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A PRIMEIRA FOLHA DO OUTONO


Aquele final do verão foi como os cinco anteriores. Pedro Gómez, trabalhador das minas de cobre no Vale de Elqui, ex-dirigente de sindicato, preso político por dois anos e exilado por oito na Venezuela, saiu de sua casa às onze e quarenta e cinco da noite. Caminhou algumas quadras e se sentou na praça quando faltavam cinco minutos para meia noite. Era 21 de março e ia começar o outono. Pedro Gómez queria ver cair a primeira folha. A recolheria, a levaria para casa e colocaria em um livro. A primeira folha simbolizava todos os outonos anteriores. Nela lembrava antigas praças cheias de folhas e dos varredores recolhendo-as. Quando recordava dizia: “Isso sim é que são outonos de verdade, cheios de folhas, com chuva e frio”.

Este outono que tinha diante de seus olhos não parecia outono. Nem sequer sabia se a folha que cairia, teria alguma relação com o outono ou se era apenas uma folha caindo, como teriam que cair todas. Bom, para ele era a primeira folha do outono e isso bastava. Dava um certo tom de poesia ao seu exílio e o deixava um pouco mais perto de sua pátria.

Os oito anos de exílio haviam sido longos. Haviam lhe oferecido ir para Europa. Lá as estações do ano eram mais parecidas com as do Chile, havia comentado um amigo. Mas preferiu ficar em um país mais próximo. Europa o assustava, lhe parecia difícil com seus 55 anos aprender um novo idioma. Talvez se fosse a Espanha, dizia. Mas a Espanha também lhe parecia diferente e distante. Na Venezuela já estava acostumado. Não havia encontrado trabalho, mas podia viver com o que seus filhos lhe mandavam. Não era muito, mas em suas cartas lhes dizia que servia “para parar la olla”.

A noite foi como um outono perdido na distância do tempo e da geografia. Foi só um outono de exílio na alma de Pedro Gómez. E no fundo do coração uma cordilheira, umas pedras de cobre e as ladeiras dos morros cobertos de parreiras. E um gosto de charqui de cabra e de pão amassado, do que vendem na estrada próximo de El Tambo. Tudo começou a doer quando caiu a primeira folha. Meia noite e seis minutos. Um ruído chegou desde longe. Era como um rio arrastando as pedras do fundo. Era o rio Elqui. Ruído familiar e monótono. Há alguns anos pedira a um dos seus filhos que gravasse esse ruído “ao vivo” e lhe enviasse. Tinha que ser à altura da ponte velha que há entre Vicuña e Rivadavia, e de um lugar de onde se pudesse ver o Porongo, havia escrito ao seu filho, dando-lhe instruções de como deveria ser gravado o ruído do rio. A fita cassete demorou dois meses para chegar. Mas era como ele havia pedido. Ali estava o ruído do vale... “das nossas pedras e nossa água” contou ao seu vizinho. Toda noite dormia escutando. Um dia sua mulher apagou a fita, com medo que ele estivesse ficando louco. O rio voltou a ser distante. Mas o ruído continuou chegando como um fantasma nos momentos que as saudades eram insuportáveis. Ele era o único que o escutava. Era seu rio, misterioso e profundo, que corria pelas esquinas das lembranças, pelas fotografias que guardava daqueles lugares e que gotejava vale nas cartas de seus filhos, no abraço de sua mulher ou na garrafa de pisco que abria as vezes para beber com algum compatriota.

Foi outra vez outono e o Vale se desvaneceu. Pedro Gómez se limpou do suor. A noite era calorosa. A lembrança de uma praça fria e chuvosa o fez decidir voltar a sua casa. Teve medo de transformar-se em noite. Sua mulher, que já no ano anterior havia descoberto o assunto da primeira folha, o esperava sentada em frente da televisão. Pedro Gómez caminhou lentamente, como se fosse um cortejo. As “añañucas”, como se fosse uma pequena primavera, brotaram no seu coração, e a chuva do outono, de um outono que se passava distante, além das distâncias do Valle, começou a cair sobre as imensas planícies da memória. E então pensou que voltava a entrar na mina. E voltou a sentir o cheiro do cobre. Mas a noite calorosa que o cercava o trouxe de volta. Dona Rosa, sua esposa, já não estava mais diante da televisão, mas o esperava na porta.


- Disseram teu nome...!
- Que nome, mulher?
- O teu... no rádio... nessas rádios de fora...
- O quê?
- Podes voltar... leram a lista dos que tem licença para voltar... teu nome está na lista.

Pedro Gómez estava ali no meio da noite calorosa e com o outono frio na alma, parado diante de sua esposa. Recordou as inúmeras vezes que com sua mulher, escutavam as listas. Nunca seu nome aparecia.

Mas agora seu nome havia sido dito e com isso se abriam as portas do retorno. Sua companheira de todos esses anos de exílio, limpava-se das lágrimas.

Pedro Gómez então disse algo, umas palavras que quase não se escutaram. As disse enquanto abraçava sua mulher, no meio da noite calorosa e com um outono distante no olhar.


- Voltaremos...

Então veio a mente o rio e a chuva. E pensou nas “sopaipillas” que haviam preparado na semana que se passara... esse dia choveu com 35 graus.

Nisso tocou o telefone. De muito longe. Seus filhos lhe telefonaram para dizer que no outro dia lhe enviariam as passagens. Tocou a campainha. Era um amigo, também exilado, que morava a três quadras dali. Ele também trazia a notícia. Só que ele não estava na lista. Agora, Pedro Gómez se limpava das lágrimas enquanto uma alegria enorme ia afastando o outono do seu coração. Dona Rosa estava pensando o que fazer com os móveis da casa. Foram ao quarto e olharam as malas. Nunca as haviam desmanchado. Quando tiravam alguma coisa, voltavam a guardá-la ali mesmo. Sempre estavam prontas para a viajem de regresso.

No outro dia às nove da manhã subiam a escada do avião. Se olharam e pela primeira vez notaram que haviam envelhecido e que um sotaque estranho havia em suas palavras. E no meio da tarde, já podiam ver pela janelinha do avião a Cordilheira e no outro dia Pedro Gómez e Dona Rosa olhavam em silêncio o rio. Em seguida caminharam pela cidade tentando encontrar velhos amigos. Vários deles estavam na lista de desaparecidos. E no dia seguinte os dois, sentados na praça, olhavam cair as folhas do outono.



(São Paulo, outono de 1985





Poema de Jorge Luis Gutiérrez (Chile)
Poema publicado no Livro
“Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro”
São Paulo - 2006




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