RESUMO
O presente artigo centra-se na análise dos processos ficcionais de estabelecimento de um exílio simbólico, busca por um território ideal, e construção identitária no romance Waslala, da escritora nicaraguense Gioconda Belli. Também pretendemos contribuir para o debate sobre a utopia e a história na obra da autora. Algumas das referências teóricas utilizadas são os estudos sobre cidade, identidade, história e mito de Fernando Ainsa, Néstor García Canclini, Eric Hobsbawn, Mircea Eliade, Eduardo Rovira e Ana Pizarro.
Palavras-chave: Gioconda Belli, exílio, identidade.
A AUTORA: GIOCONDA BELLI
Surpreendentemente, Gioconda Belli ainda é uma autora pouco lida no Brasil. A surpresa deve-se ao fato de que esta escritora nicaraguense é hoje uma das mulheres centro-americanas mais reconhecidas internacionalmente por sua obra literária. Premiada inúmeras vezes, traduzida a mais de onze idiomas, Belli é hoje uma referência tanto na poesia quanto na prosa. Nascida em Manágua no ano de 1948, em um ambiente privilegiado da burguesia nicaraguense, foi educada para assumir os papéis de esposa e mãe, apesar da tradição anti-somozista de sua família. Entretanto, depois de casar-se muito jovem, em 1967, e ter uma filha, começa a perguntar-se se sua função social não pode ir mais além.
O terremoto de Manágua, em 23 de dezembro de 1972, causando a destruição de 75% da cidade e a morte de aproximadamente 20.000 cidadãos, além da atitude corrupta do governo de Somoza, precipita os acontecimentos que transformariam a vida de Gioconda Belli e a levariam a comprometer-se definitivamente com a Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN). De colaboradora clandestina passa a ser ativista da resistência contra o ditador; trabalha como correio secreto, é perseguida pelos serviços de inteligência e pela Guarda Nacional da ditadura, faz parte das equipes que preparam uma ação-comando e apaixona-se por Henry Ruiz, Modesto, um dos guerrilheiros que liderará as ações e fará parte do Grupo de los doce, sendo mais tarde seu marido, membro da Diretoria Nacional Sandinista e Ministro do Planejamento.
A poesia de Gioconda Belli nasce junto com sua filiação militante. Literatura e revolução passam a fazer parte de sua relação com o mundo de forma simultânea. Publica os primeiros poemas políticos em revistas como El Gallo Ilustrado, La Prensa Literaria e Nicaracuac. Acreditando que a palavra poética também faz parte das transformações dos homens e do mundo, essa nova autora se lança ao panorama social e literário com armas e letras. No ano de 1974 a autora publica Sobre la Grama (poesias), no ano seguinte vê-se obrigada a buscar o exílio no México, onde sofre com a separação de sua pátria e de suas filhas. Estende seu desterro à Costa Rica e viaja a Cuba, onde conhece Fidel Castro e recebe treinamento prático de guerrilha.
O seu segundo livro de poemas, Línea de Fuego, aparece em 1978 e recebe o Prêmio Casa de las Américas, em Cuba. Depois do triunfo da Revolução Sandinista, em 19 de julho de 1979, Gioconda volta à Nicarágua, onde ocupa importantes cargos políticos até a derrota eleitoral de 1990, especialmente nas áreas das artes e junto ao poeta Ernesto Cardenal, clara influência literária, política e afetiva em sua vida. Entre 1982 e 1987 publica três livros de poemas: Truenos y Arcoiris (1982), Amor insurrecto y De la costilla de Eva (1987). O primeiro romance da autora, La mujer habitada, é publicado em 1988 e neste mesmo ano traduzido a vários idiomas, convertendo-se em um sucesso editorial premiadíssimo na Europa. Em 1990 e 1996 surgem outros dois romances, Sofía de los Presagios y Waslala. O conto infantil El taller de las mariposas havia sido publicado também em 1992.
