Exposição da Profª Drª Egisvanda Sandes na cerimônia de lançamento do livro Inundada de luz.

São Paulo, 28 de outubro de 2009

(Egisvanda Sandes é Doutora e Mestre pela Universidade de São Paulo, USP,
e professora da Universidade Mackenzie).


Em 2006 eu estava nesta mesma condição apresentando o primeiro livro de poemas do professor Jorge Luis Gutiérrez, Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro, que já apresentava uma intensidade sem medidas e, quando recebi o convite para apresentar também o livro Inundada de luz, confesso que procurei lê-lo tentado encontrar nas entrelinhas dos versos, também carregados de intensidade, temas, significados, palavras, gestos, que tivessem uma estreita relação com o livro anterior. E, realmente, há muita semelhança. Mas a partir de minha leitura e também a partir de conversas com outros professores que também o leram, resolvi me fazer uma pergunta e tentar respondê-la: como eu definiria a poesia de Jorge e que leitura faço de sua obra?

Para mim a poesia de Jorge pode ser definida desde duas vertentes: uma contemplativa e outra descritiva. É uma poesia que descreve toda a admiração de um eu poético ao contemplar o ser amoroso: a mulher. Mas esta contemplação ultrapassa o romantismo e trata o ser amoroso como real, como o que proporciona prazer da maneira mais pura e como um modelo que mistura sensações e provoca a elevação espiritual.

Já no poema que abre o livro, Esta noite chove infinitamente sobre as verdades infinitas, já notamos a principal característica de nosso poeta: uma poesia com uma fronteira muito estreita com a filosofia. Em alguns versos diz:

Esta noite chove infinitamente
Sobre as verdades infinitas...

E pelo molhado ritmo do mundo
Eu te vou interpretando,
Te etimologizo,
Traduzo-te em poesia
Existencialmente latente.

Chove...

E nos compassos
Hermenêuticos das gotas
Te escrevo e te reescrevo.

E penso que a chuva
é uma espécie de metáfora tua:
Que cada gota é um alfabeto
Perfeito para descrever-te.
Um referencial
Peremptório e conciso
Para significar-te...

Também nestes primeiros versos, já notamos um dos elementos mais significativos e mais presentes em toda a obra que é a chuva. A chuva aparece como metáfora da totalidade da obra, ou seja, exige contemplação e representa serenidade e beleza, mas também é fugaz, é sombria, é violenta; a chuva representa o que muda constantemente e ao mesmo tempo é permanentemente igual. Essa imagem da chuva surge em vários poemas e também significa um estado de alma do eu poético, que às vezes é intenso e constante como neste primeiro poema, às vezes vem como sereno e lento em forma de garoa de primavera.

O ser amado (a mulher) aparece em toda a obra como dona de uma beleza estonteante, com formas perfeitas, dignas de contemplação e plena de infinitude, ao ponto de ser descrita pelo eu poético dessa maneira:

É que tu és beldade
De contornos angelicais;
És vapor sensual
Deambulando nos pulmões
De um poema;
És arte anatômica,
Lírica e impetuosa.

Através da observação, da contemplação, essa mulher permite ao eu poético o conhecimento de si mesmo:

E me interpreto
Enquanto te interpreto,
E te traduzo
Enquanto me traduzo.

Eu sou o tradutor de mim mesmo:
E ao traduzir-me
Sou o supremo intérprete
Dos signos de teu corpo.

Além disso, o eu poético, confessa a necessidade da mulher amada para sua própria existência e, inclusive, como sendo a própria poesia e confessa que:

Privado de você,
Desprovido de sua beleza
Que amo e anseio: como eu estaria feliz?

Preciso de você
Para existir em ato...

Assim, a ausência faz este eu poético sentir-se:

(...)
Indigente de você,
Insuficiente de você,
Falto de você,
Escasso de você:
Nesta minha realidade atual,
Minha essência é desejar-te.
Para ser,
Para agir,
Para viver,
Para obrar.

Quero sua presença:
Permanente,
Duradoura,
Sem ausências,
Nem dor,
Intensa e cotidiana.

Cada parte do corpo da mulher amada produz e significa sensações que se estendem pelo tempo. O eu poético diz:

E essa noite voltará inflexivelmente:
Porque ainda que ela já não exista,
Como passado sempre está presente...
E continuamente poderia ir melhorando,
Já que é bom ou ruim o acontecido,
Dependendo de como eu te pense.

E há uma parte de mim que ainda te toca,
como o deserto aos rios e vai vivendo...

