Laura. E ali fiquei. Sem fazer nada. Somente estava ali. Não esperava nada. Somente olhava Laura sentada nesse cenário perfeito. Era pura harmonia, beleza e eternidade. E a chuva caía, molhando as muralhas e transformando as cerâmicas do piso em espelhos onde se refletia o céu nublado, a vida que transcorria e a placidez desse momento, o primeiro perto de Laura.

E, então, ela me olhou e ficou me olhando e meu olhar se encontrou com o dela. E a chuva caía. E, depois de um tempo, eu simplesmente fui até ela e me sentei ao seu lado. E lhe falei da chuva e ela me falou de velhos poemas que um dia havia lido. E eu lhe falei dos vales de minha alma e ela me falou das flores que nasciam nos vales. E eu lhe falei da beleza de seu rosto e ela não disse nada, simplesmente se inclinou sobre mim, apoiou sua cabeça em meu braço e ficou olhando a chuva. E eu tampouco disse mais nada, tomei sua mão e senti a fragrância de seu cabelo úmido. E olhei a torre de pedra e, depois, somente olhei Laura. E ali ficamos, nessa tarde imperecível e memorável. Logo ela me perguntou se eu gostava de sopaipillas. Disse-lhe que sim. Disse-me que poderíamos comer algumas na rua Prat. Fomos e conversamos sobre muitas coisas. E rimos e fomos felizes. E, no fim da noite, combinamos de nos ver no dia seguinte. Nos encontramos no mesmo banco. Logo vieram muitas outras tardes, manhãs, entardeceres, “meio-dias” e ocasos. Outras chuvas e outros bancos. Outras garoas e outros poemas. Laura estava em minha vida e eu era feliz. Imensamente feliz.

“Laura, essa chuva ainda cai nas cordilheiras sem fim que há em minha existência. E, ali, encontro você sempre. Sempre. E você é garoa. Laura, na visão dos campanários molhados está o meu amor de todas essas horas. Horas de inverno. Quando as altas torres e os bosques balançados pelo vento penetravam em minha alma e meus olhos se perdiam em todos os horizontes. Só você era minha alegria, seu abraço me deixava feliz. Só você, ser de meu ser. Laura, a doçura dos seus olhos foi minha salvação. Redentora minha, essas tardes teriam sido mais tristes, se você não estivesse do meu lado. A felicidade que sentia, devo-a a você. Somente a você”.

O primeiro beijo foi no Morro Santa Lucia. Dali via-se o mar, a praia e o horizonte. Podia se ver quase toda a cidade. O farol, as torres das igrejas, o Parque. Coquimbo e os morros ao fundo. Era o doce e sossegado entardecer de La Serena. Tudo parecia plácido. As aves voltavam a seus ninhos e voavam em formação pelos céus. Ao nosso redor, os últimos cantos dos pássaros. As luzes começavam a acender-se. O horizonte se enchia de vermelhos e amarelos pelo sol que ia embora. Foi o palco perfeito para nosso beijo. Logo os sinos do carrilhão anunciaram as seis da tarde. O cheiro de eucaliptos era forte. Vimos aparecer a primeira estrela e os olhos de Laura brilharam. E a felicidade enchia nossas vidas.

“Ah, Laura, se eu pudesse voltar a esse entardecer, e se eu pudesse reencontrá-la exatamente ali. Nesse mesmo banco e com o mesmo horizonte. Laura, eu a amei nesse ocaso. Juro que a amei. E fui feliz, imensamente feliz. Olhávamos o horizonte... as aves... a cidade lá embaixo.
Então, de repente, você me perguntou: Você me ama? Respondi que a amava com todo meu coração, com meu sangue, com todo meu corpo, tudo. E, desviando a vista do horizonte, você me olhou e disse: ‘Um dia, se um dia não estivermos juntos, se estivermos distantes, quero que você lembre desta tarde... desta hora de amor, em que amo você’. Respondi: ‘Eu a levarei para sempre dentro de mim, eternamente’. E nos beijamos e permanecemos abraçados. Laura, quantas vezes pensei nesse entardecer. Na distância, me envolvias. Laura, eu lhe agradeço por esses momentos. Agradeço, anjo da minha vida. Agradeço por esse beijo. Somente devo agradecê-la”.