A autobiografia El país bajo mi piel vem à luz em 2001, simultaneamente em seis países. Em 2003, com o livro de poemas Mi íntima multitud, a autora recebe na Espanha o V Premio Internacional de Poesia Generación del 27. O reconhecimento chega de várias formas, e Gioconda Belli é incorporada em 2005 à “Real Academia de la Lengua Española”, seção Nicarágua. Sua incursão pela prosa expande-se a outros caminhos, e o romance histórico El pergamino de la seducción, lançado em 2006, tem como temática central recontar a vida de Juana de Castilla, mal denominada, segundo a autora, Juana la Loca. Em 2007, aparece outro livro de poemas Fuego soy, apartado y espada puesta lejos, deixando claro que sua trajetória alterna sempre a poesia com a prosa. No ano de 2008 recebe em Madrid o Premio Biblioteca Breve da Editora Seix Barral, por seu último romance editado, El infinito en la palma de la mano, ainda sem tradução para o português, e que evoca e recria o mito das origens judaico-cristão.
EXILIO E BUSCA IDENTITÁRIA
La cuestión de la identidad siempre está ubicada en un punto incierto, tenebroso, entre la sombra y la sustancia.
Homi Bhabha.
Ainda que a escritora Gioconda Belli viva atualmente nos Estados Unidos, realmente em um “exílio voluntário”, no presente trabalho nossa proposta é tratar sobre outro aspecto dessa questão tão complexa que é o desterro, em suas múltiplas faces. Acreditamos que as personagens e protagonistas de Belli, sempre femininas, encontram-se em uma situação de busca/reencontro e perda, uma vez que suas trajetórias no terreno ficcional encaminham-se na direção da procura de um espaço simbólico, onde o desenvolvimento pleno deixe de ser somente uma utopia. Estas personagens, exiladas socialmente de múltiplas formas, buscam encontrar o local ideal. Não obstante, cremos que sua procura não deve ser vista de forma individual, já que elas seriam uma representação da coletividade na qual estão imersas.
Desta forma, centramo-nos na personagem Melissandra, do terceiro romance da autora, Waslala. A busca desse lugar possível se dá através de processos de construção identitária e memorial, onde é fundamental o papel reconstrutor da obra literária a partir de uma visão da história das margens. Segundo a escritora e professora Selena Millares Martín, da Universidad Autónoma de Madrid, em seu livro La maldición de Scherezade. Actualidad de las Letras Centroamericanas (1997:41), um dos símbolos das manifestações estéticas de nossa época é a problematização do cânone, impulsionada pela paródia, a carnavalização, a ironia e o intertexto, que, através dessas estratégias, subverte com uma nova paisagem a cena da criação. Para que seja possível essa subversão dos padrões valoriza-se a diferença e a periferia, o que é excêntrico adquire um novo sentido.
Ainda acompanhando as reflexões de Selena Millares (1977:41-42), verifica-se que o mundo indígena aporta sua diferença, nessa nova cena literária, principalmente através das concepções mágicas das mitologias, tanto na visão historicista como na fantástica e na real-maravilhosa, onde, nesta última, aparecem frequentemente vozes femininas. Entretanto, além dos elementos já citados, aparece também nessas obras o “componente reivindicativo”, apresentando os conflitos sociais e identitários do local onde ocorrem.
O substrato mítico e ideológico é um dos elementos formadores do discurso literário dessa autora, intrinsecamente político. Constrói-se nos romances um território simbólico, onde a mitologia pré-hispânica faz parte do estabelecimento de valores e formas de entender e atuar no mundo moderno. Esse processo se dá de maneira complexa, uma vez que na contemporaneidade a discussão sobre a perda da utopia e a necessidade de construção da memória, colocam-se como importantes temáticas na análise da obra literária.
Em Waslala a autora desenvolve e conclui (ainda que propositalmente em aberto) um processo de busca e encontro. A cidade Waslala é o paraíso perdido, a utopia de um povo oprimido e subjugado pelo poder econômico. Encontrar esse lugar faz parte do mito do eterno retorno, que se relaciona e se constrói dentro da visão cíclica dos povos indígenas. Tempo e espaço perdidos poderiam ser resgatados ficcionalmente com a volta de seres imortais, em um local onde a dor e o sofrimento não existiriam mais. Porém, o inesperado desfecho dado pela autora sugere uma nova possibilidade, mais contemporânea e consciente da multiplicidade de elementos formadores do povo latino-americano em questão.
A HISTÓRIA E UM TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO
As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou setenta maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.
- Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge.
