HANE-DIAGUI,
A MULHER DAS ALTURAS AZUEIS
Esta é a história de Hane-Diagui. Escolhida por sua beleza para subir até o cume da alta montanha. Conhecida hoje como Cerro Doña Ana, com 5.400 metros de altura, localizada nas profundidades da Cordilheira dos Andes, no interior do Vale de Elqui. Ali tinham seu lugar sagrado os Diaguitas, antigos moradores do vale. Eles somente a chamavam de “A Montanha”. Subiam para oferecer oferendas aos seus deuses. Com a chegada dos invasores do Norte, do Império de Tiahuanaco, governado pelos Incas, esse cume se transformou num lugar de oração: ali subia um homem, do grupo dos homens condores, para pedir ajuda aos deuses na luta contra os invasores. Junto com ele, subia uma moça virgem, a mais bonita do Vale, a mais agraciada, para que ela fizesse a oração. Os diaguitas pensavam que os deuses não negariam um favor, se fosse pedido por uma bela jovem. A subida era feita com a chegada do verão, depois que grande parte da neve já houvesse derretido e o tempo estivesse mais estável. Nesses meses, os meses de Molle e Diago, segundo o calendário diaguita, quase sempre fazia sol. A neve só voltaria a cair com a chegada do outono. Nesse verão, a escolhida foi Hane-Diagui. Ela acabava de passar pelo rito do banho nas águas da lagoa morna, pela qual passavam todas as meninas ao completarem doze anos. Era bela, por isso foi escolhida. E o homem do grupo dos homens condores era Ngo-Poro.
Eu sou Hane-Diague. Fui escolhida para subir a montanha. Faz dez dias que caminhamos. Para qualquer lado que olho só vejo os cumes. Intermináveis montanhas. Neve. E acima só o céu. O profundo céu azul sobre a cordilheira.
Ela subia, só subia. O frio gelava seu corpo e a respiração era cada vez mais difícil. Mas ela estava feliz porque havia sido a escolhida. Antes de partir, a família havia-se reunido e feito uma festa. Tinha muito milho, batatas e chicha. Seu pai estava orgulhoso. E sua mãe dera-lhe sua melhor roupa, feita de lã de vicuña, para que ela usasse durante a cerimônia no cume da alta montanha. E toda a família dera-lhe roupas de lã grossa, para que pudesse proteger-se do frio. Depois, quando ela voltasse, seria chamada pelo resto de sua vida de “Mulher das alturas azuis”.
Eu sou Hane-Diagui a escolhida. Vou orar pelo meu povo e pela minha terra. Vou orar pelo Vale. Essa terra era pacífica antes da chegada dos invasores. Agora eles querem tudo o que podem levar. Levam nosso ouro, nosso cobre, nossas peles e nossa lã. Levam nosso pescado salgado e nosso charqui. Levam nossas jovens para serem concubinas dos incas. Eu sou Hane-Diagui e orarei aos deuses para que isso tenha um fim.
A comitiva que subia, acompanhando Ngo-Poro e Hane_Diagui, era numerosa. Além dos sacerdotes, iam também vinte homens que levavam armas e dez que carregavam a comida e outras coisas, além de uns quinze ajudantes. Todos eram do grupo dos “homens condores”, treinados desde crianças para subir altas montanhas. Também iam três mulheres jovens, amigas de Hane-Diagui, que estavam sempre ao seu lado, fazendo companhia e ajudando-a em tudo. No total, eram umas cinquenta pessoas que subiam. Todos carregavam peso em suas costas. Somente Hane-Diagui e suas amigas subiam sem nada. Era o privilégio que tinham.
Eu sou Hane-Diagui. Subirei até o vôo dos condores, até as vastas neves e orarei em nome do meu povo. Orarei diante do céu azul e do sol. Orarei com o frio no meu semblante e com os olhos voltados para o mar. Na direção do sol poente. Na direção do Vale. Eu sou Hane-Diagui e irei falar com os deuses, na alta montanha. Eu sou Hane-Diagui e subo a Montanha.
Ainda restavam três dias de subida. Hane-Diagui sabia que na última parte da montanha, subiriam só ela, dois sacerdotes, dois homens armados e dois ajudantes que carregariam os materiais para a cerimônia. Todos sabiam que não poderiam ficar lá em cima por muito tempo. Teriam que subir até o cume, realizar a cerimônia e descer rápido. No cume, o ar era escasso e o frio intenso.