Gostaria de voltar a esse banco de pedra, mas não será possível. Os militares, depois do golpe, fecharam a colina e proibiram a entrada. Já comprei a passagem, viajarei de ônibus. Ontem, comecei escrever a letra de uma canção sobre minha ida a La Serena. Imagino-a cantada com ritmo de valsecito. Por hora, escrevi somente um único verso:

Eu vou a La Serena Para dizer-lhe que a amo Dizer-lhe que tem estado “Vivinha” em meu sentir.

“Laura, seu fogo ainda me queima. Dorme outra vez comigo, Laura. Quero sua carne quente. Seu olhar em meus olhos. Seu sorriso ao despertar...”.

E escrevo outra estrofe do valcesito:

Eu vou a La Serena
Porque a quero tanto
Para encontrar o amor
Que me fez viver.

Uma vez, Laura me escreveu uma carta. Uma única carta. Foi sete meses depois de nossa separação.


Meu querido:

Penso em ti algumas vezes. A separação não foi fácil. Porém, também não foi difícil, tudo é tão estranho. Não sei se rio ou choro. Algumas vezes, quisera que estivesses ao meu lado. Outras não. Ontem, despertei e queria tanto te ver, porém, com o passar das horas, esse desejo foi desvanecendo, e, ao fim da tarde, já quase não pensava em ti. Ainda à noite, quis voltar a te ver, mas foi só por um instante. Creio que já não te amo. Mesmo que pense em você algumas vezes. Na realidade, não sei se te amo. Algumas vezes, quero voltar a fazer amor contigo. Mas creio que não é amor. É desejo, solidão, não sei. E você, como está?

Beijo
Laura



“Laura, ao ler essa carta, também não amei você. No meio da noite, despertei, e havia sonhado com você. Olhei pela janela, a noite estava úmida. Era uma umidade desconsolada e glacial. Laura... desamparo e dissabor da minha ternura. Solidão e saudade de todas as sombras”.

Não respondi essa carta. Ela também não voltou a escrever. Comecei uma, porém nunca a terminei. Simplesmente não sabia o que dizer. Assim, meu silêncio dura quarenta anos.

“Porém, agora, Laura, irei encontrá-la outra vez, e poderei lhe dizer tudo o que guardei por todo esse tempo. Laura, ah! doce Laura. Como quero reencontrar você. Sentar-me a seu lado e conversar, conversar, contar-lhe tudo, esgotar minhas palavras. Dizer para você tudo o que tenho pensado, desde que nos separamos. Abrir minha alma. Contar a você tudo o que fiz. Por onde andei. O que li. As pessoas que conheci. Laura, eu quero que saibas sobre minha vida. E quero que me conte também sobre você. Sobre quarenta anos que não nos vimos. Quero saber tudo...”.

Eram quatro da tarde, chovia. Laura e eu em sua casa. Em seu quarto. Não havia ninguém mais. Estávamos sozinhos. Nos fomos aproximando. Ela se sentou na cama e eu me sentei ao seu lado. Eu olhei a chuva cair na janela e logo não tirei os olhos dela. Laura estava se despindo. Eu também. E entramos debaixo dos lençóis. Foi nossa primeira vez. Logo a noite caiu sobre a casa, escurecendo nossos corpos. Laura se fazia sombra ao meu lado e em pouco tempo, na escuridão, só pude sentir seu calor. Permanecíamos abraçados, silenciosos. Olhei a silhueta de seu corpo várias vezes. E nos dissemos que nos amaríamos sempre. E ali ficamos até o outro dia.

“Laura, seu corpo é inesgotável em minha memória. Aquela tarde permanece inextinguível... Para sempre, por todo sempre. Aquela tarde encheu minha vida. Essa tarde foi suficiente para encher uma vida de poesia. Desde aquele momento, tive lembranças para uma eternidade”.