Ítalo Calvino (As cidades invisíveis)
Em seu terceiro romance, Gioconda Belli constrói o percurso de busca da cidade ideal através do curso do rio que os personagens seguem em direção ao centro do país. Nesse interior, perdida entre os ceibos monumentais [1], estaria a cidade onde os poetas são os governantes e é possível alcançar um nível de organização e justiça almejado por todas as civilizações. Para a nossa reflexão sobre a imagem do território urbano na obra de Belli, faz-se necessário observar o conceito de utopia e sua estruturação originária. De acordo com o professor José Renato de Oliveira (1988:15), autor de Utopia e razão
Por utopia entende-se aqui a dimensão do espírito humano que, situando em termos ideais o que não existe na realidade, discute como esta deveria ser ou como se desejaria que fosse. [...] Tal concepção se relaciona diretamente à etimologia da palavra, cujo significado é lugar não existente.
A dimensão do no-topos eleva a imagem utópica à condição de ideal, e, no senso comum, de inatingível. Entretanto, na obra literária, a ideia desenvolvida pela autora nicaraguense não corresponde somente ao intocável, configurando-se como um projeto, uma vez que o local perfeito refere-se principalmente à edificação real. Para que seja provável essa construção, elementos como o sonho, o desejo, a crença nas possibilidades, a consciência, o comprometimento social, e o resgate de elementos míticos e históricos, concorrem na estrutura da busca. A imaginação utópica, o desejo de encontro do não-lugar, é constante nas sociedades, não sendo o componente de uma reação que apareça somente movida por estímulos e necessidades externas e socais de uma época, mas sim uma busca inerente ao ser humano. Desta forma, a manifestação mais frequente da imaginação utópica tem sido a utopia política.
O primeiro projeto utópico a apresentar-se sob a forma de um sistema, na sociedade ocidental, foi o platônico. Formulado no século IV a.c., o sistema de Platão baseia-se em aspectos de três obras centrais: A República (que não se entende aqui no mesmo sentido atual da palavra), é a polis ideal; As leis, onde a sociedade se constrói sob o comando das regras; e Crítias, onde se menciona a Atlântida, não como o lugar ideal, mas sim como o local onde os erros fizeram com que fosse perdido o que era perfeito. O espaço ideal de Platão adquire a forma de cidade, o que é fundamental para a compreensão da imagem utópica. Essa urbe tem localização simbólica e precisa, deve estar no centro, e o esquema platônico a coloca no interior (também Waslala encontra-se no centro do país e internada da floresta), longe do perigo do mar e do contato com culturas equivocadas; sua Nova Atenas é o oposto do erro representado pela Atlântida.
Outro fundamental esquema responsável pela divulgação do próprio vocábulo utopia é o descrito por Thomas Morus. A inspiração de Morus foi o projeto platônico, que pretendia “ampliar e superar”. Utopia é um relato da viagem feita por Raphael Hythlodaeus, de onde Gioconda Belli toma tanto a imagem da viagem pelo rio, como metáfora da busca, quanto o nome do personagem estrangeiro que acompanha Melisandra, Raphael. O local utópico é uma ilha (aqui a necessidade da distância do mar é negada), perdida em algum lugar do mundo, que tem como capital a cidade Amatorum, “cidade do sonho”. Utopia é banhada pelo rio Anydrus (rio sem água), e seus cidadãos são chamados alaopolitas (os sem cidade), governados pelos ademus (os sem povo), tendo por vizinhos achorianos (os sem país). Tanto a utopia platônica quanto a de Morus constituem o que poderíamos chamar de arquétipo da utopia política. Percebe-se que a construção das propostas retoma elementos do passado e os transforma em possibilidades para um presente-futuro melhor, conforme afirma Teixeira Coelho (1981:95):
Sob alguns aspectos ambos os programas são regressivos, defendem o retorno a uma situação ideal ou idealizada, que teria ocorrido nos primórdios da humanidade e que o homem teria perdido. [...] Mas ambos são também aquilo sem o que a imaginação utópica declina: emblemas do futuro, que arrancam soluções do passado para projetá-las, jogá-las para frente, reformuladas.