Enquanto subia, Hane-Diagui olhava ao seu redor. Era a primeira vez que via essa paisagem de montanhas intermináveis. Olhava as neves e os cumes, os rios que desciam e alguns condores distantes. Seu coração estava feliz e batia cada vez mais forte. A altura já era considerável. O frio era cada vez mais intenso. Ainda não chegaram a neve, mas já se via próxima. A roupa de couro e lã cobria seu corpo. Subia, somente subia.
Ngo-Poro era o chefe do grupo e dirigiria as orações. Era um homem jovem. Pertencia ao grupo dos homens condores. Só os membros desse grupo poderiam ser escolhidos para subir a Montanha. Ngo-Poro já havia subido três vezes. Essa paisagem lhe parecia familiar. Na subida, ia sempre na frente, indicando o caminho. Tinha experiência nessas montanhas. Era querido e respeitado. Depois dessa subida, que era a quarta, seria chamado “Homem da montanha”. Era uma honra que esperava desde os dez anos, quando começou a preparar-se fisicamente para as altas escaladas. Nessa primavera fora selecionado entre muito para dirigir a escalada. As provas de resistência a que havia se submetido eram pesadas e rigorosas. Mas ele tinha vencido todas. Depois de ser nomeado “Homem da Montanha”, teria de subir ainda seis vezes, até completar dez escaladas, para ser nomeado instrutor dos jovens que começavam o treinamento e seria chamado “Homem Condor das Alturas”. Era a mais alta honra que podia esperar. A cada nova escalada era agregada uma nova pena de condor ao cocar de pêlo de puma que usava sobre sua cabeça. Já usava três. Logo seriam quatro. Depois da última subida, a de número dez, usaria duas garras de condor penduradas nas orelhas e, logo quando fosse instrutor, seria tatuada a cabeça de um condor na sua testa.
Eu sou Hane-Diagui, a virgem escolhida. Subo a montanha neste dia. Subo entre o frio e a visão azul do céu. Subo com as imponentes alturas diante de mim. Eu sou a escolhida para falar com os deuses das alturas.
Logo encontraram a neve e ainda continuaram subindo por dois dias. Então chegaram a um lugar plano, que se espalhava antes das rochas finais do cume. Ali, acamparam e descansaram, por uma tarde e uma noite. No outro dia, junto com os primeiros raios de sol, começou a subida do pequeno grupo que chegaria ao topo. Hane-Diagui estava cansada e feliz. Tinha-se vestido com as grossas roupas de lã e couro que sua mãe lhe dera. O frio era intenso. Ao meio dia, chegaram a parte mais alta da montanha e, imediatamente, foram preparados sobre uma pedra plana, os utensílios para cerimônia. Todos os anos era usada a mesma. Ngo-Poro dirigia tudo, ele sabia bem como fazer. Logo chegou a vez de Hane-Diagui começar a falar. E ela o fez, levantando suas mãos para o céu azul e cristalino. Sua voz era débil, por causa do cansaço e da altura. Mas, ela tratava de falar o mais alto possível. Todos os outros permaneciam em silêncio, sentados, somente Ngo-Poro estava em pé e era o único que não parecia estar cansado. Depois de cada oração de Hane-Diagui, ele repetia as palavras cerimoniais, eram sempre as mesmas. Já as tinha decorado, desde que, as aprendera na escola dos escaladores de montanhas, ainda criança. As palavras seguiam uma ordem que Ngo-Poro conhecia bem, e ele guiava Hane-Diagui.
Ngo-Poro tinha explicado para Hane-Diaqui, quando se preparavam para a subida, e repetido várias outras vezes, que posteriormente às orações, se é que os deuses haviam escutado, um sinal apareceria no horizonte das montanhas. Esse sinal seria um condor voando em direção ao cume onde eles se encontravam. Seria a resposta dos deuses e a maneira deles dizerem que tinham escutado.