Nos levantamos e fomos até a estação para tomar o trem que subia para Vicuña. Lá passamos o dia todo. Visitamos o museu de Gabriela Mistral e depois fomos ver o rio. Permanecemos algum tempo sentados na Praça, entramos na igreja e depois comemos umas coisas que Laura havia levado. Vicuña estava quente e seca. A grandeza das montanhas a rodeava. O céu era azul intenso. Laura e eu éramos infinitamente felizes. O domingo passou na suavidade e tranqüilidade que Vicuña nos oferecia. E aceitei esse dia, eu o aceitei em toda sua simplicidade e grandeza. À tarde, voltamos a La Serena. Enquanto o trem descia pelo vale, a noite ia caindo. Laura dormia a meu lado, recostada em meu ombro. Eu olhava as montanhas e me sentia feliz de ter vivido um dia feliz. Quando chegamos, fomos à casa dela e fomos direto para a cama. Ela me beijou e me disse:

– obrigada por este dia.

Disse-lhe que a amava. E ela me disse que me amava mais ainda. Algumas horas depois, regressei, caminhando para minha casa. Meu coração estava cheio desse dia de claridade e do amor de Laura. Sua blusa celeste, sua saia azul e sua pele dourada pelo sol estavam em minha memória. Laura era mais bonita com as montanhas como pano de fundo. Ainda tinha em minha boca o sabor de uva de seus beijos. Dormi profundamente e sonhei com ela.

E escrevo uma nova estrofe de meu valcesito:

Eu vou a La Serena
Porque a quero tanto
Para encontrar o amor
que me fez viver.

“E agora você me verá feliz, Laura. Quero ser resplandecente ante seus olhos. Quero que você pense que todos estes anos fui um homem feliz. Que seu corpo me fez feliz. Que você foi a minha felicidade. Que ter conhecido você foi suficiente para encher de alegria a vida de um homem”.

Abro um livro. Dentro está uma foto de Laura, sua carta, um poema que comecei e nunca terminei e uma mecha de seu cabelo.

“Laura, sua silhueta desnuda permanece como uma estátua de pedra. E sua roupa caindo sobre a cadeira é uma visão que me acompanha sempre. Laura, você é a felicidade de um quarto com nossos corpos desnudos. Felicidade submergindo-se nos labirintos de seu corpo, que se escurecia junto com o ocaso. Eu nascia com a noite. Nascia a seu lado. Feliz de estar com você”.

Agora é noite. Penso em uma manhã em que ficamos olhando a torre de pedra da Igreja São Francisco, que se elevava solitária entre a fina garoa que caía sobre a cidade. Era grandiosa. O céu nublado era o sublime pano de fundo para essa imagem. Parecia que nessa torre estava toda a ternura e piedade do mundo. Imediatamente, Laura começou a chorar. E, abraçando-me forte, disse que me amaria para sempre e que nosso amor seria como essa torre: forte e terno. Tirou uma pequena tesoura de sua bolsa e cortou uma mecha de seu cabelo. Dando-me, pediu que eu a guardasse para sempre. Seria a relíquia desse momento.

“Laura, hoje penso nessa torre e sinto uma ternura profunda. Uma doce bondade frente a vida, uma afável e mansa gratidão pelos momentos que vivi a seu lado. E carinho pelas lembranças que você me deixou. Ainda tenho sua mecha de cabelo. Laura, torre fria, perdendo-se no nada do céu. Manhã cinzenta, mecha velha e cansada, que nunca se tornou branca. Laura, penso nessa torre e ainda escuto você dizendo que me amava e que me amaria para sempre. E penso como fui feliz. Ainda que você chorasse abraçada a mim, eu era feliz. Suas lágrimas de amor e de felicidade suavizaram a verdade das ruas úmidas. Um vento suave moveu seu cabelo e secou suas lágrimas. Seu rosto se tornou afável e você me olhou por um longo instante”.

Depois, nos sentamos em um banco e ficamos ali até que chegou a noite. Fomos a casa de Laura. Quando nos separamos, Laura me pediu que lhe escrevesse um poema. Disse-lhe que o faria essa noite e que o daria para ela no dia seguinte. Fiz e lhe entreguei:

Nada há em minha alma
que não grite teu nome,
nem há em mim um desejo
que não seja de você...
Você é beleza e calor
que comove a garoa,
e eu sou eterno...
com você frente a mim.