As sensações do amante em relação à mulher amada também são infinitas e sua maior expressão é através dos os olhos e da mirada, que são o espelho da alma:

E no mural de teus olhos
Está tudo desenhado:
É por isso que meus olhos
Em teus olhos se encantam.

Aspectos importantes da memória histórica do poeta, referentes a sua terra natal, o Chile, também aparecem em toda a obra, bem como sua trajetória como filósofo, que localiza sua poesia na fronteira entre a poesia e a filosofia. Assim, as estações do ano, tão bem marcadas naquela terra, e a geografia chilena, são apresentadas como metáforas das sensações, do sentimento do eu poético e do corpo da mulher, como em:

E nessa hora em que nos aproximamos...
e meus olhos atingiram tua beleza,
eu senti que não é a duração
que faz a primavera,
pois há primaveras breves e essenciais
que cintilam nos orvalhos dos invernos...
e não posso distinguir se está chovendo
ou é o sol que te ilumina docemente.

A geografia chilena, tão heterogênea e tão rica, é extremamente distinta, porque abrange várias latitudes em seu território, o que lhe confere diferentes tipos de clima, vegetação e distribuição populacional. Assim, ao norte está o deserto do Atacama, o mais árido do planeta, ao sul encontram-se as geladas florestas úmidas na Patagônia Chilena e, além disso, toda a fronteira com a Argentina é acompanhada pela Cordilheira dos Andes. Essa geografia, como já dito de maneira metafórica, aparece em versos do poema Assim fomos nós nessa noite

É que uma noite te encontrei num abraço,
E teu cabelo se enredou por meus dedos...

Porém tudo foi tão brevemente
Como chuva caindo nos desertos,
Da tristeza sem céu localizada
Na desolada aridez de nossos portos.

É que sempre me parece que te achegas
Ainda que no fundo saiba que vais indo.

E nessa noite de tramas e mimeses
Tua mão aqueceu a minha mão,
Como o sol às gélidas montanhas,
Nas ladeiras de paródias e idioletos...
Numa dança lírica de homérico argumento,
Pela fantasia narrativa do rela e imaginário,
Na trágica amálgama de razão e sentimento.

Aqui também percebemos o jogo de sensações e de paradoxos, apresentado em forma de fragmentos e desfragmentos.

Esta geografia chilena é comparada ao próprio corpo da mulher, até mesmo porque o mapa do Chile permite essa comparação por seu desenho horizontal e, em uma seqüência de 6 poemas intitulados Geografias de teu corpo, o poeta começa apresentando os Andes, as alturas, a neve derretida como metáfora da mulher amada que se derrete no corpo do amado e transborda como os rios da paisagem chilena nos grandes vales. Também explode como os grandes vulcões das montanhas chilenas repletas de cobre, tão presente na cultura daquele povo e tão importante para a economia do país. Logo vem o sul com os grandes bosques, o norte com o deserto caloroso e árido e as fronteiras, e, finalmente, as paisagens das plantações e da abundância de frutos como a uva, responsável pelo tão apreciado vinho chileno e grande alegoria do desejo humano.

Outro poema belíssimo em que aparece a geografia de sua terra natal é Olhando o porto de Veracruz, penso no porto de Valparaíso, no qual, ao comparar os dois portos, o eu poético chega à seguinte conclusão, quase de maneira narrativa:

Devo insistir
Que é questão de ponto de vista,
Pois a festa e aflição
Dependem de aspectos intangíveis,
Impalpáveis, subjetivos...
E de como foram aninhando
Os portos na alma.
E de circunstâncias que podem
Ir mudando junto com nossos sentimentos:
Pois o desejo e a paixão
Fazem transmutar os portos.

Valparaíso e Veracruz
Têm uma mesma cena:
A dos barcos que se vão,
Perdendo-se nos confins.
Abandonando a água um rastro
Que se apaga pouco a pouco...
E vai deixando devagar
Nossa mirada vazia.

Os dois portos
Têm felicidades
Intensas e singelas.

E o amor que circula
Por este novelesco porto
É o mesmo que ronda
Pelo romântico porto de Valparaíso:
Poesia ostentosa da vida,
Metáfora nua do ser humano.v
E Veracruz brilha generosa
E Valparaíso está longínquo,
Ao outro lado do continente,
Caindo-se par ao fim do mundo...
Lá longe... inacessível...
Além dos Andes...
Além do Deserto de Atacama...
Além de tudo...

E o vento de Veracruz
Sobrecarrega uma oferenda
Exuberante e carinhosa.
Enquanto a chuva cai idílicav Sobre o imperecível
Porto de Valparaíso.