Enquanto Hane-Diagui falava, Ngo-Poro olhou para o horizonte e viu só montanhas e céu azul. Sentiu frio enquanto continuava olhando. Não tinha nada. Nenhum condor. Só a imensidão da cordilheira. Só o ar frio e seco. Hane-Diagui continuava repetindo as orações. Eles sabiam que não poderiam permanecer por muito tempo em cima do cume. O frio era intenso e a altura dificultava os movimentos. Os pensamentos eram lentos e as palavras também. Nada no horizonte, nenhum condor. Ngo-Poro continuava olhando e esperando. Mas nada aparecia no horizonte. Nenhum sinal. Nenhum condor. Só o céu azul e frio. Todos sabiam que deveriam descer rápido. Não podiam permanecer muito tempo lá em cima. Ngo-Poro não queria descer sem ver o sinal do condor. Não era possível que os deuses não os escutassem. Mas, sabia também, que deveria descer. Ele, como guia dos que subiam deveria ordenar a descida, rapidamente. E olhava o horizonte e o horizonte era só céu azul e neve. Ngo-Poro começou a ficar triste e pela primeira vez, apareceram em seu rosto as marcas do cansaço. Hane-Diagui continuava dizendo as orações com a visão perdida na distância das altas montanhas. E, de repente, seu olhar cruzou com o de Ngo-Poro. Então, Hane-Diagui lhe disse:
- Deixe que meu coração vá mais alto.
Ngo-Poro, olhando-a, permaneceu em silêncio, com os olhos tristes, enquanto seguia fitando o horizonte azul e limpo. Hane-Diagui repetiu:
- Deixe que os condores levem meu coração até os deuses.
O frio já era quase insuportável e o tempo se esgotava. Teriam que descer logo. Então, Ngo-Poro tirou de sua bolsa de couro algumas ervas e, abraçando Hane-Diagui, colocou-as em suas mãos. Ela, com o rosto pálido e os olhos cansado pela altura, recebendo-as, colocou-as na boca e mastigou. Sem demora, dormiu profundamente. Ngo-Poro pegou uma lâmina de cobre afiada e redonda com uma ponta de pedra. E, dirigindo-se a Hane-Diagui, abriu as roupas que cobriam seu peito e arrancou seu coração. Todos ficaram em silêncio. Era difícil permanecer em pé, por causa da altura e do frio. Deviam começar a descer. Ngo-Poro colocou o coração de Hane-Diagui sobre uma rocha, na parte mais alta do cume, e ali o deixou, junto com um pouco de milho, sobre uma pequena toalha. O Corpo de Hane-Digui foi coberto por num couro de lhama, com os joelhos junto ao peito e os braços abraçando as pernas, como se estivesse de cócoras. Deveria ser conduzido até o vale, para ser sepultado num cântaro de argila, pintado com desenhos, que contariam a história da viajem a Montanha naquele verão. Dentro do cântaro, também colocariam milho e outros alimentos. Seria vestida com as melhores roupas que haviam em todo o vale e coberta em um manto feito de couro de puma. Viria gente de todo lugar, para acompanhar Hane-Diagui até uma colina, próxima do povoado, onde seria sepultada. Seria um dia de tristeza e de festa. E todos se despediriam dela gritando:
- Voa alto, mulher das alturas azuis!
O frio era intenso. A altitude e a falta de ar tornavam os movimentos lentos e torpes. Todos permaneciam em silêncio. E começaram a descer. O corpo de Hane-Diagui era carregado por dois homens. Ngo-Poro continuava olhando o horizonte das montanhas. Então, finalmente, viu que um condor vinha voando em direção ao cume. Começou a recitar uma oração de agradecimento. O condor chegou ao cume e tomou com suas garras o coração de Hane-Diagui. E se elevou para a imensidão do céu azul.
Eu sou Hane-Diagui, a virgem escolhida. Agora, meu coração voa sobre os altos cumes. Meu coração voa sobre as montanhas. Meu coração se eleva sobre o céu azul. Um condor leva meu coração para os deuses. Vou falar com os deuses que vivem acima das alturas. Falarei com os deuses, além das neves e do frio. Eu sou Hane-Diagui, meu coração agora voa alto... alto... muito alto... Eu sou Hane-Diagui, a mulher das alturas azuis...
(São Paulo, primavera de 1996).
Poema de Jorge Luis Gutiérrez (Chile)
Poema publicado no Livro
“Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro”
São Paulo - 2006
Índice na Revista Pandora Brasil