E amo você
diante deste vento
e desta torre de pedra.
E seu beijo e seu abraço,
e sua existência que amo,
ainda chorando,
me fazem feliz.

“Laura, separarmo-nos foi como morrer. Eu fui morrendo. No silêncio da manhã ensolarada, eu morria. Ao meio dia, morria. Morria aos entardeceres. Nas noites. Laura, a palavra nunca me soava aos ouvidos e um vento glacial e cortante me corroia o coração. Às vezes, não sabia se você estava distante ou perto. Não sabia! Nem sequer sabia onde você estava, nem o que fazia. Nem sequer sabia se devia pensar em você. Todas suas portas estavam fechadas. Foram se fechando todas e somente houve duas coisas no mundo: você e a distancia. Somente duas coisas: você, em alguma parte e o restante era distância, pura distância, incalculável separação. Longitude aterradora e silenciosa. Então, eu dizia a mim mesmo que você já não significava nada. Que era somente uma sombra. Que você já não podia doer-me, nem me fazer feliz. Você era nada mais que vazio: perpétuo e sem nome, que se fundia em minha carne. E então, já não pensava em ter você, nem em voltar a vê-la. Pensava que pensar em você era inútil. Pensava que quiçá, você já nem sequer sabia que eu existia. E sentia que sua beleza era vazia e decadente, malvada e sedutora”.

Há pouco, escrevi duas novas estrofes da minha música, meu valcesito:

Eu irei por essas ruas
de aromas e de encontros
sentindo em minhas veias
todinha a emoção.

E voltarei a sentir
minha alma apaixonada
nesse velho parque
perto do Carrilhão.


Agora, chove. Uma chuva tênue e persistente cai sobre a cidade. Faz um pouco de frio. O cheiro da umidade se esparrama por toda parte. Da minha janela, vejo as gotas. E a lembrança de Laura volta uma e outra vez. Simplesmente lembro dela.

“Laura... neve persistente caindo sobre as alturas do Vale. Você é a própria montanha. Você é gelo e frio que penetram em minha carne, nos meses de outono. Você é a triste visão de um vale que me faz lamentar que a vida seja tão curta. Tão curta para um amor tão grande. Laura, amor nevado, silencioso, frio e inalcançável”.

Um dia, faz já muitos anos, despertei e não pensei em Laura. Era a primeira vez, em muito tempo, que abria os olhos sem pensar nela. Busquei-a entre meus pensamentos e não a encontrei. Era uma manhã de sol. Sol tênue, entrando pelas frestas da janela. Pus-me a pensar no deserto. Aquela manhã foi calma e silenciosa. Todavia, um dia depois, quando abri os olhos, ali estava novamente sua presença. Havia sonhado com ela. E no sonho, ela me falava. Uma xícara de chá foi tudo o que tive nessa manhã de outono e de luz entrando pela janela. E pensei em Laura, almoçando comigo, em La Serena, quando o sol iluminava a cidade debaixo de um céu tenazmente azul. Era domingo, agora me lembro bem. Logo somente veio o vazio. O nada de um dia de domingo de claridade e amor. De parques com crianças brincando e famílias que passeavam pela praça. E homens que escutavam os jogos de futebol nos rádios portáteis a pilha. Nada mais, somente isso. Somente Laura e eu, passeando.

Agora, no calor e na quietude de meu quarto, escrevo outras duas estrofes de meu valsecito:

Irei pela Avenida
de estatuas e de bancos,
lembrando de um poema
que um dia eu escrevi.

E tomarei na tarde
de amores e de encanto
um suco de papaya,
Que vendem por aí.

“Laura, a idéia de não vê-la novamente, de nunca mais vê-la, é demasiada lúgubre para suportá-la. Digo a você, Laura, não há dor mais cruel que não te ver novamente. Quero um único instante diante de você. Um sorriso. Talvez um beijo. Ah! Um beijo! O que eu não daria por um beijo! Laura, eu penso em você infinitamente. E se não a vir de novo serei sombrio pelo resto da minha vida. Estar diante de você uma vez mais me daria uma alegria que duraria pelos anos que me restam da vida. Laura... Meu amor... Minha vida distante. Por isso, vou lhe procurar e estarei outra vez junto de você. Ah, um beijo! Um beijo! Talvez me convide para dormir com você... Laura... Talvez, quem sabe? Seria a maior alegria, a mais ostensiva e formidável, a mais abundante, seria a alegria das alegrias. O ápice dos regozijos. A única alegria. A felicidade plena e definitiva”.





