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METRÔ, ESTAÇÃO “DESERTO”
Muitas vezes acontece das pessoas, ao descerem do metrô, equivocam-se de estação. Mas o que aconteceu nessa manhã de terça-feira a José Días, licenciado em ciências políticas, e pelo que parece que sua história se fez famosa alguns anos depois, era contra todo costume. José Días não se equivocou de estação, equivocou-se de geografia. Em vez de descer na estação próxima do seu trabalho, no centro da cidade, desceu em pleno deserto de Atacama. No início não se deu conta de seu equívoco e começou a caminhar como fazia todos os dias para sair do metrô. Mas logo que levantou a vista seus olhos deram de cheio com a vasta extensão que estava a sua frente.
Sem saber o que fazer, continuou caminhando. Respirou profundamente e olhou detalhadamente ao seu redor. O deserto estava ali e ele o podia sentir em toda sua grandeza, sem restrições, plenamente. Seu olhar se chocou várias vezes com os cumes longínquos, com a cordilheira que se erguia na distância. E, lentamente como se fosse uma transfusão de épocas e solos, foi tomando consciência de que se encontrava no meio do deserto, a milhares de quilômetros da estação onde pretendia ter descido.
José Días amava o deserto. Em sua casa havia fotos que ele mesmo havia tirado e pedras que ele havia recolhido. Tinha livros que falavam do deserto. E ele gostava de ler as antigas histórias dos cristãos do oriente médio, que nos primeiros anos do cristianismo, iam viver no deserto e se transformavam em ermitões. O deserto era tudo para ele. Tinha um velho projeto de passar um mês inteiro vivendo no deserto, umas férias em “pleno deserto”, como ele dizia. E já haveria conseguido se não fosse porque na primavera, um pouco antes do natal, há dezoito anos, as autoridades militares o exonerassem e tivesse de abandonar a Universidade onde estudava. E essas férias ficaram para depois. Um depois que já durava muito.
E agora estava ali, em pleno deserto, sem saber o que fazer. É um sonho, pensou, Já havia sonhado outras vezes que estava no deserto de Atacama. E quando começava a caminhar por ele, acordava. É outro sonho, voltou a pensar. E decidiu desfrutar enquanto chegava o brusco despertar. Respirou muitas vezes, sentiu o sol e o ar quente e seco. E seguiu caminhando, sem saber para onde. Somente caminhava. E olhou o deserto a sua frente. Então as areias eternas foram mais eternas e o céu azul foi simplesmente céu azul. E os salares silenciosos e intermináveis. E nesse momento uma certeza veio ao coração de José Días: não é um sonho, é finalmente o deserto. E uma espécie de emoção o cercou por completo. E voltou a olhar o sol.
O deserto era imenso. Parecia não ter fim. E ali estava José Días, sentindo o suave vento e o ardente sol. Estava em pleno deserto e estava tão profundamente sentindo o deserto que não escutou a patrulha militar, que passava por ali e o mandava parar.
José Días simplesmente sentia o sol e a sequidão. E sentia que era feliz, que nada poderia roubar essa felicidade. Sentia a emoção de estar finalmente no deserto, diante do esplendor do sol e dos cumes no horizonte. As distâncias já não mais existiam, estava no mais profundo do deserto. Na terra que amava. Finalmente estava ali. E seus pés podiam sentir a árida terra e sua pele a sequidão soberba dessa geografia. Já não havia extensão em seu olhar, nem distância em seu coração. Ele e o deserto estavam em paz. E a única coisa que fazia era olhar o sol, o céu azul e o horizonte sem fim que o rodeava.
José Días estava no deserto. E o olhou muitas vezes, olhou-o com ternura, infinitamente. Simplesmente o olhou. E sua vista se perdeu no horizonte limpo e nas altas montanhas que se erguiam na distância. José Días olhou o deserto. E não escutou a voz da Patrulha militar que o mandava parar. Enquanto o sol caia sobre sua alma e na sua testa. E José Días sentia o deserto. Estava vivo. Nessa manhã em que se equivocou de estação, José Días existia no meio do deserto. E tudo parecia imóvel. E o universo parecia que tinha parado. O sol no alto do céu e as montanhas na distância sempre iguais. Nada se movia na geografia do deserto. Só haviam dois movimentos, José Días que caminhava e a Patrulha militar que o mandava parar.
E José Días simplesmente olhava o deserto. E olhava o sol, ardente e brilhante. Olhava o sol do deserto. E então o sol foi como uma pequena cápsula de metal ardente que explodia e lhe enviava milhões de fragmentos, que entravam em seu corpo, queimando-lhe a carne e perfurando-lhe os ossos. E José Días ficou ali dormindo, com as montanhas olhando-o desde longe. Ficou dormindo no deserto. E já não podia olhar nada. Ficou ali entre os salares e o sol. Quieto, sem poder sentir o vento e sem poder olhar o sol. Ficou com o rosto sereno, com uma pálida frieza no rosto e sem poder sentir as batidas do seu coração. Ficou debaixo do sol do deserto. Com o imenso céu azul cercando-lhe por inteiro. Ficou ali, com o ar seco passando sobre a mancha vermelha que agora lhe cobria o peito.
E um dia choveu no deserto. E a primavera veio e a suavidade se estendeu pelas imensidões do deserto. Então, o deserto floresceu. E as flores cresceram. E foi a breve primavera do deserto, que dura poucos dias. Primavera que inundou o deserto de cores. Primavera breve e colorida.
E dizem algumas pessoas que viajavam por estas paisagens, que a primeira flor cresceu exatamente no lugar em que José Días havia caído. E que essa flor foi a última a morrer. Dizem que quando todas as flores já haviam secado, essa flor ainda estava ali e que durou até a chegada do outono seguinte. E dizem ainda, que quando essa flor morreu o vento levou suas sementes até o pequeno jardim que existia no tumulo de José Días, no cemitério de La Serena, e que ali voltou a crescer. E que ainda está ali, multiplicando-se a cada nova primavera. Enquanto o sol do deserto segue sempre igual.
(São Paulo, inverno, 1987)
Poema de Jorge Luis Gutiérrez (Chile)
Poema publicado no Livro
“Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro”
São Paulo - 2006
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