Desta forma, para compreender como se constrói o projeto utópico no terceiro romance de Gioconda Belli, observamos a imagem das diferentes urbes, que confluem através do rio no tecido do texto literário. Também neste caso, a interioridade da polis, não só geográfica, mas simbólica, adquire relevância central. O professor José Carlos Rovira, em seu livro Ciudad y literatura en América Latina (2005:14), estrutura uma fundamental história das cidades na literatura, em princípio de forma geral, e posteriormente centrando-se na literatura latino-americana, com a ideia de que “algumas cidades passam à condição literária de interiores”. A formação das cidades após o descobrimento obedece ao mesmo conceito de invenção [2] que se pode imprimir à própria ideia de América Latina. Essa imagem será plasmada, intensamente, através dos textos literários.
Sendo assim, Rovira (2005:13) afirma que o centro evolutivo da cidade europeia é substituído na latino-americana por uma ruptura da cidade antiga, a pré-hispânica, e pela fundação de um novo espaço que, originalmente, foi a tentativa de transpor o modelo europeu ao Novo Mundo. O espaço urbano americano é um híbrido de mito e modernidade. Após as independências, já no final do século XX, o processo de reconfiguração das urbes torna-se ainda mais complexo. Segundo Ana Pizarro (1994:22) “os sinais da modernidade começaram a inundar as recentes áreas urbanizadas que crescem com rapidez − Buenos Aires, São Paulo − ao lado de um setor ainda “lânguido” na persistência da estrutura agrária”.
Waslala, palavra miskita que significa “rio de prata”, é o nome real de uma cidade nicaraguense situada no extremo sudeste da região Autônoma do Atlântico Norte, mas que por sua distância pertence administrativamente, à jurisdição política e administrativa de Matagalpa. O romance de Belli apresenta diferentes cidades, que surgem como exemplo de locais onde a modernização aconteceu parcialmente, e o pior de nossa época convive com o mítico e o sonho. Para os habitantes do país Faguas, a cidade perfeita é percebida de acordo com a concepção de mito apresentada por Mircea Eliade em Mito e realidade (2002:11), tal como era aceito nas sociedades arcaicas, onde o mito designa uma história verdadeira e, mais ainda, indestrutível por ser sagrada, exemplar e significativa. Desta forma, Waslala apresenta aspectos das cidades pré-hispânicas que figuram nos mitos de criação, como o fato de ser magicamente protegida por quatro ceibos sagrados (1998:62):
La extensión de nuestra comunidad la demarcaban cuatro ceibos gigantescos. Cuando llegamos con nuestros bártulos nos reunimos con el alcalde de vara del poblado campesino asentado sobre las faldas de una colina al sur. Siguiendo las señales recibidas en un viejo sueño, él nos asignó ese lugar no sin antes realizar una ceremonia donde pedimos permiso a los viejos y centenarios árboles para invadir su espacio vital.
No romance, há uma contraposição entre a degradação da cidade de Cineria e a maravilha natural de Waslala. A emblemática Cineria é a representação de um espaço urbano latino-americano onde os habitantes estão em uma espécie de “limbo da modernidade”, uma anti-cidade, segundo o termo utilizado pelo filósofo espanhol Eduardo Subirats em seu artigo “La escritura de la ciudad” (2004, ver bibliografia). A urbe ideal se degenera e dá lugar a locais de degradação em vários níveis, zonas suburbanas altamente povoadas onde se vive em situação de extrema pobreza e “degradação moral planificada globalmente”. Segundo Subratis, as grandes novelas latino-americanas do século XX constroem representações desses espaços. Cineria é o grande vertedero (Belli, 1996:165), os restos de elementos da modernidade, tecnologia e indústria, são depositados na cidade descaracterizada e agonizante.
Com a imagem dos dejetos de Cineria, Gioconda Belli recria La Chureca, “o maior depósito a céu aberto da América Latina”, situado no noroeste de Manágua, onde cento de setenta e três famílias vivem ao redor do local, tendo mil e quinhentas pessoas como trabalhadores, entre eles mais de seiscentas crianças (Taylor, 2005). Resíduos industriais, detritos tóxicos, restos de maquinaria são depositados dia após dia, entretanto, muito perto dali, em um fragmento de selva esquecida, os habitantes do país acreditam estar uma espécie de “paraíso perdido” que os redimirá, um lugar possivelmente salvador. Waslala é o local onde o aspecto mágico e pré-colombiano resiste, a cidade dos sonhos de todos os moradores, onde a poesia é capaz de reunir o que foi separado e fazer presente todos os tempos simultaneamente.