II


Há alguns instantes cheguei a La Serena. O dia está nublado. Não faz frio. São dez horas da manhã. Estou sentado no terminal de ônibus, tomando uma xícara de chá. Não sinto nada. Gostaria de sentir algo neste instante tão esperado. Porém, um vazio profundo se apoderou de mim. Não estou feliz, nem triste. Não sinto amor, nem nada. Somente a manhã nublada. Laura parece distante, perdida no tempo. O desejo de vê-la novamente que abriguei por tantos anos, agora não existe mais. Deve ser o cansaço da viagem, não sei. No guardanapo que está sobre a mesa, escrevo: “LAURA”. E, de repente, percebo que o que sinto é um grande desejo de viver. O mesmo que me acompanhou por todos estes anos. E que o sol e Laura são quase a mesma coisa pelos desfiladeiros agrestes de meus sentimentos. Agora, quando olho para trás, vejo que caminhei pelos extensos vales de Laura e que agora estou voltando. E que só tenho este momento, que também passará e será inexistência. E o único que permanece é a vida. Vida e desertos. Somente a vida, nada mais. Somente o impulsivo ato de viver... e Laura.

“Laura, você é metáfora sem sentido que apaga meu rastro nas areias. Metáfora dolorida e vazia. Laura, agora vejo claramente: somente sei amar você sem esperança. Não sei amar você de outra maneira. Somente sabia amar você vivendo e querendo mais vida. Somente sabia amar você amando a vida. Aceitando sua vida em minha vida. E, agora, somente tendo este amor murcho. Laura, meu amor é triste porque a vida é triste, porque encontrar você foi triste e porque perder você foi triste. Porque, ainda se tivesses me amado por toda a vida, eu estaria triste, porque queria outra vida para continuar amando você. Estaria triste, porque esta vida seria curta, pouca, somente um instante. Porque não queria que seu amor morresse e não quero morrer, nem quero que você morra. Laura, é o tempo que passa, são as árvores que balançam, são os sinos. É a vida que transcorre simplesmente. Você é o único que permanece.

Devo dizer-te algo: aquela primeira tarde que passamos juntos, quando estávamos nus na cama, quando já era quase noite e você dormia ao meu lado, pensei na eternidade. Não sei por quê. Eu me sentia feliz, mas esse pensamento apareceu e caiu em seu seio nu na forma de um beijo. Então, despertando, você me abraçou e disse que me amava... que sempre me amaria. E, em seu abraço nu, você me mostrou a eternidade. E fomos eternos na verdade de nossos corpos”.

Agora, neste momento, penso nesse instante e vejo que tudo está bem. Não tenho nada a dizer, nem do que me queixar, nem lamentar. Tudo está bem. E, diante desta cidade que viveu em meu coração por tantos anos, compreendo que nada poderia ter sido diferente. Que tudo está bem. Compreendo que nada tem sentido e que não há sentido para nada.

“Tudo é puro silêncio e você. Nada mais. E você, Laura, é somente matéria que envelheceu nesta cidade. Somente matéria. Laura e vazio. Nada mais. Esta manhã o compreendo: meu amor por você é nada, não existe, é pura solidão, angústia, inquietude, impaciência. E que tudo está bem. Agora, frente à visão dos pinheiros, eu sei: amar você foi puro desespero, tentativa de encontrar sentido em algumas coisas, de me rebelar diante do nada do mundo. Laura, se houve algum sentido, foi você. Se houve alguma alegria, foi você. Se, em algum momento, o vazio deixou de ser vazio, foi por você, somente por você. Se o nada não foi nada por algumas horas, foi porque você existia. Se agora estou aqui, sentado em uma mesa em La Serena, é por você. Porque, em minha irracionalidade, quero reencontrar você, absurdamente encontrar você. E agora sei que isto também não tem sentido. Que estar diante de você será um momento tão vazio como o foram estes últimos quarenta anos”.