Tanto neste poema quanto em outros, essa memória das diversas paisagens da terra natal do poeta se convertem em metáforas das sensações desabrochadas pelo amor e pela presença e necessidade da presença da mulher amada. Assim, o deserto, os vales, os vulcões, os bosques, os portos são os seus estados de ânimo e de espírito. Inclusive, assim confessa o próprio eu poético quando diz:

Pois é no limite do vale e do deserto
Que a vida germina com ternura,
E se agarra a sementes passageiras,
Na vital fronteira de um encontro.

Assim fomos nós nessa noite:
Num fértil e artístico contraste,
Fomos água e areia simultânea
Nas orlas difusas do silêncio.

E depois te perdeste no nada...
Nos palácios adjacentes à memória;
Nos jardins sem luz da lembrança;

(...)

e há uma parte de mim que ainda te toca,
como o deserto aos rios e vai vivendo...

As estações do ano chilenas, tão definidas e determinantes da sua paisagem, principalmente o outono, com as folhas amarelas e secas que caem e que pintam as ruas de uma maneira bela e poética, surge como metáfora da permanência, da nostalgia e da melancolia. E assim o eu poético diz:

Por que sempre
É outono na lembrança?
E por que nas alamedas do passado
Raramente os outonos se terminam

E este outono se vai pelas veredas,
Com seus quadros melancólicos e líricos.

E o outono que aninha a memória
É impetuoso em infância e cadernos,
Em sorriso maternal e “sopaipillas”,
Ah! Diáfano outono
No arvoredo da escola...
Úmido outono
Na praça da esquina.

De maneira recorrente aparece o inverno, como o que obriga a andorinha a migrar e quando se finda, pede sua volta, como o espírito aventureiro humano. E assim diz:

Não irás embora
Ainda que o queiras.
Voltarás,
Porque não poderás viver sem meu amor
nos invernos nevados.

Na distensão do tempo
Vou esperar-te;
E uma primavera voltarás,
Como suave garoa caindo
Sobre um chão sedento e árido.

E te festejarei
Como os eucaliptos
A comemorar a chuva.

E te trará de volta
Tua alma de andorinha.

A primavera aparece como a que traz a chuva que simplesmente cai e desvenda as paixões e a vida pulsa alegre nos cílios vigorosos da amada e a diáfana primavera se expande por toda parte e faz com que a mulher seja ainda mais linda e radiante, como descreve o poeta em suas duas rimas de primavera.

Quanto ao poema que dá título ao livro, Inundada de luz, é resultado de uma sequência que começa com o Poema para teu acordar, em que tu:

És um poema amanhecendo.
Prazenteira poesia da aurora.
Madrigal da luz que chega.

Em seguida vem o Poema para teu meio-dia, em que:

Raios ferozes,
Como beijos divinos,
Inundam as veredas
Desde as aturas nubladas

É meio-dia

E tu vais radiante sob a chuva clara...
Enquanto o tempo
Vai timoneando as palavras.

(...)

Contemplo-te:
Floreces a cada instante,
És como uma primavera essencial
Formosamente envolvida
Pela celestial chuva.

Logo vem o Poema para teu entardecer, em que:

Aos poucos a chuva
Vai se transformando em noite,
E minha mente te inventa
Na chuva vespertina.

(...)

E então compreendo
O que é a essência da contigüidade
Somente porque te sinto perto.

Até que essa mulher amada se torna inundada de luz e

Eu me inundo de luz
E te trago à memória...
Revivo-te quando
Tu também eras inundadas de luz.

E me olhavas banhada de luz,
E me amavas molhada de luz.
E eu te amava tanto
Envolvido
Em tua feminina luz.

E a felicidade era
Uma correnteza de luz.

(...)

Tudo era luz então...
Pura luz... nada mais que luz...

É assim que está desenhado o livro Inundada de luz, de maneira tão intensa, não aleatória e tão significativa. Cheio de elementos mitológicos, filosóficos, poéticos, históricos e metalingüísticos, que descrevem essa mescla de sensações do amante em relação à mulher amada e que realmente vale à pena conferir.

Assim, quero parabenizar nosso poeta Jorge Luis Gutiérrez por este livro e convido a todos a conhecerem de pertinho a intensidade de seus versos.



Revista Pandora Brasil
INUNDADA DE LUZ, poemas de amor e filosofia episódica
Jorge Luis Gutiérrez



© Poema publicado no livro de Jorge Luis Gutiérrez
"Inundada de luz, poemas de amor e filosofia episódica"
São Paulo, Editora Baraúna, 2010.

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