As cidades nas obras de Gioconda Belli são objetos produtores de imagens onde residem as possíveis soluções para os personagens da narrativa. A busca da cidade possível é apresentada como uma viagem, empreendida pelos personagens em direção ao território dos sonhos, onde a imaginação se expande. O caminho em direção da cidade ideal, empreendido por Melisandra, cruza-se, assim, com a busca das origens pessoais e coletivas, da identidade de um grupo e de um país e, sobretudo, de um futuro possível para todos.
No entanto, um elemento fundamental transforma a oposição Cineria versus Waslala, já que com o vazio final da segunda rompe-se o modelo perfeito, desmistificando-a e fazendo necessária sua reconstrução.
NOVA PERDA DO TERRITORIO: O ETERNO EXÍLIO DA MODERNIDADE
O que move os personagens de Waslala em sua viagem, é a busca de um local onde ocorra a negociação de elementos aparentemente opostos. E o encontro, ao mesmo tempo frustrante e incitante, é novo porque os caminhos a buscar também são novos. A cidade dos sonhos precisa ser reconstruída sobre bases que consigam relacionar e equilibrar modernidade e tradição.
O teórico argentino Nestor García Canclini nos coloca essa mesma questão sob a forma de uma pergunta: quais as estratégias para sair de uma modernidade que, na América Latina, não acaba nunca de chegar, uma vez que as tradições ainda se mantêm ativas, configurando-se assim um quadro de perspectivas múltiplas, fragmentadas e combinadas de diversas formas? Tal indagação enseja uma dúvida, com a qual se defronta o autor ao expandir suas reflexões: a modernidade seria realmente o caminho para os impasses latino-americanos, como apregoam políticos, economistas e agentes da propaganda e tecnologia?
Em suas reflexões, García Canclini aborda um universo cultural abrangente, orientando suas proposições para as infindáveis relações produzidas e impulsionadas pelas culturas híbridas, vistas sob ângulos que conjugam sociologia, antropologia, história da arte e comunicação. Nesse sentido, o autor sugere que possíveis saídas ocorreriam em função de quatro movimentos que considera definidores da modernidade na América Latina: emancipação, renovação, democratização e expansão (García Canclini, 2000:330-331). Estes movimentos, se articulados de maneira irregular, representam uma modernidade insatisfatória, causadora de conflitos na interação com as tradições vigentes.
O hibridismo resultante pontifica o dilema de entrar ou sair de uma modernidade repleta de incertezas, cujo desafio deve ser concebido, de acordo com García Canclini (2000:332), como “a capacidade de interagir com as múltiplas ofertas simbólicas internacionais a partir de posiciones próprias”. A expansão urbana é um fator de intensificação do hibridismo, e a oferta cultural das comunidades rurais, tradicionais e homogêneas, transformou-se em contato com a oferta heterogênea das grandes cidades, originando-se daí a mescla do regional com redes nacionais e transnacionais de comunicação e a desestabilização dos limites entre uma e outra ocorrência. No romance Waslala, em Cineria, cidade-basura, o resultado desse choque é o desequilíbrio que se traduz em acumulo de restos, desechos das cidades modernas, acidentes radioativos evitáveis, assassinatos e destruição de tradições populares.
Entretanto, todos os elementos formadores dessas cidades-territórios híbridas são necessários para a articulação dos quatro movimentos renovadores. Desta forma qualquer tipo de maniqueísmo resultaria insatisfatório como explicação social, já que os novos processos mundiais de interação tornam cada vez mais complexa a delimitação de territórios simétricos. A relatividade de identidades e culturas é propiciada pelos intercâmbios entre os bens simbólicos tradicionais e os circuitos internacionais de comunicação, as indústrias culturais e as migrações. Porém, conforme García Canclini (2000: 326), as discussões político-culturais sobre a constituição do que é o “nacional” não devem ser eliminadas, mas sim estudadas agora sob outros registros, menos dicotômicos e de múltipla focalização.