Que fazer, então? Irei caminhar pelas ruas, pois quero ver a praça. Irei à Rua Eduardo de La Barra. Antes de me levantar, escrevo num guardanapo mais duas estrofes de meu valsecito:

E caminharei outra vez
por Eduardo de La Barra,
com a torre San Francisco
entoando uma canção.

E cantarei num banco,
no meio da praça,
“Num tempo feliz”
Com todo o coração.

“Laura, não escolhemos o que somos. Nem a quem amamos. Nem a quem desejamos. Tudo é pura loteria. Acaso seguido de acaso. Contingência, sorte, causalidade. Não escolhemos a quem amamos. Não escolhemos quem vamos encontrar durante a vida. Nem quem não encontraremos. Estamos jogados ao acaso do mundo. E, a mim, coube te encontrar. Casualmente, sem propósito, sem sentido, sem nada. Laura, não escolhemos por quem vamos nos apaixonar. Simplesmente amamos. Inexplicavelmente. E tudo o que podemos esperar é que quem amamos também nos ame. Que nos queira quem queremos. E se não é assim, não podemos fazer nada. Desejamos e amamos. Amamos o que desejamos. Assim, eu não escolhi amar você. E tenho este desejo de você que dura quase uma vida. Uma vida, Laura. Não escolhi amar você, porém te amo. E gostaria de deixar de te amar, porém sigo te amando. E, às vezes, quero amar você ainda mais. Mais ainda, Laura. Há dias em que meu amor me parece pouco. E quisera amar você mais, muito mais. Até o ultimo suspiro. Até que a própria morte me separe do amor que tenho.

Não tem jeito, não depende de mim. Desejo você, isso é tudo o que sei. Com um desejo intenso, que é somente desejo. Já não é amor. O amor se acabou no dia em que você me deixou. Depois, foi puro desejo. É o que vejo agora. É o que penso neste momento. Nada, além do desejo. Você era meu desejo. Eu sei. Neste instante, o vejo claramente. Todos estes anos, desejei você. Quis você do meu lado. Nada mais, Laura. Nada mais. Você é puro desejo. Laura, não escolhi desejar você. Meu desejo por você é incoerente, ilógico, brutal, instintivo e sem piedade. Simplesmente chega e não posso fazer nada. E me consome e me devora. Nada mais. Vive em mim, com o mesmo ar. Laura, eu desejo você!

Se dormisse comigo, crei
o que não pensaria em você por muito tempo. Regressaria tranqüilo. E, talvez, nunca mais a procurasse. É somente isso, Laura. Somente desejo. E posso falar para você ou guardar silêncio. Somente duas opções: falar ou ficar calado. E eu decidi lhe contar. Sim, talvez tenha uma chance se lhe disser. Se não conto para você, não tenho nenhuma possibilidade. Uma é melhor que nada. Calar ou contar. Amanhã, eu direi a você, eu contarei tudo. Falarei para você do meu desejo e dos meus anos pensando em você. Amanhã, Laura, amanhã”.

Nada mais. Agora é noite. La Serena está tranqüila, debaixo de uma lua cheia. Há pouco, eu olhava a torre da catedral, prateada pelos raios da lua. A praça estava quase sem ninguém. Um casal se beijava. Caminhei um pouco até o parque e, do alto, olhei a antiga estação de trem. Tudo está mudado.

“Eu sei que a última vez que quis falar com você, você me disse que não havia nada o a dizer. E você tem razão, não há nada. O mundo é silencioso. Somos nós que falamos. E nenhuma palavra pode acrescentar nada a verdade do mundo. À nossa verdade. Nenhuma palavra pode mudar a realidade de um amor. Meu amor não necessita de palavras para mudar, pois nenhuma palavra pode mudar o que se tem vivido, nem o que sinto, nem o que sentes. Simplesmente sentimos, simplesmente você sente. Nada mais. O restante é somente nada. Nada a dizer, nada a escutar. Puro silêncio, envolvendo tudo.