Desta maneira, a hibridação é um processo, mas também uma condição, que permite olhar o passado e pensar nas lógicas de produção cultural no presente. Uma nova compreensão dos rituais e do capital cultural herdado e acumulado pela memória histórica é fundamental, já que estes, frente a novas condições de existência, se transformam e propõem combinações simbólicas que podem atuar como formas de resolver ou entender os conflitos, o que García Canclini denomina “negociações”. Sendo assim, o híbrido cultural é o resultado do conflito entre forças sociais mediatizadas, através de um processo de re-simbolização.
Melisandra, protagonista feminina que empreende a viagem selva adentro, parte da perda (representada pela impossibilidade de seu avô Don José voltar à Waslala), para o caminho que a leva a um novo encontro, dessa vez diferenciado. Também Raphael, companheiro na viagem de Melisandra que acompanha a narração do poeta sobre a cidade mítica, percebe que sua participação no encontro de Waslala estaria condicionada à experiência de vivenciar os ritos de passagem (Belli,1998:64):
Raphael, quien tomaba notas en el comunicador, se quedó en suspenso esperando que el anciano continuara, temiendo interrumpir su silencio. Observó lo ojos azules del poeta intuyendo que le estaba siendo dado participar en un rito, una suerte de canto evocativo para traer aquel lugar misterioso a la vida; nombrarlo para que existiera.
Neste instante, a palavra adquire o poder mágico do verbo criador. O fato de nomear a cidade evocará sua existência. Os viajantes empreendem novamente a busca pelo território perdido. No processo de viagem passam pela urbe-basura e Melisandra ingressa no espaço-tempo mágico que possibilita a visão de Waslala, porém, ao encontrar o local, a protagonista vê na realidade um lugar vazio. Já que o encontro do paraíso fracassou, é dada à personagem a tarefa de reconstruir um espaço onde seja possível o encontro de aspectos múltiplos. Para este fim é necessário um novo projeto que abarque elementos de culturas internas e externas (Belli, 1998:320):
Es la memoria, Melisandra. Siempre pensamos que la memoria debe referirse al pasado, pero es mi convicción que hay también una memoria, un memorial del futuro; que también albergamos el recuerdo de lo que puede llegar a ser. Hombres y mujeres nos hemos forjado en la búsqueda de ese recuerdo escurridizo. Por eso es que hay una necesidad insaciable de lugares como Waslala. Por eso es que tu padre y yo permanecimos aquí esperando el día en que Waslala se repoblaría, creyendo contra viento y marea que ese día tendría que llegar. Quizás haya llegado. Quizás ésa sea tu llamada, tu herencia.
O conceito de história fragmentária e que admite o problema, e não o progresso perene, é defendido também pelo historiador inglês Eric Hobsbawm (1998:25), de acordo com este estudioso, a história não é feita de um processo linear e o fracasso faz parte do caminho, tanto quanto o êxito:
O domínio do passado não implica uma imagem de imobilidade social. É compatível com visões cíclicas de mudança histórica, e certamente com a regressão e a catástrofe [...]. É incompatível com a ideia de progresso contínuo.
Sendo assim, no terceiro romance de Belli, o fato de não encontrar a perfeição idealizada no local utópico não significa o final de um processo, com seu término irreversível. A ruína torna-se possibilidade de construção, pois a partir dos escombros podem ser percebidos os fragmentos, que serão os constituintes no novo ser e do novo local das realizações. Segundo Fernando Ainsa (1995:52):
O caráter de processo “não terminado” e aberto de toda identidade cultural viva resulta, pois, fundamental para entender, se não para justificar, a reestruturação permanente da noção em uma região como América Latina, onde a busca da identidade parece ser mais importante que sua definição.
A tarefa de Melisandra é dada a ela através de sua mãe, uma das últimas habitantes de Waslala. O encontro da utopia tem para a protagonista o significado de volta às origens, à mãe, à matriz. O passado perdido é reencontrado em seu elemento criador e feminino. Junto à decepção pelo vazio do local e à euforia pela volta da mãe, Melisandra recebe também os anais, que nortearão seu trabalho, a história de todo o projeto utópico (Belli,1998:325):
- Aqui tenés, Melisandra, los anales de Waslala. Los poetas, tu padre y yo los escribimos. Aquí hay un recuento pormenorizado de qué hicimos, cómo lo hicimos. Nuestros errores, nuestros aciertos, lo que fue esta experiencia. Hay planos de lo que construimos; hay cuentos, poemas, novelas, ensayos escritos aquí, dibujos… Son tuyos, de Faguas.
A partir destas bases, a protagonista deverá transformar e reformular a cidade. Ela escolhe, então, os que seriam os povoadores da nova urbe entre os órfãos da cidade de Timbú, pessoas que além de não terem pais, decidiram também não ter filhos e adotaram crianças. Simbolicamente, os que repovoariam Waslala seriam os que também perderam sua origem, os que igualmente buscam a mãe, a terra. Em Waslala os antigos habitantes de Timbú poderão vivenciar plenamente seu sentido grandioso de amor universal. Melisandra deixa também a figura materna, porém, sai da cidade transformada, pois o encontro com a origem, em vários aspectos, permite sua caminhada independente. Depois de encontrá-la, pode caminhar sem ela: “la madre la dejaba libre para el perdón o la condena; la respetaba no como hija, sino como mujer” (Belli,1998:327). De posse de sua história pessoal, a protagonista segue em direção à dura realidade de Faguas, mas leva elementos novos de transformação e a capacidade de encontrar os caminhos.
Waslala, que poderia ser uma espécie de “Tlalocan” [3] para os personagens do romance, a cidade-paraíso nicaraguense, apresentou-se vazia, porque cabe ao sujeito contemporâneo encontrar soluções, negociações, saídas, para povoar essa cidade-nação contraditória. Segundo Cornejo Polar (2000:53), as culturas literárias são uma totalidade contraditória, mas com seus diversos setores em íntima e profunda relação, e a grande falha da historiografia latino-americana é o fato de não ter acertado na maneira de se aproximar dessa dualidade do passado e do presente.
Voltar ao passado seria a primeira ideia quando falamos no projeto utópico, entretanto, Waslala apresenta-nos a impossibilidade de viver na cidade que não resistiu a seu próprio modelo. Aponta também os novos caminhos, que só serão trilhados com muito trabalho e sem a pretensão de eliminar as contradições, mas sim com ânimo de colocá-las em diálogo. A literatura e a arte são alguns dos elementos formadores da memória histórica dos povos, e constroem, em seus territórios simbólicos, cenários de urbes imaginárias e reais, que se entrecruzam representando, ao mesmo tempo, a realidade atual e aspectos de um passado mítico, que conferem à cidade um caráter mágico.
Conscientes dos processos históricos ocorridos, da necessidade de encontrar um lugar que permita sair de um eterno exílio, e de construir uma identidade que será inevitavelmente híbrida e múltipla, os personagens de Waslala assumem a tarefa. Desta forma, ainda de acordo com Hobsbawn (1998:37-38), o retorno ao passado não é concretamente viável, ainda que seja um passado “ideal”, onde os povos conquistados pudessem viver novamente sua plenitude. A busca identitária, a construção memorial e territorial, não obedecem a um ritmo constante e progressivo, pois segue os percalços, quedas e ruínas da História. Deste estado de emergência surgem as novas possibilidades, as utopias realizáveis, os trabalhos contínuos no seio da fragmentalidade, não como resposta, mas como questionamento constante.
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NOTAS
[1] O ceibo, também chamado no Brasil de seíbo, bucaré, corticeira ou coraleira, é uma árvore considerada sagrada para vários grupos indígenas, inclusive os guaranis (presentes no Brasil). Segundo a lenda, a índia guarani Anahí, perseguida e assassinada pelos conquistadores espanhóis, quando foi amarrada ao tronco da árvore para ser queimada, fundiu-se lentamente com esta, transformando-se em um só ser com o vegetal. Tal metamorfose e fusão entre mulher e árvore é um dos principais temas do primeiro romance de Giconda Belli, La mujer habitada, estudado por nós com detalhe em vários trabalhos publicados anteriormente.
[2] O conceito de “invenção da América” é amplamente desenvolvido pelo professor e pesquisador mexicano Edmundo O´Gorman, em La invención de América. México: FCE, 1984
[3] O Tlalocan é o paraíso de Tláloc, deus maia das Chuvas. O simbolismo representado por essa divindade é fundamental na estruturação do primeiro romance de Gioconda Belli e também, em menor medida, em Walala. O Tlalocan era considerado um lugar belo, pleno de plantações essenciais à vida para os maias, como o milho e a chia (semente usada para a fabricação de bebidas).
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