E, no fundo de tudo, somente o desejo mais amplo de seu corpo. E este desejo não pode ser dito com palavras. Nenhum vocábulo pode contê-lo. Meu desejo é puro silêncio, Laura. Quanta verdade havia em suas palavras: não tenho nada a dizer. Eu tampouco tenho nada a dizer. Ofereço para você meu silêncio e meu desejo. Não quero que você diga nada. Somente quero seu olhar. É suficiente que você esteja em minha frente. Que me olhe e que eu possa olhar você. Gostaria também de não ter que dizer nada. Ficar em silêncio diante de você. Porém, não sei como. Algo dentro de mim me impulsiona a falar a você de meu desejo. Do grande desejo de seu corpo. Desejo sem depois, sem amanhã, sem nada, somente desejo que se espalha por meu interior, pelos labirintos da lembrança e às vezes me suaviza o olhar. Nada mais”.





III


Estou pensando em algo. Não será amanhã, será em uma semana. Esperarei sete dias, antes de ir ver Laura. Já esperei tanto que uma semana a mais não fará nenhuma diferença. Procurarei um hotel e esperarei. Caminharei pelas ruas, irei aos parques, irei andar pela praia. Verei o pôr do sol, sentado nas rochas de Coquimbo. E um dia verei o entardecer, sentado ao lado do canhão do Farol. Subirei o Vale. Verei novamente as montanhas. Contemplarei o correr tranqüilo e poético do Rio Elqui. Comerei nos povoados pelo Vale acima. E pensarei em Laura.

“Sabe, Laura, não sei se quero vê-la. Ver você... Para quê? A verdade é que não tenho nenhuma certeza de nada. E nada espero de você. Gostaria de esperar alguma coisa, porém, não consigo. Sei que, depois de vê-la estarei novamente sozinho. Como sempre estive. Sei que não acontecerá nada entre nós. Será somente seu olhar silencioso e seu rosto inexpressivo. Será a Laura sempre distante. Quando estiver diante de você, será quando estarei mais distante. Será quando sentirei você irremediavelmente perdida. Será quando terei a certeza de que nunca, nunca mais, absolutamente nunca mais voltarei a ter você. Que meu desejo será sempre infinitamente triste. Quando vê-la, nada acontecerá entre nós. Meu monólogo será absurdo. Incoerente diante seus olhos. Incompreensível ante a própria vida. E os monólogos são tristes. Têm a amargura e a grandeza da solidão. Podem ser ditos sem ninguém. Basta uma pessoa. Os monólogos têm a verdade do desamparo humano. Meu solilóquio será puro desterro, nostalgia e desejo”.

Nada mais. Depois, nada importará. Será somente o silêncio e a ausência.

“ Depois nem sequer poderei sonhar em encontrá-la novamente, pois o momento de ver você já terá passado. Já haverá sucedido. Será passado. Será o presente eterno do tempo. E depois, somente me ficará a tranqüilidade de quem nada espera. A doce paz do desespero. Depois, talvez, nem sequer terei desejos de você. Nenhum desejo. Puro silêncio”.

Depois será o sol, se pondo no mar de La Serena, para alçar-se ao outro dia robusto e constante. Iluminando os telhados das casas e as torres das igrejas. E inflamando de cores as montanhas incontáveis do Valle de Elqui. E fazendo brilhar o cabelo de Laura, indo pelo caminho do mercado, ou quando brincar com seus netos.

“Então, serei somente eu frente ao indolente silêncio do mundo. Frente a sua indiferença e de todas as coisas. E frente à tenaz lembrança de ter estado com você, nus, em sua cama há, quarenta anos”.

Depois, será somente a felicidade infinita de ter abandonado toda esperança e todo resto de ilusão. E o sossego da certeza de ter perdido a Laura para sempre. Naquele momento, terei a glória dos que nada esperam. A vitória dos que sabem que não há redenção nesta terra de desertos...

“E então, Laura, finalmente sorrirei diante do magnífico horizonte de La Serena e da sólida visão dos campanarios. E poderei ser imortalmente feliz. Definitivamente solitário, debaixo do sol ardente, sem você e sem Deus”.





(Santiago, Chile, inverno de 1979)





Poema de Jorge Luis Gutiérrez (Chile)
Poema publicado no Livro
“Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro”
São Paulo - 2006




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